Unidade e matemática  

17/03/2019

 

Ainda sobre a dúvida quanto à origem da matemática e seu fundamento, tal problema, como sustentando anteriormente, é decorrente da perda da percepção da unidade existencial primordial, da qual é originado o conhecimento intelectual, inclusive o matemático, a partir de procedimentos de divisão psíquica, sensorial e racional, como momentos de abstração da unicidade do Ser.

Já o conhecimento sensorial decorre da divisão neurológica entre partes do corpo, como mão, boca e pé, por exemplo, entre o corpo e o ambiente e do próprio mundo sensível em si, por meio dos entes exteriores, sendo exemplo as faixas do espectro luminoso, divisão que é representada pela significação própria das partes separadamente e dos todos a que pertencem, por imagens mentais e símbolos, devendo ser reconhecido que o conhecimento intelectual é produzido a partir de símbolos, que se transformaram em palavras, e em linguagens analíticas, do que é exemplo a matemática, esta uma forma de linguagem objetiva, isto é, cujos símbolos têm um significado unívoco dentro do sistema a que pertencem, ao contrário das palavras usadas no mundo da vida, que podem receber sentidos divergentes, como o metafórico e o alegórico.

Os números e expressões matemáticas são, assim, sinais utilizados para representar uma unidade que os transcende, da qual foram extraídos por abstração mental. Ainda que esses símbolos em seu conjunto apenas apontem para uma realidade existencial, com a qual não se confundem, isso não significa que não tenhamos acesso cognitivo à unidade do mundo, ao númeno, contrariamente ao que sustenta o positivismo baseado na proposta filosófica de Kant.

Nesse ponto, depois do último artigo, aceitei uma sugestão do algorítimo do YouTube, assistindo a uma exposição de Ray Monk sobre a Filosofia da Matemática (Intro to the Philosophy of Mathematics – https://www.youtube.com/watch?v=bqGXdh6zb2k). No vídeo são abordados, em resumo essencial, dois mil e quinhentos anos da história da matemática, dos gregos antigos até Bertrand Russell e Wittgenstein, passando por Kant, transitando entre matemática e filosofia, a partir do conceito pressuposto de logos, de uma lógica.

O que fica claro nessas abordagens é o silêncio eloquente quanto à ideia semítica do Logos, a partir do Evangelho atribuído a João, segundo o qual o Logos estava no princípio e se encarnou em Jesus Cristo, isso cerca de quatrocentos anos após o auge grego, sintetizando o Evangelho conceitos do mundo greco-romano com a filosofia monoteísta, na medida em que a mundividência da palestina estava impregnada da cosmovisão grega, após a helenização proporcionada por Alexandre Magno. Desta feita, a ideia grega de logos estava pressuposta na elaboração do Evangelho, tendo recebido um novo significado, na Teologia monoteísta.

Em que pese a precedência da Teologia sobre os demais ramos do conhecimento, tal síntese joanina logo foi mal interpretada, na construção de uma ideia politeísta com pretensão monoteísta, a trindade, a que se somou o dualismo platônico presente em Agostinho, Descartes e Kant, todos com uma visão de mundo subjacente declarada e essencialmente Cristã, a qual, de outro lado, é monoteísta e monista. Desta feita, em razão da falha teológica inerente à trindade e ao dualismo que dominou a filosofia ocidental após Agostinho de Hipona, com uma teologia pseudomonoteísta, porque, de fato, dualista, o mundo ainda não experimentou a plenitude da vida Cristã, ligada à unidade cósmica, à sua experimentação pela humanidade e ao conhecimento respectivo, no autêntico monismo e Monoteísmo de Cristo, que elevou à perfeição o de Moisés.

A unidade filosófica e científica, outrossim, foi rompida, para muitos nunca alcançada, e segundo Kant é impossível recuperá-la ou atingi-la, tendo sido o conhecimento humano transformado em ciência de meros limites do saber, em probabilidades matemáticas, como se não houvesse uma unidade infinita e real por trás desses limites ilusórios, criados por nossas mentes.

Mesmo que nosso conhecimento sensorial da realidade última seja sempre incompleto, a existência dessa realidade não deve ser esquecida na produção científica. É importante destacar que a filosofia de Kant tinha como escopo deixar no conhecimento científico um espaço intelectual reservado para Deus, o mundo numinoso, mas o desenvolvimento do positivismo levou à exclusão de Deus do âmbito científico, tornando o saber humano fragmentário e sem fundamento.

Nesse sentido, o formalismo da parte, o reducionismo, positivista e materialista, mostrou-se insuficiente para a compreensão dos fenômenos do mundo, urgindo seja substituído pelo formalismo do todo, da unidade, presente direta e indiretamente em todas as coisas.

É conhecimento bíblico antigo que Deus pode ser conhecido através da criação, das coisas criadas.

Os céus contam a glória de Deus, e o firmamento proclama a obra de suas mãos” (Sl 19, 2).

Porque o que se pode conhecer de Deus é manifesto entre eles, pois Deus lho revelou. Sua realidade invisível — seu eterno poder e sua divindade — tornou-se inteligível, desde a criação do mundo, através das criaturas, de sorte que não têm desculpa” (Rm 1, 19-20).

O acesso ao númeno, contudo, não é apenas formal, mas utiliza integradamente todas as formas de elaboração cognitiva que possuímos, relativas às quatro funções psicológicas fundamentais descritas por Jung, pensamento, sentimento, sensação e intuição.

Outrossim, nós temos algum conhecimento da coisa em si, do mundo numinoso, ainda que em parte, por nossa limitação psíquica e espiritual que tem reflexos nas funções cognitivas e sensoriais, pelo que o conhecimento completo, face a face, por ora, é relegado para outro momento existencial, dependente de uma evolução da espécie ao nível de Cristo. De todo modo, é fato que nós integramos a unidade cósmica, participamos da natureza divina.

Pois nele vivemos, nos movemos e existimos, como alguns dos vossos, aliás, já disseram: 'Porque somos também de sua raça'” (At 17, 28)

A filosofia dualista, portanto, como a de Kant, contraria a essência filosófica do monoteísmo e sua unidade existencial e impede que Sujeito e objeto se unam, não permite que Deus, a partir de sua criatura, possa dizer “Eu e o Pai somos um”, quando ocorre uma unidade ontológica entre corpo e Espírito, entre o sujeito e o objeto do conhecimento, a coisa em si, ainda que limitada quanto a determinados aspectos desta.

A unidade a priori do mundo é rompida com a divisão, efeito que também ocorre na matemática, e por isso todo sistema matemático é necessariamente incompleto, como demonstrado por Gödel. O teorema da incompletude de Gödel significa que todo corte matemático separa parte da realidade, deixando de lado a unidade infinita existencial a que pertencemos, que é una e incalculável. O corte, porque parcial, exige outra divisão para sua complementação e fundamentação, que demanda outra, sucessiva e infinitamente, em direção à unidade do Ser, pressuposta e intuída. A parte, por definição, não pode apreender o Todo do qual foi abstraída, e deve a ele remeter.

Como não se pode alcançar precisão matemática com números infinitos, a limitação se faz necessária, para permitir uma análise dos fenômenos, por meio da construção de categorias fundamentais que possibilitam o conhecimento, mas essas categorias devem ser entendidas como instrumentais que apontam para um objeto de estudo, que é a realidade una, da qual emergem simbolicamente, por meio de abstração mental, a matemática e a física, incluindo o reino o quântico e o espaço-tempo. Saliente-se que a unidade do espaço-tempo, em termos históricos, foi recentemente descoberta, representando a junção de categorias que antes se pensava serem fundamentais e distintas. O entrelaçamento quântico, de outro lado, indica uma unidade física ainda mais profunda que a do espaço-tempo, porque independente do espaço e do tempo.

Portanto, a realidade não tem natureza probabilística, como determinada interpretação da física sugere, sendo a incerteza mero efeito da limitação de nossa linguagem, existindo uma unidade real e infinita que transcende as frações e percentuais possíveis encontrados pela física matemática, que é apenas um instrumento de aproximação simbólica daquela realidade mais ampla, a qual não pode ser esquecida ou desprezada pela atividade científica.

Com a concepção da natureza instrumental e a posteriori das categorias científicas, o que também engloba a matemática, é possível retornar simbolicamente ao ponto do corte, que é o momento inicial de divisão da realidade e de estabelecimento das categorias com as quais serão compreendidos aspectos da unidade numênica, ponto que remete à unidade da realidade e determina metodologicamente a veracidade dos juízos sintéticos, tanto em sua relação lógica interna quanto em seu contato com a coisa em si.

O conhecimento científico, como desenvolvimento de uma concepção filosófica de mundo, portanto, e conforme conceito proposto por Olavo de Carvalho, está atrelado à “busca da unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-versa” (http://www.olavodecarvalho.org/textos/quee.htm), o que significa formular juízos sintéticos a priori em que a linguagem, não somente a matemática, seja instrumento de realização da unidade existencial na realidade da vida, em termos psíquicos, sensoriais e intelectuais, na prática individual e social, efetivando a unicidade do Ser na Humanidade, segundo o Caminho, ou Método, Cristo, “a fim de que todos sejam um. Como tu, Pai, estás em mim e eu em ti, que eles estejam em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste” (Jo 17, 21), o que, todavia, mesmo os filósofos ditos Cristãos muito dificilmente conseguem realizar.

 

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