Por Esther Maria de Magalhães Arantes - 15/01/2016
Destinadas à realização das Obras de Misericórdia, sendo sete espirituais (ensinar os simples ou ignorantes, dar bom conselho a quem o pede, castigar com caridade os que erram, consolar os tristes desconsolados, perdoar as injúrias ou ofensas, sofrer as injúrias com paciência, pedir a Deus pelos vivos e pelos mortos) e sete corporais (visitar e curar os enfermos, remir os cativos e visitar os presos, vestir os nus, dar de comer aos famintos, de beber aos sedentos, abrigar os viajantes e os pobres e enterrar os mortos), as Irmandades da Santa Casa da Misericórdia se espalharam por toda Portugal e colônias, incentivada a sua difusão por D. Manuel, a partir do modelo da Misericórdia de Lisboa. Não sendo possível precisar as datas de todas elas, aproximadamente 371 Misericórdias são dadas como tendo sido fundadas em Portugal até o ano de 1897.[1]
Considerada “a mais notável e completa confraria de caridade de que há memória em Portugal”[2], a Misericórdia de Lisboa teria sido fundada em 1498 pela Rainha D. Leonor e colaboradores, dentre os quais Frei Miguel Contreiras, a partir da remodelação da Confraria de Caridade Nossa Senhora da Piedade, sendo esta destinada a enterrar os mortos, visitar os presos e acompanhar os condenados à morte até o lugar de sua execução. Para se ter uma idéia da importância de tais confrarias, basta lembrar que alimentar os presos e enterrar os mortos não era dever do Estado e sim ato de caridade assegurado por esmolas e legados às associações piedosas que foram se formando para esta finalidade. Sendo os cadáveres dos pobres e escravos muitas vezes abandonados ou atirados em lugares ermos ou praias, enterrá-los era considerado ato de grande devoção e piedade.
Assim como as portuguesas, as Misericórdias fundadas no Brasil a partir de meados do século XVI ocupam, inegavelmente, lugar de destaque numa História da Assistência, entendendo-se por assistência, à época, as práticas caritativas ligadas aos costumes e ensinamentos cristãos e portanto, realizadas pelo amor de Deus e em nome da salvação da alma. Todas as Obras de Misericórdia, espirituais e corporais, encontram-se respaldadas em textos de doutrina cristã como o Evangelho de São Mateus e Epístolas de São Paulo e demais Doutores da Igreja Católica como São Tomás de Aquino, ou são provenientes de tradições de povos antigos que foram incorporadas ao cristianismo. De acordo com tais ensinamentos e por toda à Cristandade, e não apenas em Portugal, ergueram-se ao longo da Idade Média albergarias, asilos e hospitais, edificados a partir do costume de reunirem-se os pobres em volta das igrejas e mosteiros. Obviamente que para a realização de algumas das Obras de Misericórdia, como visitar os presos ou dar bons conselhos, não era necessário que as associações piedosas construíssem hospitais ou albergarias, o que não foi o caso da Irmandade da Misericórdia, que desde o início teve sob sua responsabilidade diversos tipos de estabelecimentos, principalmente casas hospitalares.
Embora não fosse incomum desavenças entre o Clero e a Coroa, motivados algumas vezes por denúncias de apropriação abusiva por parte de clérigos das rendas propiciadas pelos legados pios, impossibilitando a manutenção dos estabelecimentos caritativos sob seus cuidados, outras dificuldades apresentaram-se ao final do século XV, tornando a reforma da assistência inevitável, dentre elas, segundo Correia, dificuldades de natureza espiritual ou de consciência, dada a impossibilidade de cumprir os compromissos de rezar um número incalculável e crescente de missas, orações e penitências - que era a contrapartida assumida com os fiéis que haviam feito doações em testamentos ao longo dos anos. Assim, para que uma remodelação da assistência pudesse ter lugar, reunindo estabelecimentos com diferentes compromissos pios, foi necessário uma autorização do Papa ao Rei de Portugal.[3]
Implicada neste contexto, fruto e ao mesmo tempo parte constitutiva desta reforma que possibilitou maior participação dos leigos na administração dos estabelecimentos dedicados à assistência através das confrarias, e um maior reconhecimento, ainda que incipiente, do papel da Medicina, alcançou a Irmandade da Santa Casa da Misericórdia grande projeção e reconhecimento.
Constando de seu Compromisso a invocação de Nossa Senhora, a Madre de Deus, Virgem Maria da Misericórdia, representada em sua Bandeira pela pintura da mesma Virgem Maria com seu manto misericordioso sob o qual acolhe a todos, não se podia, no entanto, para ser admitido na irmandade, ter qualquer sangue de mouro, judeu, cigano ou negro[4]. Apenas os homens bons e fieis cristãos eram admitidos, sendo inúmeros os privilégios a eles conferidos. Para se ter uma idéia de quão seleto era o grupo que formava a irmandade, inúmeros foram os Provedores da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro que ocuparam os cargos de Ministros, Deputados, Senadores ou que ostentavam nobres títulos de Visconde, Barão ou Marquês.
No Brasil, os hospitais, asilos e recolhimentos administrados pelas Santas Casas através de esmolas, doações, legados e auxílios governamentais, tiveram início ainda no século XVI, sendo o mais antigo hospital o de Santos, que teria sido fundado em 1542. Como em Portugal, as Santas Casas, administradas pelas Irmandades do mesmo nome, também se espalharam por todo o território. À de Santos, seguiram-se outras, como a da Bahia, Espírito Santo, Rio de Janeiro, Olinda, São Paulo e tantas mais.
No período colonial não há nenhuma prática ou saber que se possa identificar como sendo Psicologia científica, mesmo porque o próprio movimento do qual emergirá a ciência moderna estava apenas começando e o primeiro Laboratório de Psicologia apenas inaugurado por Wund em 1879. Mesmo o que se praticava como sendo Medicina, nos hospitais gerenciados pelas Irmandades da Santa Casa de Misericórdia ou nos antigos Mosteiros e Albergarias portuguesas, não pode ser considerado Medicina científica, que apenas se desenvolverá a partir do início do século XIX.
Um saber sobre os indivíduos tem início no Brasil apenas no período Imperial, concorrendo para isto a vinda da Corte Portuguesa, o processo de urbanização e a criação das Faculdades de Direito e Medicina. Quanto a estes fatos, dispomos de tudo o que já foi documentado e escrito sobre a Medicina Higienista, com suas críticas ao sistema caritativo e introdução de uma nova racionalidade na gestão das famílias, das instituições e do espaço urbano; bem como as intermináveis discussões sobre a reforma das prisões no Brasil – discussão que se pode acompanhar através da leitura do conjunto dos Relatórios do Ministério da Justiça[5]. Mas estas práticas são o que Foucault vai designar como sendo as disciplinas, com seus objetivos de curar e regenerar, implicando tais práticas na constituição mesma do próprio indivíduo moderno[6].
Torna-se, então, relevante apontar, ainda que de maneira breve, a natureza das práticas que antecederam a criação da Psicologia no Brasil. No período colonial, como sabemos, sequer vigorava os pressupostos da igualdade e liberdade, lema da Revolução Francesa e da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, uma vez que a colonização do Brasil se fez justamente no pressuposto da desigualdade entre os homens e na ausência de liberdade, sendo que a Abolição da Escravidão só terá lugar em 1888. Como não existe o pressuposto da igualdade entre os homens, também não existe o pressuposto de um sujeito universal compartilhando uma mesma natureza humana, sendo que um dos objetivos da catequização dos índios é justamente salvá-los de seu suposto estado de inferioridade, como não civilizado, não-cristão e não-súdito (sem Rei, Lei e Fé). O próximo não é um outro ser humano qualquer, mas um súdito do Rei de Portugal e um cristão. Integrá-los no empreendimento colonial como cristãos fiéis e escravos – eis o maior bem de caridade que se poderia fazer aos índios e aos africanos. Eis aí o estatuto de humanidade a eles conferidos. Assim, concomitantemente às práticas piedosas de proteção aos desvalidos, da esmola pelo amor de Deus, da preocupação com a salvação da alma, da reclusão das mulheres, da honra das famílias, do dote para o casamento, do cuidado com os órfãos, os expostos e os doentes, que sempre mereceram a assistência das Santas Casas da Misericórdia, continuava a escravização dos povos indígenas e africanos, com seus aldeamentos e senzalas, seus troncos e chibatas, seus capitães do mato e seus calabouços.
Sendo o Brasil um empreendimento colonial meramente de exploração, existindo quase que como terra de reclusão e de degredo, calcada a produção colonial no trabalho escravo, não se podia aqui edificar escolas, fábricas ou quaisquer empreendimentos que significassem ameaças aos interesses portugueses, constituindo a catequização dos índios e africanos em uma experiência mais de dominação que espiritual. Os poderes soberanos que aqui se instalaram (Rei, Igreja e Senhores) - poderes de vida e morte em seus domínios específicos - se abateram implacavelmente sobre indígenas e africanos, criando-se regimes diferenciados para os livres e os cativos, dos quais ainda hoje não conseguimos nos livrar inteiramente.
Tal realidade histórica deveria nos motivar ao estudo do que se produziu nas diferentes ordens religiosas que se instalaram no Brasil sobre a natureza humana, incluindo o que os primeiros Jesuítas entendiam e praticavam como Medicina da Alma e Polícia Cristã. Para os nossos propósitos, aqui, muito mais modestos, basta termos em conta que as Misericórdias, de acordo com seus Compromissos ou Regimentos, prestou sempre assistência aos desvalidos. Assim, as primeiras iniciativas em relação ao recém-nascido no Brasil se deram, seguindo a tradição portuguesa, instalando-se Rodas dos Expostos nos hospitais das Santas Casas ou em prédios anexos a estes. No século XVIII, três foram as Rodas criadas no Brasil: Salvador (1726), Rio de Janeiro (1738)[7] e Recife (1789) no século XVIII. As demais foram criadas no século XIX, incluindo a de São Paulo (1825). No Rio de Janeiro, além da capital, duas outras foram abertas: a de Campos e a de Cabo Frio.
Mas não bastava salvar a alma da criança exposta através do Batismo e eventualmente salvar a sua vida através da amamentação feita pelas amas-de-leite. Era necessário também salvar a sua honra, principalmente se a criança fosse do sexo feminino. Para as meninas órfãs legítimas de legítimo casamento cristão e para as expostas que sobrevivessem, as Santas Casas criavam os Recolhimentos das Órfãs, onde as meninas estariam protegidas até o casamento, quando receberiam um dote para iniciar uma vida de boas esposas e mães cristãs. Só assim dava-se por finda a sua missão de salvação. Tal era o peso da honra das meninas que, caso ocorresse um desvirginamento, a menina seria considerada impura, não podendo mais conviver com as meninas virgens e consideradas inocentes. Mesmo as viúvas, ou as casadas quando os maridos se ausentavam, eram recebidas como pensionistas nos conventos ou recolhimentos, para que não pairassem dúvidas sobre sua conduta.
Nos Recolhimentos das Órfãs da Santa Casa do Rio de Janeiro o regime era de clausura. As Recolhidas eram geralmente convocadas ao som da campainha, sendo que as que faltassem pela primeira vez eram repreendidas, e pela segunda vez punidas ou penitenciadas, ao arbítrio da Regente. Tinham a obrigação de se confessarem todos os primeiros Domingos do Mês e receberem o Santíssimo Sacramento da Eucaristia, como também nas festas da Assumpção da Virgem Senhora Nossa, e do Bom Sucesso. Caso faltassem a estas obrigações poderiam ser penitenciadas. A Regente do Recolhimento era advertida, no entanto, para que determinasse com moderação os castigos e as orações, sem palavras injuriosas, para não suceder serem os castigos causa de menos fervor espiritual. Os castigos poderiam implicar em privação de alimento, proibição de comparecer à portaria ou mesmo reclusão por alguns dias.
Dentre os temas de que trata as Misericórdias um dos mais fascinantes é o da amamentação das criancinhas. Até a invenção da mamadeira e do leite em pó e pasteurizado, o único alimento que podia garantir a vida da criança recém-nascida era o leite materno ou o seu melhor substituto: o leite da ama-de-leite. Desde a antiguidade o problema de como alimentar crianças órfãs e expostas já se colocava, dada a absoluta impossibilidade de alimentá-las de outras formas. Experiências desastrosas feitas com alimentos substitutivos como papinhas, caldinhos, água adoçada ou leite de animais, sempre foram responsáveis por altas taxas de mortalidade entre os recém-nascidos. Nos Relatórios encaminhados anualmente pelo Provedor da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro ao Ministro do Império, contata-se uma crescente preocupação em demonstrar que os índices elevados de mortalidade dos recém-nascidos não eram devidos a maus-tratos recebidos na Casa dos Expostos, mas ao fato de serem as crianças já depositadas mortas ou moribundas. Assim, crescentemente, há um refinamento dos procedimentos estatísticos, buscando discriminar o número de crianças depositadas vivas das depositadas adoecidas e mortas.
Dispositivo cilíndrico colocado nos muros dos hospitais da Misericórdia ou em prédios anexos, dedicadas ao recolhimento de recém-nascidos ditos enjeitados - o Brasil foi talvez o último país a abolir a Roda. Mesmo após o Código de Menores de 1927, que previa sua extinção, continuaram a existir, algumas até final dos anos 1940. Temia-se que com sua extinção aumentassem os abortos e infanticídios de filhos indesejados ou ilegítimos, uma vez que o dispositivo da Roda mantinha o anonimato de quem depositava a criança. Uma vez depositado na Roda, o recém-nascido era imediatamente batizado e enviado para ser alimentado por ama-de-leite. Tais amas-de-leite foram sempre consideradas como uma benção no Brasil até o advento da Medicina Higienista, que inicia uma desqualificação tanto do modo de gestão hospitalar realizado por critérios caritativos como do aleitamento feito pelas amas, pela possibilidade de transmissão de doenças tanto físicas como “morais”. Condicionam tal alimentação a um exame médico prévio das amas e subordinam o comportamento das esposas às prescrições médicas: a boa esposa e mãe de família é aquele que se comporta como uma enfermeira do lar, obedecendo às prescrições do médico.
Em que pese desavenças entre Clero e Coroa, entre Caridade e Medicina, entre assistencialismo e políticas públicas, não se pode escrever a História da Assistência no Brasil, tanto como em Portugal, sem mencionar o papel desempenhado pelas Irmandades da Santa Casa da Misericórdia.
No período republicano, quando a Psicologia vai se firmando como ciência e profissão no país, as Santas Casas incorporam saberes e práticas da área, bem como passaram a oferecer cursos de especialização, por exemplo, em Psicologia hospitalar ou Medicina Psicossomática, e a contratar profissionais psicólogos.
Notas e Referências:
[1]Fernando da Silva Correia. Origens e Formação das Misericórdias Portuguesas. Lisboa: Livros Horizonte e Misericórdia de Lisboa, 1999, p. 568
[2]Idem, p. 533.
[3] Idem, p. 469-470
[4]Ver: Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro (Histórico) - Dicionário Histórico-Biográfico das Ciências da Saúde no Brasil (1832-1930). Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz –(http://www.dichistoriasaude.coc.fiocruz.br)
[5] BRASIL. Relatórios dos Ministros da Justiça: 1825 – 1928. Site: http://wwwcrl.uchicago.edu)
[6] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão; tradução de Lígia M.Pondé Vassallo. Petrópolis: Vozes, 1977.
[7] Segundo os Relatórios do Ministro do Império, 47.255 crianças foram deixadas na Roda do Rio de Janeiro no período de 1738 a 1888.
ARANTES, E. M. M. Santa Casa de Misericórdia. In: Ana Maria Jacó-Vilela. (Org.). Dicionário Histórico de Instituições de Psicologia no Brasil. 1a. ed. Brasília e Rio de Janeiro: Conselho Federal de Psicologia e Imago Editora, 2011, v. , p. 382-385.
Esther Maria de Magalhães Arantes é Normalista, pelo Instituto de Educação de Goiás (1967); Bacharel em Psicologia, pela Universidade Federal de Minas Gerais (1971); Formação de Psicólogos, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1972), Mestrado em Educação, pela Boston University (1976); Doutorado em Educação, pela Boston University (1981) e Pós Doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2011). Professora do Programa de Pós Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e professora do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3876442600525617
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