É tema ainda candente nos Tribunais a discussão sobre a viabilidade ou não da desconsideração da personalidade jurídica da empresa para o efeito de atingir os bens dos sócios, no caso, o encerramento irregular das atividades empresárias, em um cenário de inadimplemento obrigacional, existência de processo judicial e inexistência de bens sociais.
Cabe, em um primeiro momento, ressalvar o pensamento de Campinho, pois, ao mencionar a ausência de precisão da lei no arranjo conceitual, esclarece que a dissolução irregular, destoante da previsão legal, é caso de responsabilidade direta dos sócios por ilícito praticado, nos termos do que dispõe o artigo 1.080 do Código Civil. Afasta, assim, o enquadramento da hipótese em casos de desconsideração. Por outro lado, reconhece a possibilidade de responsabilização direta dos sócios, pois, segundo ele, tornam-se ilimitadamente responsáveis em razão da conduta ilícita perpetrada.[1]
Marcia Carla Pereira Ribeiro discorre sobre a utilização temerária e fraudulenta das sociedades pelos sócios, esclarecendo que a regra geral não é o da absoluta separação e autonomia patrimonial, comportando exceções. Ao tratar do tema da desconsideração o faz em cenários distintos, a saber: a) nas demandas de consumo (CDC, art. 28); b) nas demandas que envolvem o direito concorrencial (Lei n. 12.529/2011, art. 34); c) nas demandas que questionem atos da sociedade lesivos à administração pública (Lei n. 12.846/2013, art. 14) e d) nas demais causas não excepcionadas (Código Civil, artigo 50). Nos seus comentários também explicita imprecisão legal, no sentido de que algumas situações trazidas pelo legislador não deveriam estar sob o rótulo da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, mas como causa de responsabilização direta, a exemplo do excesso do poder, da infração à lei, da violação dos estatutos ou do contrato social, além da falência, dentre outras situações-hipóteses.[2]
De qualquer forma, é importante excepcionar que não há mais uma tendência acentuada da responsabilização do sócio por ato da sociedade, como vinha ocorrendo com muita frequência nos Tribunais, mesmo sem justa causa configurada.
Há fortalecimento do conceito da divisão patrimonial primária entre os bens sociais e os bens dos sócios, obviamente quando se está diante de pessoas jurídicas que adotam a distinção patrimonial como regra, como é o caso das sociedades limitadas e das sociedades unipessoais de responsabilidade limitada. Sobre o justo equilíbrio entre a tutela do credor e a tutela da sociedade, houve tratativa por ocasião do texto publicado na Coluna Empório em 26/10/2017.[3]
Em termos processuais o CPC/15 exige a instauração de incidente processual, evitando, de certa forma, o elemento surpresa e viabilizando o contraditório prévio, como se lê do conteúdo dos artigos 133 e seguintes. A criação de um procedimento específico trouxe mais segurança jurídica e mais previsibilidade para as partes integrantes de uma relação processual.
De qualquer modo, a perseguição da responsabilidade dos sócios por encerramento irregular, a exemplo do fechamento das portas, sem declarar inatividade ou proceder à liquidação, portanto em desacordo com as hipóteses legais, seja sob o rótulo da figura jurídica da desconsideração da personalidade ou da responsabilização direta, dependerá do incidente ou da prévia alocação dos sócios como demandados ab initio, bem como da demonstração de atos e fatos concretos que configurem o intuito de prejudicar terceiros. Isto porque, caberá aos sócios provar que o encerramento, em que pese em desacordo, decorreu do risco habitual de se empreender e ou de crise econômica insuperável, dentre outros fatores e razões apuráveis no caso concreto.
É certo que a declaração dos direitos da liberdade econômica, assentada por meio da Lei n. 13.874/2019, também repercute sobremaneira nesta questão, diante da alteração havida no artigo 50 do Código Civil, que teve, dentre os seus objetivos, o de solucionar problemas decorrentes de conceitos abertos, particularmente sobre o desvio de finalidade e a confusão patrimonial para o efeito da responsabilização pessoal dos sócios.
Fica mais evidente que a pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores, havendo, de fato, autonomia patrimonial como instrumento lícito de alocação e segregação de riscos (CC, artigo 49-A, e seu parágrafo único). Em termos de AED (Análise Econômica do Direito), considerando-se que a lei carrega uma estrutura de incentivos, ganha o empreendedorismo, em que pese o momento de incertezas vivenciado no Brasil.
Antes mesmo da entrada em vigor da Lei da Liberdade Econômica, neste mesmo ambiente, tratamos da alteração do Código Civil pela então MP 881, com o foco na sociedade unipessoal, se é que se pode chamar de sociedade, a unipessoalidade decorrente desta formação, mas quanto a isto já tratamos anteriormente no texto publicado na Coluna Empório em 09/05/2019.[4]
Registre-se o posicionamento recente do STJ a respeito do tema, ainda sob o enfoque da desconsideração e não da responsabilidade direta em decorrência de do encerramento irregular das atividades, a saber:
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. DISSOLUÇÃO IRREGULAR E INADIMPLEMENTO DAS OBRIGAÇÕES. NÃO CABIMENTO. DECISÃO MANTIDA.
1. "A mera inexistência de bens penhoráveis ou eventual encerramento irregular das atividades não ensejam a desconsideração da personalidade jurídica" (...).
2. Agravo interno a que se nega provimento.
(AgInt no REsp 1528021/DF, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, julgado em 28/05/2019, DJe 04/06/2019).
Como visto, o STJ, no julgamento em comentário, não autorizou a responsabilidade patrimonial dos sócios nas duas situações-hipóteses: ausência de bens penhoráveis da empresa e encerramento irregular das atividades. Todavia, no corpo do v. acórdão encontra-se como fundamento relevante a expressão de que o mero “encerramento irregular das atividades não configura abuso da personalidade jurídica”, para trazer como consequência a responsabilidade patrimonial dos sócios. É da mesma expressão que exsurge a viabilidade de responsabilização quando não se tratar de “mero encerramento”, mas de encerramento planejado com o intuito de fraude e prejuízo a terceiros.
Campinho sustenta que:
A situação em que a perda da limitação da responsabilidade dos sócios-cotistas se faria facilmente aferível traduz-se na dissolução irregular da sociedade, ou seja, naquela que se implementa sem a observância do processo legal (violação da lei). Nesse caso, todos os sócios respondem ilimitadamente, não sendo normal haver qualquer deliberação expressa nesse sentido. A sua falta, como certo, não ilide a responsabilização dos sócios. O sócio que desejar se liberar deverá moldar sua conduta a fim de obstar o fato, tal como requerer a dissolução judicial da sociedade ou, se insolvente, a sua falência, como lhe faculta o art. 97, III, da Lei n. 11.101/2005. [5]
Deste modo, considerando-se que no conteúdo do artigo 50 do CC não está inserta a hipótese de desconsideração por ato de encerramento irregular, reforça-se a tese da responsabilização direta, mediante comprovação clara do ilícito realizado por ação e ou omissão, do nexo causal e do prejuízo.
Fica aqui consignado o registro de que somente o caso concreto é capaz de atrair a possibilidade de responsabilização direta dos sócios, sob a alegação de quebra da divisão patrimonial e da arguição de responsabilidade ilimitada por derivação do ilícito praticado. Tal fato será preponderante para avaliar o uso abusivo da personalidade jurídica da empresa, sob o manto da personificação e distinção patrimonial.
Conclui-se que o posicionamento do STJ deve ser interpretado com ressalvas, de um lado, adequado e correto no sentido de que não basta a mera arguição de encerramento irregular da atividade econômica como causa da desconsideração ou da responsabilização direta dos sócios, pois tal fato pode ser interpretado como sendo uma decorrência natural do risco habitual e da crise econômica não suscetível de superação pelo empresário no caso concreto. Por outro lado, a utilização da sociedade em detrimento da empresa e em prejuízo aos credores, estando caracterizado o encerramento irregular das atividades com o intuito de burla, é causa de responsabilização dos sócios, que passam a responder com o seu patrimônio.
Notas e Referências
[1] CAMPINHO, Sérgio. Curso de Direito Comercial. 14ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 77.
[2] RIBEIRO, Marcia Carla Pereira e BERTOLDI, Marcelo M. Curso Avançado de Direito Comercial. 9 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 165.
[3] A desconsideração da personalidade jurídica: o justo equilíbrio entre a tutela do credor e a tutela da sociedade. Empório do Direito: https://emporiododireito.com.br/leitura/a-desconsideracao-da-personalidade-juridica-o-justo-equilibrio-entre-a-tutela-do-credor-e-a-tutela-da-sociedade-por-joao-carlos-adalberto-zolandeck.
[4] Alterações Do Código Civil Pela MP Da Liberdade Econômica: Desconsideração Da Personalidade Jurídica E Sociedade Limitada Unipessoal. Empório do Direito: https://emporiododireito.com.br/leitura/alteracoes-do-codigo-civil-pela-mp-da-liberdade-economica-desconsideracao-da-personalidade-juridica-e-sociedade-limitada-unipessoal
[5] CAMPINHO, Sérgio. Curso de Direito Comercial. 14ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 179.
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