Por Esther Maria de Magalhães Arantes - 06/01/2016
Não se habita o mundo da mesma forma quando nos pomos a escutar o silêncio da noite, o farfalhar do vento nas folhagens, as ondas do mar quebrando nas praias ou a gaivota revolvendo a areia, ao final do dia, para dali catar algum resto esquecido e depois, em voo preciso, se afastar lentamente, como quem tem preguiça ou apenas não tem pressa para acompanhar o pescador em seu barco mar adentro.
Não se habita o mundo da mesma forma quando se escuta o lamento da terra seca, o leito vazio do rio, a mão suplicante que se estende em busca de alimento e abrigo, ou o olhar de um qualquer vivente em busca de simpatia, amizade ou compaixão.
Não se habita o mundo da mesma forma quando se escutam vozes misteriosas ou do além, quando se tem medo do escuro e também do claro, quando não se sabe se é dia ou se é noite, quando não mais importa se homem ou se mulher, se árvore ou um riacho, ou se nossas conversações “fazem parte da guerra ou já da paz”. (Deleuze, 1992:7)
Escutar é uma alegria, é se deixar afetar pelos ruídos e barulhos do mundo, pelo estalar dos dedos em noite fria ao redor da fogueira e pelos sentidos que se aguçam à proximidade dos corpos com suas cores, cheiros, texturas, rugosidades e asperezas, adivinhando, no avermelhado da cor, no zumbido das abelhas e no perfume que exala, a madurez da fruta, ainda no pé.
Escutar é tudo isto, mas pode ser também outras imagens, outras letras, outras linguas, outros acordes, outros batuques e transes, outros colares e penas. As combinações parecem infinitas. E se não forem, se o caminho parecer árduo, pode-se pedir aos Deuses Guaranis que nos enviem belas e sábias palavras, almas-palavras derramadas como chuva, despertando as sementes e fertilizando a terra.
Escutar já foi pensado, nas antigas práticas gregas do cuidado de si (epiméleia heautoú), como o primeiro estágio na ascese (áskesis), que é o que permite ao sujeito adquirir e dizer o discurso verdadeiro. A verdade, escutada e recolhida, como se deve, entranha-se no sujeito, tornando-se regra de conduta. Assim como é necessário uma arte (tékhne) para falar, é necessário uma experiência e uma habilidade (empeiría e tribé) para escutar. Para se escutar, como se deve, para que a alma acolha a palavra que lhe é endereçada, é fundamental uma economia dos gestos e palavras, um silêncio ativo e um certo recolhimento, que se opõem à tagarelice.(Foucault, 2004)
A ascese dos gregos antigos é diferente da ascese cristã, que terá a função de renúncia à si, trazendo como exigência a confissão como “ato de verdade” (Foucault, 1997:101), onde se é solicitado a dizer as faltas, os pensamentos e as palavras não conformes à Lei Divina – faltas essas que, não confessadas e não perdoadas, condenam o infiel ao fogo eterno do inferno. A partir da confissão dos pecados e do arrependimento por tê-los cometido, fica a alma em estado de pureza, podendo-se morrer e ir direto ao Céu. Assim, apesar da fraqueza da carne, não se tendo a certeza de não mais cair em tentação, nunca o pecador se sentirá desamparado, pois dedicou toda uma vida à sua salvação.
A partir do século XVIII, na Europa, com o início das disciplinas, a potência de escutar foi sendo aprisionada em práticas diversas de poder-saber, ao ponto em que escutar se tornou, basicamente, uma prática autorizada e domínio de especialistas. O juiz, o delegado, o pedagogo, o médico, o assistente social, os psis, todos escutam segundo um código, uma regra, um pressuposto no qual o que escutam deve se enquadrar. Nesse sentido, podemos dizer que os movimentos de subjetivação de nossas sociedades ocidentais modernas passam pela escuta especializada.
São procedimentos técnicos, pensados como conhecimentos universais e capazes de desvelar as essências e verdades verdadeiras escondidas nas dobras da alma, no riso dos palhaços, nas artimanhas dos malandros e nos delírios dos insanos - não sendo de todo errado considerar algumas delas como técnicas sofisticadas de extração da verdade.
Assim, profissionais diversos, das áreas jurídica e da segurança, colocam seus ouvidos à disposição para receberem queixas, denúncias e reclamações, que se transformam em inquéritos, investigações e processos. Como na confissão, nossas lembranças, nossas palavras, nossos desejos devem estar sempre sob suspeição, passíveis que são de engano, erro e ilusão – o que nos leva à questão de como proceder com as crianças e aqueles que, por alguma razão, encontram-se sob tutela, guarda ou interdição. Neste sentido, passa a ser usual convocar especialistas para ajudar a restabelecer a verdade verdadeira e a credibilidade das queixas, reclamações, denúncias e depoimentos - e mesmo para atestar a confiabilidade do depoente. Tais especialistas têm sido cada vez mais requisitados em todas as instâncias onde haja conflitos entre os diferentes sujeitos de direitos e não estão isentos de dificuldades e contradições.
No livro A Hermenêutica do Sujeito, Michel Foucault se pergunta como a noção de cuidado de si (epiméleia heautoú), que vigorou desde a antiguidade até o século IV-V d.C, tendo percorrido toda a filosofia grega e romana, bem como a espiritualidade cristã, foi excluída do pensamento filosófico moderno, privilegiando-se o conhecimento de si (gnôthi seautón). Para Foucault, o “momento cartesiano” (Foucault, 2004:18) em muito contribuiu para a desqualificação e a exclusão do cuidado de si como preocupação filosófica da modernidade, postulando o conhecimento como único meio de acesso à verdade.
Como, por que e a que preço, temos nos empenhado em sustentar um discurso verdadeiro sobre o sujeito, sobre o sujeito que não somos, enquanto sujeito louco ou sujeito delinquente, sobre o sujeito que, de modo geral, nós somos enquanto falamos, trabalhando, vivemos, e enfim sobre o sujeito que, no caso particular da sexualidade, nós somos direta e individualmente para nós mesmos? (Foucault, 2004: 308)
Como sabemos, não há, em Foucault, uma essência humana que teria sido reprimida ou alienada ao longo da história por diferentes práticas repressivas e que, tão logo fossem suspensas, fariam aparecer a verdadeira natureza humana em festa, reconciliada consigo mesma. Não que Foucault negue a existência e a importância de processos históricos e culturais de liberação. Apenas não os confunde com as práticas de liberdade.
Assim, a pesquisa genealógica não busca uma verdade a ser desvelada pela escuta mas pode se constituir em forte aliado para ganharmos entendimento de como as diferentes práticas de escuta se articulam com as experiências que fazemos de nós mesmos no contemporâneo.
Notas e Referências:
Gilles Deleuze – Conversações. Rio de Janeiro: Ed.34, 1992.
Michel Foucault. Resumo dos Cursos do Collège de France (1970-1982). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.
Michel Foucault. A Hermenêutica do Sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2004a.
Livro: Pesquisar na diferença. Um abecedário.
Tania Mara Galli Fonseca, Maria Lívia do Nascimento e Cleci Maraschin (Orgs).
Porto Alegre, Editora Sulina, 2012.
Esther Maria de Magalhães Arantes é Normalista, pelo Instituto de Educação de Goiás (1967); Bacharel em Psicologia, pela Universidade Federal de Minas Gerais (1971); Formação de Psicólogos, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1972), Mestrado em Educação, pela Boston University (1976); Doutorado em Educação, pela Boston University (1981) e Pós Doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2011). Professora do Programa de Pós Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e professora do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3876442600525617
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