No último dia 30 de abril, o Governo Federal publicou a Medida Provisória 881, apelidada de “MP da Liberdade Econômica”. Dividida em cinco capítulos, a norma teve como principal objetivo declarar direitos inerentes às liberdades econômicas, repercutindo em alterações legislativas, com a intenção de desburocratizar o funcionamento do Estado concernente à atividade econômica.
O Código Civil foi alterado, com mudanças nas normas referentes a pessoas jurídicas, ao direito dos contratos, ao direito de empresa e ao direito das coisas. Apesar de ainda necessitar ser convertida em lei ordinária pelo Congresso Nacional, as mudanças afetam de forma significativa o dia-a-dia do empresário, devendo ser escrutinizadas conforme seu impacto.
A primeira alteração que sobressai diz respeito ao artigo 50 do Código Civil. Este é dispositivo legal que prevê a desconsideração da personalidade jurídica, mais especificamente a chamada teoria maior da desconsideração. Para que seja possível desconsiderar a personalidade jurídica com base no artigo 50, é necessário que a parte comprove que houve ou desvio de finalidade ou confusão patrimonial. A esta se contrapõe a teoria menor, prevista, por exemplo, no Código de Defesa do Consumidor, na qual apenas o inadimplemento é suficiente para afetar o patrimônio dos administradores ou dos sócios.
O fato de o Código Civil previamente não conceituar o que seria desvio de finalidade ou confusão patrimonial levou ao uso controvertido da técnica. Concebida para evitar abusos que poderiam surgir do uso desvirtuado da personalidade jurídica, é sabido que ela tem sido utilizada de forma exacerbada pelo Poder Judiciário, especialmente pela Justiça do Trabalho, criando um cenário de incerteza para sócios de sociedades empresárias; em que pese haver a previsão legal da limitação de responsabilidade, muitas vezes isso era negligenciado e o patrimônio dos sócios era atingido, mesmo sem uma devida comprovação do desvio de finalidade ou da confusão patrimonial no caso concreto, portanto de forma desarrazoada.
Com a MP 881, artigo 7º, foram acrescidos cinco parágrafos ao artigo 50, definindo de forma compreensiva o que seria desvio de finalidade e a confusão patrimonial: § 1º Para fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização dolosa da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza. § 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por: I - cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa; II - transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto o de valor proporcionalmente insignificante; e III - outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial (redação dada pela Medida Provisória nº 881, de 2019).
Como visto, ampliou-se o conteúdo da previsão legislativa em termos conceituais, repercutindo em maior previsibilidade para empresários, viabilizando-se uma posição de defesa legal contra decisões infundadas, devendo o juiz enquadrar os atos praticados dentro das previsões que a lei estabelece em termos conceituais.
A imposição de um conceito legal, evidentemente condicionada a conversão em lei ordinária, afasta o perigo do uso desmedido de presunções abstratas e o lançamento de equivocadas máximas de experiência por quem não milita no dia-a-dia da empresa e não possui controle de suas relações ou o entendimento sobre.
Chama a atenção a introdução do dolo como requisito para desconsiderar a personalidade jurídica com base no desvio de finalidade. A alteração destoa da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, fundamentada no seguinte precedente: A desconsideração da personalidade jurídica é admitida em situações excepcionais, devendo as instâncias ordinárias, fundamentadamente, concluir pela ocorrência do desvio de sua finalidade ou confusão patrimonial desta com a de seus sócios, requisitos sem os quais a medida torna-se incabível.[i]
Como é possível observar, o STJ entende que a desconsideração está no campo da responsabilidade civil objetiva, padecendo de caracterização de culpa ou dolo. Esse entendimento era o mesmo do exarado na I Jornada de Direito Civil, em cujo Enunciado 37 se lia: A responsabilidade civil decorrente do abuso do direito independe de culpa e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico.
Portanto, será necessário tempo para se observar como a prática judiciária aplicará essas novas normas, até porque, muitas estruturas jurídicas são arquitetadas para dificultar o acesso aos credores, a exemplo da criação de novas empresas saudáveis para carregar os principais ativos da empresa em colapso.
É o caso concreto que dará os contornos para a definição da responsabilidade em um universo mais restritivo, onde se apresenta um conceito legal definidor, que na prática segue a esteira da doutrina, especialmente quanto à confusão patrimonial decorrente da transferência de ativos. Percebe-se que a presença do dolo está apenas para a hipótese de desconsideração fundada no desvio de finalidade e não para as hipóteses de confusão patrimonial, em sede, ainda de Medida Provisória, suscetível de alteração quando da conversão em lei.
Impedir o excesso do uso em casos não qualificáveis e estabilizar o sistema empresarial parece ser o mote da iniciativa, pois pelo conteúdo da MP não há modificação das hipóteses de desconsideração, mas o estabelecimento de conceitos e requisitos, pois se entende que o instituto é conciliável e necessário para o equilíbrio da ordem econômica.
Macakaay e Rousseau atribuem importância ao instituto da desconsideração, pois a norma legal ao conceber uma punição à fraude e ao abuso do direito reduz os custos externos assumidos pelos credores contratuais e extracontratuais, guindando-se o véu corporativo quando houver desvio das finalidades econômicas. A possibilidade de desconsiderar, presentes os requisitos e hipóteses legais, diminui a atração por falsas representações por parte dos gestores e acionistas, pois manobras fraudulentas impõem responsabilidade pessoal.[ii]
Deste modo, por um lado, entende-se que a criação do conceito legal em comentário não fragiliza o instituto da desconsideração e, por outro, evita o uso desmedido, equivocado e ineficiente, diante do estabelecimento de critérios razoáveis de controle das decisões judiciais, visando dar segurança jurídica nas relações e desfrear à capacidade de empreender.
A outra alteração significativa foi no artigo 1.052. Trata-se do artigo que traz a principal característica da sociedade limitada, no sentido de que a limitação de responsabilidade do sócio é restrita ao valor de suas quotas. Agora, foi introduzido um parágrafo único, que permite a constituição de sociedade limitada por apenas uma pessoa.
A discussão acerca da possibilidade de criação de sociedades unipessoais foi muito viva na Europa da segunda metade do Século XX, com diversos Estados criando legislações que as previam.[iii] O tema foi definitivamente assentado com a XII Diretiva da União Europeia, que determinou que todos os Estados-membros criassem mecanismos de limitação de responsabilidade dos empresários individuais em suas legislações internas.
No Brasil, em que pesem tentativas de legislar sobre o tema[iv], foi apenas em 2011, com a Lei 12.441 de 2011, que se criou uma figura similar a uma sociedade unipessoal, a empresa individual de responsabilidade limitada (EIRELI). Com base no artigo 980-A do Código Civil, empresários podem criar essa pessoa jurídica, que deve possuir capital de ao menos cem salários mínimos.
A exigência de capital mínimo foi responsável por uma lenta adoção dessa figura. No Estado de São Paulo, por exemplo, durante o primeiro ano de vigência da Lei 12.441/2011, entre 09/01/2012 a 09/01/2013, foram registradas 16.967 EIRELIs na Junta Comercial do Estado de São Paulo. Em comparação, no mesmo período, houve o registro de 334.179 empresários individuais e 94.163 sociedades limitadas.[v]
À medida que o tempo foi passando e os empresários foram se tornando mais familiares com a EIRELI, ela passou a ser gradualmente mais adotada. No Estado do Paraná, por exemplo, durante o ano de 2012[vi], foi registrado um total de 2.392 EIRELIs na Junta Comercial do Paraná, 19.348 empresários individuais e 28.774 sociedades limitadas, de um total de 51.743 empresas registradas. Em 2018[vii], porém, foram registrados 15.758 empresários individuais e 20.237 sociedades limitadas, comparadas a 8.934 EIRELIs, de um total de 45.810 empresas. Assim, na medida em que em 2012 as EIRELIs representavam apenas 4,62% do total das empresas registradas, em 2018 já somam 19,50%.
Apesar da crescente utilização, a possibilidade de se constituir uma sociedade unipessoal originariamente tende a selar o fim do uso da EIRELI, justamente por não haver requisito de capital social mínimo para sua constituição. Não é possível a constituição de uma EIRELI com capital inferior a R$ 99.800,00[viii], que é, sob determinado ponto de vista, um valor elevado para micro e pequenas empresas. Empresários destes portes podem agora se valer da sociedade limitada, sem ter de recorrer a um sócio ficto (sócios com participações ínfimas, utilizados apenas para se obter a pluralidade de sócios e conquistar o registro, sem qualquer participação nos negócios).
Ainda, a sociedade limitada não possui a limitação de apenas uma por pessoa, outro empecilho existente na EIRELI (§ 2º do 980-A), tornando-a ainda menos atrativa para empresários.
Há ao menos duas questões que ainda são necessárias de esclarecimento, uma teórica e uma prática. A primeira é referente ao artigo 981 do Código Civil, que conceitua sociedade como um contrato firmado entre uma pluralidade de pessoas, as quais se obrigam a contribuir para o exercício de atividade econômica e a partilha dos resultados entre si. Há uma contradição interna: a legislação conceitua o contrato de sociedade como tendo ao menos duas pessoas, porém autoriza sociedades limitadas unipessoais.
É necessário tempo para que a doutrina se debruce sobre esse tema, dando uma interpretação coerente para esses dispositivos legais, de forma a buscar coerência interna entre as normas do Código Civil. Uma possível interpretação é de que, ao dispor “Celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir(...)”, o Código Civil está apenas tratando de sujeitos no plural, não necessariamente inferindo a necessidade de haver mais de uma pessoa num contrato social.
A segunda questão diz respeito ao procedimento que as Juntas Comerciais utilizarão para o arquivamento do ato constitutivo de sociedades limitadas unipessoais. O Departamento Nacional de Registro de Empresas e Integração (DREI) periodicamente edita Manuais de Arquivamento de atos, de observância obrigatória por todas as Juntas Comerciais, com o objetivo de unificar os procedimentos em todos os Estados da federação.
Como o parágrafo único do artigo 1.052 apenas dispõe que devem ser observadas, no que couber, as normas relativas ao contrato social, será necessário um trabalho ativo por parte do DREI para que os requisitos do ato constitutivo fiquem devidamente claros para os empresários, com as devidas adequações à unipessoalidade. Ainda, deve cumprir com seu papel de uniformização das normas, para que os procedimentos de arquivamento desses atos constitutivos não possuam grandes diferenças entre diferentes Estados.
Não obstante os questionamentos levantados pode-se concluir que as mudanças nas normas de desconsideração da personalidade jurídica e das sociedades limitadas foram positivas, conferindo maior segurança aos empresários, aos credores e ao mercado, diante do estabelecimento de mecanismos de controle sobre a atividade jurisdicional especializada, além de trazer novas formas para empreender com menor custo. Será necessária a observância da doutrina, da jurisprudência e da prática empresarial para que se possa averiguar a implementação dessas mudanças.
Notas e Referências
[i] REsp n. 1.311.857/RJ, Relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 13/5/2014, DJe 2/6/2014.
[ii] MACKAAY, Ejan e ROUSSEAU, Stéphane. Análise econômica do direito. 2ª. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 610.
[iii] GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Direito de empresa. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 122.
[iv] SIDOU, J. M. Othon. Emprêsa Individual de Responsabilidade Limitada. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1964, p. 25.
[v] ARNOLDI, Paulo Roberto Colombo. FERRAZ, Fabio Garcia Leal. Análise e reflexões sobre o primeiro ano de vigência da EIRELI no Brasil. Revista de Direito Empresarial, São Paulo, vol. 3/2014, mai. 2014, p. 42-44.
[vi] http://www.juntacomercial.pr.gov.br/arquivos/File/publicacoes/relatorios/rel_ag_2018.pdf. Acesso em 05 de maio de 2019.
[vii] http://www.juntacomercial.pr.gov.br/arquivos/File/RELATORIOS_2012/constituicoes_site_dezembro2012.pdf. Acesso em 05 de maio de 2019.
[viii] Decreto 9.661 de 2019
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