Por Redação - 26/05/2017
A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) protocolou ontem na Câmara dos Deputados mais um pedido de impeachment contra o Presidente interino Michel Temer. No pedido, reproduzindo integralmente o voto emitido pelo Conselheiro Flávio Pansieri, o Conselho Federal afirma que Temer praticou crime de responsabilidade e feriu o decoro em conversas gravadas pelo empresário Joesley Batista.
Leia a íntegra do pedido de impeachment:
EXCELENTÍSSIMO SENHOR PRESIDENTE DA CÂMARA DOS DEPUTADOS, DEPUTADO FEDERAL RODRIGO MAIA.“A Comunidade política conduz, comanda, supervisiona os negócios, como negócios privados seus, na origem, como negócios públicos depois, em linhas que se demarcam gradualmente. O súdito, a sociedade, se compreendem no âmbito de um aparelhamento a explorar, a manipular, a tosquiar nos casos extremos. Dessa realidade se projeta, em florescimento natural, a forma de poder, institucionalizada num tipo de domínio: o patrimonialismo, cuja legitimidade se assenta no tradicionalismo – assim porque sempre foi.” Raymundo Faoro [1]
CLAUDIO PACHECO PRATES LAMACHIA, brasileiro, casado, Advogado, Presidente Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, inscrito no CPF n. 293.957.630-00, portador da Cédula de Identidade RG n. 70.06394436, SSP/RS, Título de Eleitor nº 044380210469, Zona 160, Seção 0101, com endereço profissional situado à SAUS Qd. 05, Lote 01, Bloco M, Brasília/DF, vem, com fulcro no art. 14 da Lei nº 1.079/1950, à presença de Vossa Excelência, com fundamento nos artigos 85, V e VII, da Constituição Federal, bem como no artigo 9º, n. 7, da Lei nº 1.079/1950; bem como no Regimento Interno desta Egrégia Casa, apresentar
DENÚNCIA POR CRIME DE RESPONSABILIDADEem face do PRESIDENTE DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, Excelentíssimo Sr. MICHEL MIGUEL ELIAS TEMER LULIA, com endereço para comunicações no Palácio do Planalto, Praça dos Três Poderes, Brasília/DF, consoante as razões a seguir apresentadas.
I – PREÂMBULO:Em reunião extraordinária ocorrida no dia 20 de maio de 2017, o Plenário do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil deliberou, por 25 (vinte e cinco) votos a 1 (um), acolhendo o voto do Relator, pelo pedido de instauração de processo de impeachment face ao Excelentíssimo Senhor Presidente da República Federativa do Brasil Michel Miguel Elias Temer Lulia, porquanto reconhecida a prática de infrações político-administrativas ensejadoras de crime de responsabilidade, descritos no art. 85, V e VII, da Constituição Federal, bem como no art. 9º, n. 7, da Lei nº 1.079/1950 (conforme certidão em anexo).
O voto, emitido pelo ilustre Relator, Conselheiro Federal Flávio Pansieri (PR), é reproduzido integralmente na presente petição, cujos fundamentos e argumentos passam a compor as razões desta denúncia:
II – VOTO DO RELATOR: Processo n: 49.0000.2017.004421-4/COP Origem: Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil Assunto: Comissão Especial para análise do enquadramento constitucional das condutas praticadas pelo Excelentíssimo Senhor Presidente da República Federativa do Brasil a par dos inquéritos 4483 e 4489 que tramitam perante o Supremo Tribunal Federal. Comissão Especial: Flávio Pansieri (Relator), Ary Rahiant Neto, Daniel Jacob, Delosmar Domingos de Mendonça Júnior e Márcia Melaré.
RELATÓRIO
Trata-se de processo do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, em Comissão Especial, cujo desiderato é analisar o enquadramento constitucional das condutas praticadas pelo Excelentíssimo Senhor Presidente da República Federativa do Brasil, Michel Miguel Elias Temer Lulia, discriminadas nos Inquéritos 4483 [2] e 4489 [3] que tramitam perante o Supremo Tribunal Federal, bem como, confirmadas pelo mesmo nos veículos de comunicação que mergulharam o País em uma crise institucional sem precedentes.
O Procurador-Geral da República solicitou a instauração de Inquérito na mais alta instância do Judiciário nacional após o Ministério Público Federal ter sido procurado por integrantes do grupo empresarial JBS, dentre eles o colaborador Joesley Mendonça Batista, presidente da sociedade empresária J & F Investimentos S.A. O colaborador se dispôs a narrar fatos e apresentar provas de supostos crimes praticados por autoridades que dispõem de foro por prerrogativa de função, dentre os quais o Excelentíssimo Senhor Presidente da República Federativa do Brasil, Michel Miguel Elias Temer Lulia.
Consoante descrito no Inquérito 4483/STF (fls. 03), realizou-se no dia 07 de abril de 2017 uma reunião preliminar em que foram colhidos os depoimentos dos aspirantes a colaboradores Joesley Mendonça Batista e Ricardo Saudi. Destaca-se, ainda, que no ensejo da reunião, o primeiro colaborador mencionado entregou oficialmente ao Ministério Público Federal, como elemento de prova, quatro gravações ambientais que foram efetivadas pelo próprio colaborador, denominadas nos autos do Inquérito de “PR1 14032017.WAV”, “PR2 13032017.WAV”, “PR2 16032017.WAV” e “Aeunique.WAV”.
O primeiro áudio se refere a um encontro entre o colaborador Joesley Mendonça Batista e o Excelentíssimo Senhor Presidente da República Federativa do Brasil, ocorrido no dia 04 de março de 2017, por volta das 22h40min, na então residência oficial da Presidência da Republica, o Palácio do Jaburu, localizado em Brasília no Distrito Federal. Nessa ocasião, com livre vontade e consciente da ilicitude de sua conduta, o Chefe do Poder Executivo procedeu de modo incompatível com a dignidade e o decoro de seu cargo ao receber, discutir nomeações, e disponibilizar homem de sua confiança para contato direto com a pessoa do colaborador Joesley Mendonça Batista.
Segundo consta do Termo de Declaração do colaborador, constantes dos Inquéritos 4483/STF e 4489/STF, bem como das gravações efetuadas pelo próprio interlocutor, e ainda dos pronunciamentos e declarações do Excelentíssimo Senhor Presidente da República Federativa do Brasil, prestados na mídia, na referida data houve encontro entre ambos, oportunidade em que Joesley teria, na calada da noite, adentrado o Palácio da Jaburu sob circunstâncias pouco usuais e contrárias aos regramentos legais de conduta para os agentes do executivo, quais sejam, sem se identificar conforme reza o protocolo, e além disso, sem lhe ter sido conferida audiência oficial com a Presidência da República, para tratar de assuntos de interesse do grupo empresarial JBS.
Na oportunidade, pelo que consta, o Excelentíssimo Senhor Presidente da República Federativa do Brasil discutiu a nomeação de pessoa favorável aos interesses do grupo econômico para a presidência do CADE [4], bem como suposto favor negado pelo Ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, havendo, em tese, a acolhida do pedido em tais questões. Além disso, teria o colaborador alertado que: “Eu dei conta de um lado o juiz, dá uma segurada, do outro lado o juiz substituto” e “[...] eu consegui dentro da força tarefa que também ele tá me dando informação”.
O Excelentíssimo Senhor Presidente da República Federativa do Brasil, após tomar ciência dos fatos por meio da imprensa, que divulgou parte do conteúdo constante do Inquérito 4483/STF, fez dois pronunciamentos oficiais nas datas de 18 e 20 de maio de 2017, além de conceder entrevista ao Jornal Folha de São Paulo, na data de 21 de maio de 2017, confirmando o diálogo.
É o relatório.
VOTO
PRELIMINAR
No que tange à construção deste voto, seja na descrição e interpretação do conjunto probatório que lhe confere arrimo, seja na tipificação das condutas atribuídas ao Excelentíssimo Senhor Presidente da República Federativa do Brasil, considera-se de modo oportuno e preliminar:
i. que as gravações apresentadas pelo colaborador Joesley Mendonça Batista estão sendo objeto de perícia realizada pela Polícia Federal por suposta edição em seu conteúdo. Entretanto, este voto não se pauta única e exclusivamente no conteúdo dos mencionados áudios, mas também nos depoimentos constantes dos Inquéritos e, em especial, nos pronunciamentos oficiais e manifestações do Excelentíssimo Senhor Presidente da República Federativa do Brasil que confirmam seu conteúdo, bem como a realização do encontro com o colaborador;
ii. que não se analisará a validade ou licitude da gravação no aspecto de sua colheita ou suposta edição, pois a legitimidade/validade dos trechos do diálogo utilizados para este relatório e enquadramento nas hipóteses de crime de responsabilidade, decorre do reconhecimento por parte do Excelentíssimo Senhor Presidente da República Federativa do Brasil da existência da reunião e ainda da confirmação das falas citadas.
1. DO RESGATE DO INSTITUTO DO IMPEACHMENT NO BRASIL: ORIGEM, NATUREZA JURÍDICA E CARACTERÍSTICAS
O impedimento do Chefe do Poder Executivo federal está previsto na Constituição da República e em legislação infraconstitucional. O fundamento para sua admissibilidade é a existência de uma conduta cujos efeitos configurem atentado contra a ordem jurídica estabelecida pela Constituição. Por essa razão, o processo de impeachment se reveste de uma natureza híbrida que combina elementos jurídicos e políticos. Em outras palavras, trata-se de uma espécie de responsabilidade específica, a político-administrativa, que possui similitude ora com a responsabilidade civil, ora com a responsabilidade criminal, mas com estas não se confunde.
Nesse sentido, é uma dolorosa medida a ser adotada para a salvaguarda da ordem jurídica. Dolorosa por se tratar do mais traumático momento do regime democrático ao se anular o que foi legitimado pelas urnas. Contudo, a conquista do poder não pode ocorrer a todo custo e sob qualquer meio, sob pena de se bombardear o Estado de Direito. Assim, embora complexo, o impedimento é necessário para se afirmar a fortaleza do constitucionalismo democrático como guia seguro para a manutenção do Estado e da sociedade. Como bem afirma Karl Loewenstein:
“O poder sem controle é, por sua própria natureza, maléfico. O poder encerra em si mesmo a semente de sua própria degeneração. Isto quer dizer que, quando não está limitado, o poder se transforma em tirania e despotismo. Daí que o poder sem controle adquire um acento moral negativo que revela o demoníaco no elemento do poder e o patológico no processo do poder. ” [5]
O impeachment é um processo cuja origem remonta à Inglaterra e ao longínquo ano de 1376, quando o Good Parliament processou William IV, o Barão Latimer [6]. Nos Estados Unidos, o processo de impedimento do Presidente da República está previsto no texto da Constituição de 1787. A natureza do processo de impeachment foi objeto de intensa discussão durante a Convenção da Filadélfia, conforme registrado na conhecida obra O Federalista. Em suma, a discussão levada a cabo pelos founding fathers versava sobre a natureza desse ato, isto é, se o processo tinha feição apenas jurídica ou se se poderia haver a imbricação de elementos políticos. Sagraram-se vencedores aqueles que defenderam natureza híbrida, consagrando-se um sistema em que a Casa dos Representantes faz acusação e o Senado estabelece o julgamento.
Ao longo de sua história constitucional, três foram os Presidentes da República nos Estados Unidos que tiveram processo de impeachment deflagrado pela House of Representatives:
i. Andrew Johnson, 17º Presidente que foi eleito em 1865 após o assassinato de Abraham Lincoln. Acusado de violar a Tenure of Office Act, uma lei que reduzia os poderes do Chefe do Executivo, Johnson foi acusado pela Casa dos Representantes e não perdeu o cargo por apenas um voto dos 2/3 necessários à sua deposição;
ii. Richard Nixon, 37º Presidente, reeleito em 1972. Diante do escândalo Watergate, no qual ficou provado que a Presidência tinha conhecimento da violação do Comitê Nacional do Partido Democrata, e considerando que à época sua condenação era dada como insofismável, Nixon apresentou renúncia ao cargo;
iii. Bill Clinton, 42º Presidente, eleito em 1993. A Casa deflagrou o processo após a comprovação de que o Presidente havia mentido ao negar que mantinha relações íntimas com sua estagiária, acusando-o de perjúrio e obstrução da justiça, mas o Senado repeliu as acusações sem maiores alardes dado o amplo apoio que Clinton possuía naquele momento.
Na legislação nacional, é possível encontrar elementos que caracterizam a responsabilização de autoridades estatais desde a Constituição do Império. O então vigente art. 133 tipificava as condutas passíveis de responsabilização dos Ministros de Estado:
Art. 133. Os Ministros de Estado serão responsáveis:
I. Por traição.
II. Por peita, suborno, ou concussão.
III. Por abuso do Poder.
IV. Pela falta de observância da Lei.
V. Pelo que obrarem contra a Liberdade, segurança, ou propriedade dos Cidadãos.
VI. Por qualquer dissipação dos bens públicos.
A análise desse dispositivo permite concluir que a responsabilidade dos Ministros de Estado estava adstrita à esfera penal. Assim, o impedimento dispunha de natureza jurídica, e não política, tendo sido as condutas tipificadas pela lei de 15 de outubro de 1827. A natureza política do processo de impeachment se tornou evidente com a Constituição de 1891, momento em que foi estabelecida a arquitetura normativa que vigora na Constituição de 1988: o julgamento de crimes comuns se realiza perante o Supremo Tribunal Federal e no Senado Federal são julgados os crimes de responsabilidade, cabendo à Câmara dos Deputados a declaração da procedência da acusação.
Na hipótese de recebimento da acusação no Senado, o Presidente estaria afastado de suas funções e o julgamento perante o Senado seria conduzido pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal. A condenação dependia do voto de dois terços dos membros presentes, tendo como consequência a perda do cargo e a incapacidade de exercer qualquer outro, sem prejuízo de outras ações em face do condenado. Segundo o art. 54 da Constituição de 1891:
Art. 54 - São crimes de responsabilidade os atos do Presidente que atentarem contra:
1º) a existência política da União;
2º) a Constituição e a forma do Governo federal;
3º) o livre exercício dos Poderes políticos;
4º) o gozo, e exercício legal dos direitos políticos ou individuais;
5º) a segurança interna do País;
6º) a probidade da administração;
7º) a guarda e emprego constitucional dos dinheiros públicos;
8º) as leis orçamentárias votadas pelo Congresso.
Na atualidade, o processo de impeachment em face do Presidente da República está disciplinado nos arts. 85 e 86 da Constituição Federal de 1988, com os aportes regulamentar da Lei n. 1.079, de 1950, acrescendo-se, ainda, o rito estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do processo que cassou o mandato da então Excelentíssima Senhora Presidente da República Federativa do Brasil, Dilma Vana Rousseff.
O art. 85 da Constituição descreve os atos configurados como crime de responsabilidade do Presidente da República, enquanto os arts. 5º a 12 da Lei n. 1.079 de 1950 estabelece as condutas vedadas:
Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra:
I - a existência da União;
II - o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação;
III - o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais;
IV - a segurança interna do País;
V - a probidade na administração;
VI - a lei orçamentária;
VII - o cumprimento das leis e das decisões judiciais.
Vale apontar que a Constituição, ao estabelecer o rol de crimes de responsabilidade do Presidente da República, não o faz taxativamente, como defendido por Lenio Streck, Marcelo Cattoni e Alexandre Bahia: “o rol previsto no art. 85 é meramente exemplificativo, constando sua definição completa naquela citada norma infraconstitucional.” [7]
Desde o início da era republicana brasileira, portanto, o crime de responsabilidade mantém a sua gênese normativa, a despeito de ter sofrido algumas alterações semânticas. Em síntese, a conduta que configura o pedido de impeachment precisa ser grave o suficiente para que se vislumbre um atentado contra a ordem jurídica estabelecida pela Constituição. Não se trata apenas de um mero ilícito penal, ou administrativo. É um crime de gravidade superior, pelo que afirma Uadi Lammêgo Bulos:
“Mas a natureza e os caracteres desses delicta in officio revestem-se de traços peculiares, porquanto não consignam simples faltas administrativas, nem, tampouco, meras infrações disciplinares cometidas por servidores públicos. Equivalem a algo mais pujante, pois envolvem condutas típicas, ilícitas e culpáveis, surgidas no seio da alta burocracia, derivadas da delinquência dos detentores de significativos postos do Estado.” [8]
No Brasil, a deflagração do processo de impeachment ocorreu apenas durante os governos de Fernando Collor de Mello e Dilma Vana Rousseff, embora já tenham sido protocolados inúmeros pedidos nesse sentido: Fernando Collor de Mello (29); Itamar Augusto Catiero Franco (4); Fernando Henrique Cardoso (18); Luís Inácio Lula da Silva (34); e Dilma Vana Rousseff (48).
Diferentemente do sistema parlamentarista puro, em que o Poder Executivo repousa em uma divisão entre o Chefe de Estado (que simboliza a unidade nacional a longo prazo) e o Chefe de Governo (que lida com as tensões cotidianas), no sistema presidencial, ambas as funções recaem sobre a mesma autoridade. Logo, não sendo possível destituir o gabinete e substituir o Primeiro Ministro, as crises amargadas no sistema presidencial são mais agudas e profundas. Eis a importância do processo de impeachment para este sistema. Eis o momento que o Brasil vive.
2. DOS CRIMES DE RESPONSABILIDADE
2.1. PRIMEIRA CONDUTA – Infringência ao art. 85, V, da Constituição Federal, combinado com art. 9, 7, da Lei 1.079/1950 e com os arts. 4 e 12 do Decreto 4.081/2002: proceder de modo incompatível com a dignidade e o decoro do cargo; possível exercício de advocacia administrativa, conforme dispõe o art. 321 do Código Penal.
As condutas atribuídas ao Excelentíssimo Senhor Presidente da República Federativa do Brasil demonstram, em tese, violação do ínsito decoro de seu cargo, quebrantando-se, portanto, a probidade na administração. Ao Chefe do Poder Executivo, enquanto representante e autoridade máxima deste poder, é atribuída a mais rigorosa e estrita observância aos princípios da administração pública, como preceitua o art. 37 da Constituição e a legislação infraconstitucional.
Tais princípios são estruturantes do Estado de Direito, enquanto reguladores da legítima atuação do Estado e de seus representantes, de modo que a ofensa a tais normas, por si só, qualifica-se como verdadeiro ataque aos mais básicos aspectos das instituições constitucionais.
Esse dever nada mais é do que a materialização do princípio da publicidade, que encerra importante função de transparência, essencial na medida que não se cogita de um Estado Democrático de Direito que compactue com ocultamento dos assuntos de interesse público. Nesse sentido, tem-se a lição de Carlos Ari Sundfeld, para quem o dever de publicidade é algo amplo, não se resumindo à publicação enquanto pressuposto de existência e validade, mas, em paralelo, no “dever de agir de modo diáfano, de se franquear conhecimento público, de se desnudar, mesmo quando não esteja em pauta a notificação de seus atos” [9].
Da mesma forma, Norberto Bobbio alerta acerca da aparente queda da democracia enquanto “poder visível”, remetendo-se a Péricles [10], pelas formas de “governo invisível”, afirmando que:
“Seria de todo modo uma tendência oposta à que deu vida ao ideal da democracia como poder visível: a tendência não mais rumo ao máximo controle do poder por parte dos cidadãos, mas ao contrário rumo ao máximo controle dos súditos por parte de quem detém o poder.” [11]
Quanto à moralidade administrativa, maiores ilações são dispensáveis, bastando afirmar que encapsulam os princípios da lealdade e boa-fé, aqui em sua forma objetiva, que força o agente público a exercer sua função de modo transparente, leal, e de maneira a facilitar o exercício de direitos por parte do cidadão. Conforme pontua Manoel de Oliveira Franco Sobrinho:
“Direito e poder é uma coisa. Direito e Administração, outra. Não se concebe o direito sem regras ou normas. Nem o poder sem limitações. Que não tenham raízes na natureza dos fatos. Quanto à Administração, direito e poder, marca-se pelo direito e afirma-se pela justiça. Quanto as obrigações se criam, dentro ou fora da área da Administração, condicionam-se as relações jurídicas. Partindo de certas premissas lógicas, essas relações no sentido volitivo envolvem posições primeiro de moral e depois quem sabe de direito. [...] Na escolha entre dois caminhos, há uma linha de demarcação de princípios morais. E princípios que fazem parte do sistema jurídico. E fazem parte porque integrados estão no conceito de moralidade administrativa. Nada mais.” [12]
Estes preceitos são basilares em nosso sistema constitucional, e sua não observância caracteriza crime de responsabilidade, nos termos do art. 85, V, que o tipifica na forma de atentado contra a probidade na administração. Tais princípios são aplicáveis a todo e qualquer órgão e membro da Administração Pública, incluídos aqui os agentes políticos, tais como o Presidente da República, abrangidos pelo conceito de agente público, que, segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro, “é toda pessoa física que presta serviços ao Estado e às pessoas jurídicas da Administração Indireta” [13].
Conforme aventado no relatório, verifica-se que o encontro entre o colaborador Joesley Batista e o Excelentíssimo Senhor Presidente da República Federativa do Brasil, ocorreu às 22h40min, havendo protocolo não habitual, tanto em função do horário da reunião, quanto no acesso utilizado pelo interlocutor, à garagem do Palácio do Jaburu, entrando diretamente, sem identificar-se na portaria, e mais, não tendo o encontro sido registrado na agenda oficial da Presidência.
Ora, o Código de Conduta Ética dos Agentes Públicos, Decreto n. 4.081/2002, que é aplicável objetivamente ao Presidente da República [14], estabelece a obrigatoriedade, entre outras, de atuar com devido zelo aos princípios da administração pública, particularmente ao da transparência, razão pela qual fora estabelecido que:
Art. 4º Para os fins do disposto neste Código, o agente público deverá:
V - divulgar e manter arquivada, na forma que for estabelecida pela CEPR, a agenda de reuniões com pessoas físicas e jurídicas com as quais se relacione funcionalmente; e
VI - manter registro sumário das matérias tratadas nas reuniões referidas no inciso V, que ficarão disponíveis para exame pela CEPR.
No mais, veja-se que o decreto é particularmente criterioso quanto à concessão de audiências públicas a entes privados, seja a pessoas físicas em interesse próprio, seja quando buscam intercessão em favor de pessoas jurídicas. Aqui tem-se que o termo decisão de alçada é de significado amplo, denotando quaisquer atuações em prol do convencimento de servidor, conduta que comumente se denomina como lobby.
Art. 12. As audiências com pessoas físicas ou jurídicas, não pertencentes à Administração Pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios ou de organismo internacional do qual o Brasil participe, interessada em decisão de alçada do agente público, serão:
I - solicitadas formalmente pelo próprio interessado, com especificação do tema a ser tratado e a identificação dos participantes;
O encontro em desacordo com a formalidade legal jamais foi contestado, o que, por conseguinte, quebranta dois paradigmas de qualquer governo, quais sejam, a transparência governamental em suas relações e a confiança dos cidadãos para com a autoridade administrativa máxima do país. Em seus dois pronunciamentos oficiais, realizados nos dias 18 e 20 de maio de 2017, o Excelentíssimo Senhor Presidente da República Federativa do Brasil não nega ter se encontrado com o colaborador Joesley Batista nas condições supramencionadas (às escusas de registros oficiais), chegando até mesmo a reconhecer a realização da reunião em ambiente institucional.
Trecho da transcrição do pronunciamento do dia 18 de maio de 2017 [15]: “Ouvi realmente o relato de um empresário, que por ter relações com um ex-deputado, auxiliava a família do ex-parlamentar”.
Cautela especial, ressalte-se, deveria ter sido observada pela própria qualidade do interlocutor Joesley Mendonça Batista, enquanto presidente e acionista de empresas que, notoriamente, estão sendo investigadas em três diferentes operações da Polícia Federal, à época dos fatos (Operação Greenfield, que apura a irregularidade no uso de fundos de pensão para a empresa; Operação Sepsis que investiga o uso de propina para a liberação de recursos do fundo de investimentos do FGTS; Operação Cui Buono, que apura irregularidades em créditos junto à Caixa Econômica Federal), havendo publicização, após as reuniões, acerca de outras duas operações (Operação Carne Fraca, que investiga se houve pagamento de propina para liberação de certificados sanitários; e Operação Bullish que investiga contratos que somam R$ 8 bilhões celebrados entre a JBS e o BNDES;). Mostra-se temerária a atitude de uma autoridade tão elevada da República em realizar um encontro com estas características, bem como, representa afronta expressa aos ditames expostos nos arts. 4º e 12 do Decreto 4.081/2002.
Além disso, na conversa travada entre o colaborador e o Excelentíssimo Senhor Presidente da República Federativa do Brasil, verifica-se aparente esforço, do primeiro em buscar um nome favorável aos interesses da companhia do empresário para atuar enquanto presidente do CADE, apontando sempre “a importância de ter um presidente aliado do governo”, ao que o Excelentíssimo Senhor Presidente da República Federativa do Brasil haveria respondido que teria “uma pessoa com a qual pode ter ‘conversa franca” [16].
Fato ainda mais grave envolve o nome do atual Ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, que, pelo que se extrai do depoimento de Joesley Batista, teria negado determinado favorecimento, e, questionando o Excelentíssimo Senhor Presidente da República Federativa do Brasil, recebeu resposta favorável, de modo que “faria ser atendido o pleito” [17], intercedendo junto ao Ministro da Fazenda. O contexto da conversa pode induzir à conclusão pela prática tanto de infração administrativa [18], quanto do possível crime de advocacia administrativa [19], com o fito de favorecer a holding do colaborador.
Veja-se, nesse ínterim, que quando avaliada a possibilidade de cometimento de crime de advocacia administrativa, há evidente afronta à Administração Pública, particularmente contra sua moralidade e probidade. É válido relembrar também a lição de Franz von Liszt, que, ao introduzir os crimes e delitos contra a Administração Pública, faz em sede de considerações gerais o seguinte apontamento:
“A moderna concepção de Estado abre-lhe e facilita-lhe de dia em dia, por novos domínios, o caminho que tem de seguir para o preenchimento de sua missão, isto é, colligir as forças collectivas e applicalas a bem da collectividade. Ao lado da protecção dos interesses individuaes, a que um doutrinarismo de vistas curtas pretende limitar a missão do Estado jurídico, figura a promoção dos interesses collectivos como supremo alvo do Estado administrativo.” [20]
Ademais, observemos que a disponibilização de homem de confiança, a quem seria conferida a autoridade do nome do Excelentíssimo Senhor Presidente da República Federativa do Brasil, para tratar de assuntos estratégicos aos interesses da J&F Investimentos S.A., sendo tal encarregado o Deputado Rodrigo Rocha Loures, enquanto caminho mais adequado para o colaborador manter contato direto com Presidência, demonstra gravíssima situação, por duas distintas razões.
Primeiramente, vez que, quando ao dispôr da Presidência da República ao interesse privado, em detrimento do público, há caracterização dos já mencionados princípios basilares do Estado de Direito, caracterizado como o paradigma de primazia da lei (geral e abstrata), em detrimento dos privilégios (específicos e individuais), como bem ponderou Friedrich A. Hayek, em O Caminho para a Servidão:
“Na verdade, o primado da lei, mais do que o primado do contrato, deveria ser talvez considerado o verdadeiro opositor do primado do status. É o Estado de Direito, na acepção de primado da lei formal, a ausência de privilégios legais de determinadas pessoas designadas pela autoridade, que salvaguarda a igualdade perante a lei, que é o oposto do governo arbitrário.” [21]
Em segundo lugar, tem-se notoriamente que esse parlamentar, na ocasião lotado como assessor da Presidência da República, foi filmado recebendo uma mala com R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais) em dinheiro, e graças aos desdobramentos da Operação Patmos da Polícia Federal, em ação controlada que fora autorizada pelo Supremo Tribunal Federal, foi afastado de suas funções políticas. Conforme se observa do áudio (Áudio PR1 14032017.WAV) da conversa:
(16:00-16:09) Joesley Batista: Falar sobre isso, falar contigo qual é a melhor maneira... que eu vinha falando através do Geddel, através do... Eu não vou lhe incomodar, evidente, se não for algo assim...
(16:08-16:11) Excelentíssimo Senhor Presidente da República Federativa do Brasil: [inaudível].
(16:11-16:12) Joesley Batista: Eu sei disso. Por isso é que.
(16:12-16:13) Excelentíssimo Senhor Presidente da República Federativa do Brasil: [inaudível].
(16:13-16:14) Joesley Batista: É o Rodrigo?
(16:14-16:15) Excelentíssimo Senhor Presidente da República Federativa do Brasil: É o Rodrigo.
(16:15-16:16) Joesley Batista: Ah, então ótimo.
(16:16-16:25) Excelentíssimo Senhor Presidente da República Federativa do Brasil: [inaudível]... pode passar por meio dele. É da minha mais estrita confiança.
(16:25-16:31) Joesley Batista: Eu prefiro combinar assim ó: Se for alguma coisa que eu precisar, tal, então eu falo com o Rodrigo. Se for algum assunto desse tipo aí...
Assim, por tudo o que foi ponderado, pode-se afirmar, em juízo preliminar, a ocorrência, em tese, de crime de responsabilidade praticado pelo Excelentíssimo Senhor Presidente da República Federativa do Brasil pela infringência do disposto no art. 85, V, cumulado com o art. 9º, 7, da Lei 1.079/1950, que dispõe que é crime de responsabilidade contra a probidade na administração o proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra, e o decoro do cargo exercido.
2.2. SEGUNDA CONDUTA – Infringência ao art. 85, VII, da Constituição Federal, combinado com o art. 9, 7, da Lei 1.079/1950: ato omissivo próprio no exercício da função pública.
Conforme se depreende da análise dos autos dos Inquéritos 4489 e 4483, sob relatoria do Ministro Edson Fachin, no Supremo Tribunal Federal, há uma série de elementos probatórios liminares, que caracterizam, em princípio, a prática de crime de responsabilidade, consistente em omissão no dever legalmente instituído de levar crime de ação pública, do qual teve conhecimento no exercício da função pública, quando tratar-se de crime de cuja ação seja exercida de forma pública incondicionada, como se depreenderá dos fatos.
Passando-se à avaliação da prova disponibilizada em função de acordo de colaboração firmada com o Ministério Público Federal, Joesley Mendonça Batista apresentou, além de seu depoimento, quatro áudios via escuta ambiental, onde são capturadas falas de diversos agentes políticos, incluindo o Excelentíssimo Senhor Presidente da República Federativa do Brasil, áudios esses que, em sua essência, correspondem à conversas confirmadas em seus pronunciamentos oficiais, de modo a caracterizar fato incontroverso (consoante já mencionado).
Consoante se extrai do depoimento prestado pelo colaborador, Joesley Mendonça Batista, na data de 04 de março de 2017, por volta das 22h40min, ocorreu o já descrito encontro entre sua pessoa e o Excelentíssimo Senhor Presidente da República Federativa do Brasil, na então residência presidencial, o Palácio do Jaburu, em Brasília.
O encontro com o Excelentíssimo Senhor Presidente da República Federativa do Brasil estava sendo gravado por Joesley Batista, tendo sido discutido, na oportunidade, uma variada gama de assuntos, passando da aceleração da economia aos sucessos obtidos pelo governo, bem como à prisão do ex-Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Consentino da Cunha.
A questão de interesse surge quando o colaborador informa ao Excelentíssimo Senhor Presidente da República Federativa do Brasil, ao que se infere dos áudios, acerca do corrompimento de três funcionários públicos: um juiz, um juiz substituto e um procurador da república. Para ilustração, transcreve-se aqui o áudio (Áudio PR1 14032017.WAV), apontando ainda o momento da fala dos interlocutores:
(11:44-12:07) Joesley Batista: Eu tô segurando as pontas, tô indo. Nesse processo, eu tô meio enrolado aqui né, no processo assim. Isso, isso. É investigado, não tenho ainda a denúncia. Eu dei conta de um lado o juiz, dá uma segurada, do outro lado o juiz substituto que é um cara que ficou…
(12:07-12:09) Excelentíssimo Senhor Presidente da República Federativa do Brasil: Está segurando os dois…
(12:09-12:41) Joesley Batista: Tô segurando os dois. Então eu consegui dentro da força tarefa que também ele tá me dando informação. E eu... lá que eu estou para dar conta de trocar o procurador que está atrás de mim. Se eu der conta, tem o lado bom e o lado ruim: o lado bom é que dá uma esfriada até o outro chegar. O lado ruim é que se vem um cara com raiva, que não sei o que…
(12:40-12:41) Excelentíssimo Senhor Presidente da República Federativa do Brasil: Mas o que você está?
(12:42-12:57) Joesley Batista: O que está me.. Me ajudando está bom, beleza. Agora, o principal que é um … tem um que tá me investigando. Eu consegui colar um no grupo. Agora, eu tô tentando trocar…
(12:56-12:57) Excelentíssimo Senhor Presidente da República Federativa do Brasil: O que tá…
(12:57-13:28) Joesley Batista: Isso. Então, tá meio assim… Ele saiu de férias, até essa semana eu fiquei preocupado que saiu um burburinho de que iam trocar ele, eu fiquei com medo. Tô contando essa história só para dizer assim: eu tô me defendendo, me segurando. Os dois lá tô mantendo, tudo bem. Mas o Geddel tava aqui, aquele negócio da anistia e quase não deu.
Ressalta-se, quanto a tal diálogo, que o próprio Excelentíssimo Senhor Presidente da República Federativa do Brasil confirma sua ocorrência, o que se depreende, particularmente, de entrevista concedida ao Jornal Folha de São Paulo, publicada na data de 22 de maio de 2017 [22], onde afirma, em conversa com a entrevistadora, o conteúdo de sua reunião com Joesley Batista:
Entrevistadora: O Joesley fala em zerar, liquidar pendências. Não sendo dinheiro, seria o quê?
Excelentíssimo Senhor Presidente da República Federativa do Brasil: “Não sei. Não dei a menor atenção a isso. Aliás, ele falou que tinha [comprado] dois juízes e um procurador. Conheço o Joesley de antes desse episódio. Sei que ele é um falastrão, uma pessoa que se jacta de eventuais influências. E logo depois ele diz que estava mentindo.”
Entrevistadora: Não é prevaricação se o sr. ouve um empresário dentro da sua casa relatando crimes?
Excelentíssimo Senhor Presidente da República Federativa do Brasil: “Você sabe que não? Eu ouço muita gente, e muita gente me diz as maiores bobagens que eu não levo em conta. Confesso que não levei essa bobagem em conta. O objetivo central da conversa não era esse. Ele foi levado a conversa para um ponto, as minhas respostas eram monossilábicas...”
Entrevistadora: Quando o sr. fala “ótimo, ótimo”, o que o sr. queria dizer?
Excelentíssimo Senhor Presidente da República Federativa do Brasil: “Não sei, quando ele estava contando que estava se livrando das coisas etc.”
Entrevistadora: Era nesse contexto da suposta compra de juízes.
Excelentíssimo Senhor Presidente da República Federativa do Brasil: “Mas veja bem. Ele é um grande empresário. Quando tentou muitas vezes falar comigo, achei que fosse por questão da [Operação] Carne Fraca. Eu disse: ‘Venha quando for possível, eu atendo todo mundo’.[Joesley disse] ‘Mas eu tenho muitos interesses no governo, tenho empregados, dou muito emprego’. Daí ele me disse que tinha contato com Geddel [V. Lima, ex-ministro], falou do Rodrigo [Rocha Loures], falei: ‘Fale com o Rodrigo quando quiser, para não falar toda hora comigo’.”
Entrevistadora: [...] Por que não estava na agenda? A lei manda.
Excelentíssimo Senhor Presidente da República Federativa do Brasil: “Você sabe que muitas vezes eu marco cinco audiências e recebo 15 pessoas. Às vezes à noite, portanto inteiramente fora da agenda. Eu começo recebendo às vezes no café da manhã e vou para casa às 22h, tem alguém que quer conversar comigo. Até pode-se dizer, rigorosamente, deveria constar da agenda. Você tem razão.”
Entrevistadora: Foi uma falha?
Excelentíssimo Senhor Presidente da República Federativa do Brasil: “Foi, digamos, um hábito.”
Entrevistadora: Um hábito ilegal, não?
Excelentíssimo Senhor Presidente da República Federativa do Brasil: “Não é ilegal porque não é da minha postura ao longo do tempo [na verdade, está na lei 12.813/13]. Talvez eu tenha de tomar mais cuidado. Bastava ter um detector de metal para saber se ele tinha alguma coisa ou não, e não me gravaria.”
O ato praticado pelo Chefe do Executivo, posteriormente ao recebimento da informação de Joesley Batista, incorreu, em tese, em omissão própria, isto é, omitiu-se de um dever de agir legalmente imposto. Quanto a tais delitos, vale ponderar que nos crimes omissivos basta a abstenção, a desobediência ao dever de agir, sendo crimes de mera conduta, isto é, que independem do resultado (consumação ou não do fato) para que ensejem reprovação.
Ao se omitir de prestar informações, as quais chegaram a seu conhecimento pelo cargo que exercia, o Excelentíssimo Senhor Presidente da República Federativa do Brasil teria incidido em ato ilegal, vez que, como servidor público, exigi-se-lhe conduta condizente com os princípios que regem a administração. Mais do que isso, deve agir em consonância com a regra que estabelece um comportamento obrigatório ao membro da administração.
Mostra-se repudiável a aparente falha na comunicação da ocorrência de graves irregularidades, que, não meramente irregularidades administrativas, mas reveste provavelmente de caráter criminoso, como no caso em apreço, no qual se tem notícia que um particular afirma prontamente que “deu conta” do juiz, responsável por determinado caso, e ainda de seu substituto, e, além disso, cita, alguém de “dentro da força tarefa que também ele tá me dando informação”.
Ou seja, houve a comunicação, pelo interlocutor, da ocorrência de ao menos um tipo penal certo, que emerge da afirmação de que possui um contato não republicano, dentro da força tarefa do Ministério Público Federal, que lhe está passando informações, caracterizando, supostamente, crime de violação de sigilo funcional, cuja tipificação encontra-se no art. 325, do Código Penal, crime pelo qual o exercício da ação penal é de natureza pública incondicionada.
Quando confrontada a violação ao dever público de comunicação de irregularidade, ao dispositivo constitucional do art. 85, VII da Constituição Federal, que estabelece como crime de responsabilidade o ato do Presidente da República que atente contra o cumprimento das leis, verifica-se a demonstração de hipótese viável de seu processamento, ainda mais quando confrontado ao dispositivo regulamentador, constante do art. 9º, 7, da Lei 1.079/1950, vez que houve omissão.
Tal fato demonstra, apesar de ressalvadas as cautelas necessárias acerca de juízos definitivos quando da fase inquisitorial, ato de incontestável gravidade, incompatível com os deveres constitucionais da Administração Pública. A gravidade do ato o macula com peculiaridade ímpar, de modo a caracterizar o delito funcional em seu mais elevado patamar político.
DISPOSITIVO
Pelas razões expostas, a Comissão Especial entende que houve a prática de infrações cometidas pelo Excelentíssimo Senhor Presidente da República Federativa do Brasil ensejadores de crime de responsabilidade previstos no art. 85, V e VII, da Constituição Federal de 1988, combinado com art. 9, 7, da Lei n. 1.079/1950, que fundamentam a instauração do processo de impeachment em face do Chefe do Executivo federal.
III – DOS PEDIDOS:
Face ao exposto, o Denunciante requer:
a) Que a presente Denúncia seja recebida e processada nos termos do que estabelecem a Constituição Federal e o Regimento Interno dessa Casa, para os fins de reconhecer a prática, pelo Excelentíssimo Senhor Presidente da República Federativa do Brasil, dos Crimes de Responsabilidade descritos no art. 85, V e VII, da Constituição Federal, e no art. 9º, n. 7, da Lei n. 1.079/1950, encaminhando-se, por conseguinte, os autos ao Senado Federal, onde será julgada para impor ao Denunciado a pena de perda do mandato, bem como inabilitação para exercer cargo público pelo prazo de oito anos, nos termos do art. 52, parágrafo único, da Constituição Federal.
b) Pede-se a produção de prova testemunhal, consistente na oitiva das pessoas ao final indicadas, as quais deverão ser intimadas para tal finalidade nos termos do art. 18 da Lei n. 1.079/1950, sem prejuízo de outras.
Brasília, 25 de maio de 2017.
Claudio Lamachia
Presidente do Conselho Federal da OAB
Título de Eleitor n. 044380210469
Zona 160 Seção 0101
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.Fonte: Ordem dos Advogados do Brasil
Notas e Referências:
[1] FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3ª ed. Rev. São Paulo: Globo, 2001, p. 819.
[2] Autos de Inquérito 0004077-70.2017.1.00.0000, onde são apuradas as condutas dos investigados Michel Miguel Elias Temer Lulia, Aécio Neves da Cunha e Rodrigo Santos da Rocha Lourdes.
[3] Autos de Inquérito 0004385-09.2017.1.00.0000, onde são apuradas as condutas do investigado.
[4] Conselho Administrativo de Defesa Econômica.
[5] LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. Barcelona: Editorial Ariel, 1983, p. 28.
[6] Confira: Encyclopedia Britannica: https://www.britannica.com/topic/impeachment; e Parliament UK: https://www.parliament.uk/site-information/foi/foi-and-eir/commons-foi-disclosures/other-housematters/impeachment-2015/.
[7] STRECK, L.; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo A.; BAHIA, A. Comentário ao artigo 85. In: CANOTILHO, J.J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 1287.
[8] BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. 9ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 21015. p. 1257.
[9] SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. 4ª ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Malheiros, 2009, p 178.
[10] “Como regime do poder visível a democracia nos faz imediatamente vir à mente a imagem, a nós transmitida pelos escritores políticos de todos os tempos que se inspiraram no grande exemplo da Atenas de Péricles, da ‘ágora’ ou da ‘eclesia’, isto é, da reunião de todos os cidadão num lugar público com o objetivo de apresentar e ouvir propostas, denunciar abusos ou pronunciar acusações, e de decidir, erguendo as mãos ou mediante cacos de terracota, após terem apreciado os argumentos pró e contra apresentados pelos oradores.” BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. 6ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, p. 84.
[11] Idem, p. 106.
[12] FRANCO SOBRINHO, Manoel de Oliveira. O controle da moralidade administrativa. São Paulo: Saraiva, 1974.
[13] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 23ª ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 511.
[14] Art. 1o Fica instituído o Código de Conduta Ética dos Agentes Públicos em exercício na Presidência e Vice-Presidência da República. Parágrafo único do artigo 1º. Para fins deste Código, entende-se por agente público todo aquele que, por força de lei, contrato ou de qualquer outro ato jurídico, preste serviços de natureza permanente, temporária, excepcional ou eventual, na Presidência e Vice-Presidência da República.
[15] Íntegra do pronunciamento: <http://g1.globo.com/politica/noticia/veja-a-integra-do-discurso-de-micheltemer.ghtml>.
[16] Termo de Depoimento nº 2, prestado por Joesley Mendonça Batista, autos de Inquérito 4483/2017, p. 44.
[17] Idem.
[18] XV - E vedado ao servidor público; a) o uso do cargo ou função, facilidades, amizades, tempo, posição e influências, para obter qualquer favorecimento, para si ou para outrem. Decreto 1.171/1994.
[19] Art. 321 - Patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a administração pública, valendo-se da qualidade de funcionário: Pena - detenção, de um a três meses, ou multa. Parágrafo único - Se o interesse é ilegítimo: Pena - detenção, de três meses a um ano, além da multa.
[20] LISZT, Franz von. Tratado de Direito Penal Allemão. Tomo II. Traduzido e comentado por José Hygino Duarte Pereira. Rio de Janeiro: F. Briguiet & C., 1899, p. 487.
[21] HAYEK, Friedrich A. O Caminho para a Servidão. Tradução de Marcelino Amaral. Lisboa: Edições 70, 2009, p. 111.
[22] Confira: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/05/1886163-se-quiserem-me-derrubem-afirmatemer-ao-negar-de-novo-a-renuncia.shtml.
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