Após mais de 25 (vinte e cinco) anos de processo de redemocratização, parece que esquecemos como lidar com ataques ao Estado de Direito vindo das próprias instituições.
O que nos parecia impensável em um Estado Democrático de Direito ocorreu, algo como uma ressurreição dos tempos do AI-5, através de uma decisão judicial que, sob a alegação de interpretar normas estatutárias, impõe censura política a uma entidade estudantil.
O juízo da 9ª Vara Cível da Comarca de Belo Horizonte, no dia 29 de Abril[1], concedeu, em caráter liminar, tutela provisória de urgência em demanda em que dois acadêmicos pleiteavam obrigação de não-fazer em face do Centro Acadêmico Afonso Pena (CAAP) – uma das associações estudantis mais antigas e importantes do País[2] –, consistente na determinação de que o Poder Judiciário impedisse a realização de Assembleia Geral Extraordinária (AGE) convocada, segundo os autores, irregularmente, para tratar de discussão e posicionamento acerca do Impeachment da Presidente da República. Tento ultrapassando ou não, ainda que em parte, os termos do pedido formulado, o juízo de primeira instância não apenas concedeu a antecipatória, no sentido de proibir a realização daquela AGE – ao fundamento de que não haveria urgência em discutir o tema objeto da convocação –, como também determinou que o CAAP se abstivesse de realizar quaisquer outras futuras convocações relacionadas ao assunto ou que tenha “caráter político”, sob o argumento de, demonstrando um suposto aparelhamento ideológico, político-partidário, a discussão e o posicionamento a respeito do tema seriam algo alheio aos próprios objetivos estatutários do Centro Acadêmico. Para o juízo de primeiro grau, apenas questões estritamente relacionadas à “qualidade do ensino” poderiam ser tratadas por uma associação estudantil.
A que ponto chegamos? Uma decisão judicial desrespeita os direitos de reunião pacífica e de assembleia, de liberdade de expressão e da livre circulação das ideias, sob o argumento de que o tema do Impeachment refugiria aos objetivos previstos nas regras estatutárias de uma associação de estudantes universitários da área do Direito; o que, por si, não apenas demonstra uma leitura apressada dos próprios estatutos do CAAP, como desconhece uma centenária história de luta política pelo Direito e pela Democracia, empreendida por um Centro Acadêmico que esteve sempre presente em todos os grandes e decisivos momentos da história do Brasil e de Minas. E, mais, cabe lembrar que todos esses direitos negados por essa decisão judicial estão garantidos textualmente pela Constituição da República e pela Constituição do Estado de Minas Gerais, por tratados internacionais ratificados pelo Estado brasileiro e por um sem número de normas – além de contarem com várias decisões judiciais em sentido contrário, algumas inclusive com efeito vinculante, como a ADI. n. 1969 e ADPF. n. 187. Tudo sob o argumento de que a entidade de representação estudantil estaria a defender interesses políticos ao propor a discussão e, a partir dessa, um posicionamento em relação ao tema do Impeachment. Afinal, não é para tomar posição política que as entidades de representação são constituídas e eleitas? Ou, quando é que alguém/entidade não age politicamente? Há ações públicas a-políticas? Aliás, mesmo a ação de “sair da esfera pública de discussão” também não pode ser um ato político?
Vale lembrar que nos tempos da ditadura civil-militar de 1964-1984 militares empastelaram o CAAP na procura de documentos sobre os estudantes da época e que, pouco depois, foi preso, torturado e morto pela Ditadura em 1973 o estudante José Carlos Novaes da Mata Machado, ex-Presidente do Centro Acadêmico.
Como já vínhamos alertando, é preocupante o papel que parcelas do Poder Judiciário vêm desempenhando em face do golpe de Estado (parlamentar) que se anuncia no Brasil e, sobretudo, o papel que da Jurisdição se esperava cumprir ao longo do processo de redemocratização.
Nos últimos tempos, uma espécie de ativismo judicial com sinal trocado, ao invés de possibilitar o incremento da cidadania, vem restringindo direitos fundamentais. A mais alta Corte do País limitou garantias constitucionais ligadas ao processo[3]; e parcela importante do Judiciário tem ameaçado contribuir para um verdadeiro estado de exceção, ao desconsiderar a Constituição da República, sem maiores consequências[4]. E, agora, o panorama de um Estado ditatorial mais parece se avizinhar com uma decisão judicial que desrespeita os mais básicos direitos democráticos à liberdade de reunião pacífica e de assembleia, de liberdade de expressão, da livre circulação de ideias, da livre manifestação do pensamento e da vedação de qualquer forma de censura prévia. Como diz Leonardo Yarochewisky, “Ela” – a censura – “voltou”![5]
Segundo Lenio Streck, em recente texto sobre o tema, o nome da ação é indicativo do que se pretende: “obrigação de não fazer. Isso. Não fazer democracia; não protestar; não se reunir; não cumprir a Constituição e todos os nãos possíveis e imagináveis”[6]. De fato, o objetivo da decisão proferida pela 9.ª Vara Cível é o de proibir que estudantes universitários, estudantes de Direito, pudessem discutir e se posicionar em face do processo de Impeachment – algo que diz respeito ao próprio núcleo do sistema de governo constitucionalmente adotado. Isso mesmo. Esses mesmos estudantes que, futuramente, poderão, inclusive, vir a participar da própria condução política de País, por meio do exercício de cargos públicos, agora são censurados, no seu processo de formação, por meio de uma decisão judicial.
Não será, portanto, demais lembrar que um dos objetivos fundamentais da educação é a preparação para o exercício da cidadania (art. 205, da Constituição). Que o ensino tem por base a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; e o pluralismo de ideias (art. 206, II e III, da Constituição). E que as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão (art. 207, da Constituição).
Precisamos nos ater ao papel realizado pelo Poder Judiciário na atual quadra da história e escancarar, quando for necessário, feições autoritárias. Em países de modernidade altamente seletiva, já alertava Boaventura de Sousa Santos, o Poder Judiciário pode ter a propensão de ser um poder contrarrevolucionário; isto é, a contrarrevolução jurídica consistiria em um movimento por parte do Poder Judiciário destinado a bloquear, por via judicial, muito dos avanços democráticos conquistados ao longo das duas últimas décadas[7], entre as quais direitos emancipatórios e direitos ligados às minorias que tentam se integrar à comunidade política.
Ora, como defendemos, o papel do Poder Judiciário em um Estado Democrático de Direito deve ser o de justamente garantir direitos e, assim, retroalimentar o processo político democrático, sem pretender substituí-lo ou tutelá-lo[8]. Bloquear judicialmente o exercício regular de direitos é retroceder ao autoritarismo. Não há exceções constitucionais à proibição da censura prévia, assim como as limitações à liberdade de reunião estão expressamente previstas na Constituição – e nenhuma se alinha ao decidido. Quanto à liberdade relacionada à associação, diz o texto constitucional que é vedada a ingerência do Estado sobre a mesma –exceto se houvesse ali a promoção de ato ilícito, o que não é o caso, a menos que restauremos a legislação de censura ideológica, pondo fim ao Estado Democrático de Direito[9]. A liberdade tem de ser a regra: quaisquer restrições precisam ser muito bem delineadas e justificadas. Aliás, em uma democracia, são elas, as restrições, que devem ser consideradas “suspeitas prima facie”, sujeitas ao “high scrutiny” dos tribunais e jamais a liberdade.
Caberá, portanto, ao Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, uma vez provocado, em respeito à Constituição da República e à Constituição do Estado, cassar essa decisão de primeiro grau, em nome da garantia da própria democracia[10].
Notas e Referências:
[1] Disponível em http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/veja-a-decisao-que-proibe-debate-sobre-impeachment-na-faculdade-de-direito-da-ufmg/. Sobre a decisão, ver, entre outras, as notícias disponíveis em http://jornalistaslivres.org/2016/04/juiza-proibe-estudantes-de-direito-da-ufmg-de-debaterem-o-impeachment/ e http://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2016-04-30/liminar-impede-assembleia-sobre-impeachment-de-estudantes-da-ufmg.html. O Manifesto pela Democracia, disponível em https://docs.google.com/forms/d/1MoKEPYU0NJYMJtJyEMFZs83n9XgmBcxL3cEXjqGwbBQ/viewform?c=0&w=1. A Nota do CAAP, disponível em https://www.facebook.com/caapufmg/posts/1183075045066608. A Nota da UNE, disponível em http://www.une.org.br/noticias/liminar-proibe-estudantes-de-direito-da-ufmg-de-debater-politica/. A Nota da OAB-BA, disponível em http://www.oab-ba.org.br/single-noticias/noticia/nota-de-preocupacao-3/?cHash=d9ef133abc9e8cbe463ee6783d5bf1d6. A Nota de Alerta da OAB-MG, disponível em http://www.oabmg.org.br/noticias/7603/Nota-de-alerta-da-OABMG-sobre-liminar-que-impediu-assembleia-na-Faculdade-de-Direito-da-UFMG. A Nota da Direção da Faculdade de Direito da UFMG, disponível em http://www.direito.ufmg.br/index.php?option=com_content&view=article&id=471:nota-da-diretoria&catid=78:noticias. Acesso em 02 de maio de 2016.
[2] CF. o site do CAAP, http://www.caap.org.br/o-centro-academico-pg-43dbe
[3] Veja-se, pois, a crítica que fizemos ao julgamento do HC 126.292 em que o STF solapou a presunção de inocência: BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco Moraes, BACHA E SILVA, Diogo, PEDRON, Flavio Quinaud, CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Presunção de Inocência: uma contribuição crítica à controvérsia em torno do julgamento do Habeas Corpus n.º 126.292 pelo Supremo Tribunal Federal. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/presuncao-de-inocencia-uma-contribuicao-critica_/, acesso em 01 de Maio de 2016.
[4] Também conferir nossas críticas ao episódio “Morogate”: BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco Moraes, BACHA E SILVA, Diogo, CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Sobre o Poder Judiciário Brasileiro e o risco do Estado de Exceção no Brasil: em defesa do Regime Constitucional Democrático em tempos de “Morogate”. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/sobre-o-poder-judiciario-brasileiro-e-o-risco-do-estado-de-excecao-no-brasil-em-defesa-do-regime-constitucional-democratico-em-tempos-de-morogate1-por-alexandre-gustavo-melo-fra/, acesso em 01 de Maio de 2016. Vale também a lembrança da decisão de 2013 dada por juiz federal contra a Universidade Federal de Ouro Preto ordenando o fechamento de um Programa de Pesquisa, violando os princípios constitucionais da liberdade, do pluralismo (art. 206) e da autonomia das Universidades (art. 207). Cf. http://www1.folha.uol.com.br/poder/2013/08/1333670-justica-suspende-curso-de-difusao-do-comunismo-em-universidade-federal-mineira.shtml.
[5] YAROCHEWISKY, Leonardo Isaac. Ela voltou. Disponível em http://emporiododireito.com.br/ela-voltou/, acesso em 2 de maio de 2016.
[6] STRECK, Lenio Luiz. Foi por saudade da ditadura que a juíza proibiu reunião de alunos da UFMG? Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-abr-30/lenio-streck-proibicao-discutir-impeachment-foi-saudade-ditadura, acesso em 01 de Maio de 2016.
[7] SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justiça. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2011. p. 110-111.
[8] CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Devido Processo Legislativo. 3.ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2016.
[9] É isso, inclusive, o que transparece da decisão do STF na citada ADPF. n. 187.
[10] Quando fechávamos o artigo, recebemos a notícia de que o Agravo nº 1.0000.16.030187-5/001, interposto pelo CAAP foi admitido, com efeito suspensivo, pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais.
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