A desconsideração da personalidade jurídica: o justo equilíbrio entre a tutela do credor e a tutela da sociedade - Por João Carlos Adalberto Zolandeck

26/10/2017

A desconsideração da personalidade jurídica da sociedade[1] desperta interesse para o credor e preocupação para o empresário, cabendo ao advogado e, em última análise, ao juiz, encontrar o justo equilíbrio entre a utilização do instituto para a satisfação do crédito e o princípio da continuidade da empresa.

Inicialmente cabe ponderar sobre a aquisição da personalidade jurídica da sociedade. Segundo a regra dos artigos 45 e 985 do Código Civil, a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado começa com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro. Para o empresário e a sociedade empresária o registro fica a cargo das Juntas Comerciais, enquanto que, para as sociedades simples, a cargo do Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas (CC, art. 1.150).

Ao adquirir personalidade jurídica, a sociedade passa a ser capaz de direitos e obrigações, tendo autonomia e independência em relação aos sócios, quanto ao patrimônio, nacionalidade, nome e domicílio, diante dos efeitos da personificação[2].

A “personalidade jurídica societária foi a fórmula encontrada, na sociedade capitalista (desde o século XIX até o século XXI), para amenizar os riscos dos investimentos no setor produtivo e propiciar que a livre-iniciativa empresarial cumpra sua função, como veículo de geração de empregos e de riquezas para o país”[3].

Destaque-se, assim, desde logo, que há inteligência na outorga de personalidade jurídica própria à sociedade empresária, considerando-se a necessidade de autonomia para  se colocar no mercado com o menor risco possível ao patrimônio particular de cada sócio, não internalizado na empresa, o que cria incentivos para o empreendedorismo e para o desenvolvimento econômico.   

Ocorre que a personificação pode se transformar em um escudo aos mal intencionados, nem sempre na origem, na formação da estrutura societária, mas, àqueles que, no curso de suas atividades, operem em desvio de finalidade, confusão patrimonial ou outros enquadramentos de ordem civil localizadas na legislação esparsa.

Justifica-se, assim, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade, albergada pela legislação nacional, cujo reflexo aponta para a possibilidade de alcançar os bens dos sócios diante de uma dívida da sociedade, tratando-se de uma exceção ao princípio da autonomia patrimonial.  O instituto é aplicável não apenas às sociedades, mas a todo tipo de pessoa jurídica, pública ou privada, nos termos do que disciplina a parte final do artigo 50 do Código Civil, portanto a lei não põe a salvo o abuso cometido pelo administrador em uma associação, fundação, partido político, entidade religiosa, EIRELI ou qualquer outra, exceção feita ao empresário individual, onde há comunicação patrimonial na origem[4]

Em se tratando do direito material, o artigo 50 do CC[5] é o que mais desperta interesse para o entendimento do assunto no contexto atual, todavia a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica encontra lugar na legislação esparsa.

Teixeira[6], ao enumerar o referencial legislativo, para além do dispositivo legal retromencionado, traz como referência o art. 14 da Lei n. 12.843/13 (Lei anticorrupção), o art. 28 da Lei n. 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), o art. 34 da n. Lei 12.529/2011 (Lei que estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência), o art. 4º da Lei n. 9.605/98 (Lei de Proteção Ambiental), o art. 18, parágrafo 3º da Lei n. 9.605/98 (Lei do Abastecimento Nacional de Combustíveis) e o art. 135 do CTN (Código Tributário Nacional).

O tradicional art. 50 do CC traz como hipótese de desconsideração o desvio de finalidade e a confusão patrimonial, mas se percebe que a legislação a respeito é mais ampla e abrangente dependendo do direito em debate. Por exemplo, quando estivermos diante da defesa da concorrência, o art. 34 da Lei 12.529/2011 agasalha hipóteses mais amplas, ao dispor que: “A personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. Parágrafo único. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

Fica evidente, deste modo, que as hipóteses que viabilizam a desconsideração da personalidade jurídica da pessoa jurídica, na forma estrita ou inversa, estão previstas não apenas no Código Civil, mas na legislação especial.

No aspecto processual, quanto ao instrumento adequado à justa tutela do credor e do empresário, o CPC/2015 criou um incidente que facilita o exercício prévio do contraditório e da ampla defesa, consolidando um entendimento doutrinário e jurisprudencial no sentido de reconhecer os referidos princípios mesmo sob a égide do CPC/73, mas dúvidas restavam quanto ao momento e modo.

Observa-se que é o direito material que descreve as hipóteses e a conduta que quer reprimir, cabendo ao processo regular o procedimento para o exercício do direito tanto pelo pretendente quanto pelo preterido, com igualdade de tratamento e de forças em plena sintonia com o princípio do contraditório de da ampla defesa.

Cabe ao intérprete identificar a hipótese que mais se assemelha ao caso concreto e aplicar o direito, primando por uma solução equânime. O juiz exerce papel fundamental na investigação da hipótese, devendo colocar na balança os direitos em jogo, por um lado, o princípio da continuidade da empresa, que será preponderante caso não fique caracterizado o abuso da personalidade, desvio de finalidade ou qualquer outra hipótese prevista na legislação especial, revelando-se fundamental o estudo das consequências e o afastamento da tese de desconsideração nos casos em que não ocorra a subsunção do fato à norma, por outro, nos casos de subsunção dos fatos à norma, o atendimento dos princípios vinculados ao processo civil constitucional.

Isto porque, para as sociedades limitadas, por exemplo, é obvia a previsão de limitação da responsabilidade pessoal do sócio, pois do contrário o risco da atividade afastaria o aporte de capital, uma vez que, certamente, o empresário não colocaria o seu capital em risco, diante da existência de uma série de fatores que influenciam diretamente o insucesso, destacando-se as corriqueiras crises econômicas, a concorrência, a insolvência de clientes e fornecedores, portanto a distinção entre o patrimônio do sócio e da sociedade é uma premissa básica para dar-se atendimento aos princípios constitucionais da função social e da dignidade da pessoa humana[7].

Contextualizando um caso concreto, a criação de estruturas jurídicas complexas, a partir da utilização de várias pessoas jurídicas, para esvaziar o patrimônio de uma delas, devedora na essência, sugere a aplicação do instituto da desconsideração ou dos efeitos, como mero desdobramento do reconhecimento do grupo econômico para fazer frente ao passivo gerado, diante do desvio dos ativos em benefício do grupo e em detrimento de credores.

A regulação ocorrida via incidental pelo CPC/15 não afasta a declaração de extensão de responsabilidade ou configuração do grupo econômico ocorrido sob a égide do CPC/73, mesmo que o exercício do contraditório tenha sido postergado, mas não vedado, tanto é fato, que os atingidos pelo referido instituto tiveram amplo acesso à justiça, inclusive, para opor recursos.

O art. 133 do CPC/15 cria um incidente, cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial (CPC/15, art. 134), para solucionar conflitos sobre a responsabilidade patrimonial por extensão, tendo o foco de reconhecer ou afastar a despersonificação momentânea (em sentido estrito ou inversa), ao qual se dá o caráter de intervenção de terceiros, a partir de novos sujeitos.

A peça processual que dá início ao procedimento assume características similares ao da petição inicial, havendo necessidade de contemplar os elementos da ação (partes, pedido e causa de pedir), até porque surge uma nova relação processual a partir da citação válida, não havendo impedimento, para o manejo prévio, de tutelas de urgência.

Tais pressupostos sanam divergências quanto ao modo, tempo, forma e tipo de recurso cabível (agravo de instrumento), havendo alinhamento com o caráter instrumental do processo.

Conclui-se que o justo equilíbrio está ancorado, por um lado, na observação concreta das hipóteses previstas pelo direito material para albergar o instituto da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade e, por outro lado, pela correta utilização do instrumento para realização concreta das consequências, no caso, via incidental, nos termos dos artigos supracitados, viabilizando-se ao sócio o contraditório e a ampla defesa em toda a sua extensão.


[1] CC, art. 982. Salvo as exceções expressas, considera-se empresária a sociedade que tem por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro (art. 967); e, simples, as demais. Parágrafo único. Independentemente de seu objeto, considera-se empresária a sociedade por ações; e, simples, a cooperativa.

[2] CAMPINHO, Sérgio. Curso de direito comercial: sociedade anônima. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 73-74.

[3] RIBEIRO, Marcia Carla; VIANNA, Guilherme Borba. Titularidade patrimonial na empresa frente à ordem civil constitucional e o papel empresarial para a dignidade humana: primeiras anotações. Scientia Iuris, Londrina, v. 12, p. 75, 2008. 

[4] TEIXEIRA, Tarcisio. Direito Empresarial Sistematizado: doutrina, jurisprudência e prática. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 286-289.

[5] CC, art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

[6] TEIXEIRA, Tarcisio. Direito Empresarial Sistematizado: doutrina, jurisprudência e prática. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 286-289.

[7] RIBEIRO, Marcia Carla; VIANNA, Guilherme Borba. Titularidade patrimonial na empresa frente à ordem civil constitucional e o papel empresarial para a dignidade humana: primeiras anotações. Scientia Iuris, Londrina, v. 12, p. 75, 2008.

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