Ernst Toller (1893/1939) foi um escritor e dramaturgo alemão de origem judaica (um dos expoentes da Escola Expressionista), político e revolucionário. Muito pouco conhecido no Brasil, Toller, ainda muito jovem, alistou-se voluntariamente para lutar na Primeira Guerra Mundial, tornando-se depois um ferrenho pacifista, ainda durante o conflito.
A experiência na guerra o aproximou dos ideais socialistas, levando-o a participar ativamente da revolta da Baviera, que resultou na proclamação, em 1919, da “República Conselhista da Baviera”, de curtíssima duração.
Após o fim da passageira República Conselhista (da qual chegou a ser Presidente por alguns dias), aniquilada pela República de Weimar, foi condenado a cinco anos de prisão, acusado de alta traição. Cumpriu integralmente a pena, sob condições desumanas.
Já em liberdade, viu ascender o nazismo (e o jovem Hitler), obrigando-o a exilar-se, em 1933, na Inglaterra e depois nos Estados Unidos, suicidando-se em 1939, em Nova York.
Em um dos seus livros, “Uma Juventude na Alemanha”[1], Toller relata um período de sua vida (infância, juventude e maturidade), especialmente nos anos que sucederam a Primeira Guerra Mundial, tempos turbulentos e de profundas mudanças naquele país, repleto que foram de várias convulsões sociais, inclusive durante a República de Weimar.
O livro, portanto, revela o momento histórico vivido pela Alemanha naquele período. É uma obra interessantíssima e muito influenciada pelo estilo expressionista adotado pelo autor. Disse ele: “gosto de escrever, é agradável enfileirar palavras.”
Logo de início, como numa advertência ou ressalva primeira, Toller trata de advertir que “biografias raramente alcançam a complexidade de uma existência individual”, pois “muitos traços do ´homem por inteiro` permanecem nas sombras e o único dever de todos os momentos é o de determinar o indivíduo e torná-lo inteligível, em especial em um livro como este, que retrata o homem publicamente ativo.”
Afirma que “o povo espera que a salvação venha de falsos salvadores, e não do conhecimento, do trabalho e da responsabilidade”, acreditando-se, tal como hoje (impressionantemente) se dá aqui no Brasil, que “um homem, o Führer, o César, o Messias vai chegar e fazer milagres, vai assumir a responsabilidade pelos tempos futuros, consertar a vida de todos, banir o medo, erradicar a miséria, criar o novo povo, o reino do esplendor pleno...” (grifei e pus as reticências, com uma certa dose de ironia).
Aprende-se a “dizer sim aos instintos mais baixos e para a belicosidade gratuita, tornando-se alvo de zombaria e do ódio das classes dominantes os valores intelectuais e morais conquistados através dos milênios, com muito esforço e sacrifício.”
E ele, então, pergunta, como possuído de algum humor melancólico[2]:
“Onde está a juventude da Europa?”
E indago eu, também: e onde estaria a do Brasil?
Ele conclama os seus jovens companheiros ao “trabalho silencioso e incansável”, pois haviam vencido “o medo que desencoraja e humilha as pessoas.” Não se devia, portanto, se deixar “intimidar pela perseguição ou pela brutalidade. Quando o jugo da barbárie oprime, deve-se lutar e não se pode calar. Quem se cala nesses tempos trai sua missão humana.” (grifei novamente, posto uma lição).
Lembrando-se da infância, Toller relatou um diálogo que teve com a sua mãe, logo após voltar de um almoço na casa de um grande amigo, o pobre Stanislaus, onde comera “batatas com casca, mingau de farelo e arenque” (para onze pessoas), que lhe davam “água na boca”:
_ “O que dá em você de ficar lá na hora do almoço?”, ralhou a sua mãe.
_ “Assim você come o pouco pão que têm os pobres coitados”, complementou.
_ “Por que eles têm tão pouco?”, perguntou-lhe o pequeno Ernst.
_ “Porque assim quer Deus amado”, respondeu-lhe a mãe.
Tempos depois, essa conversa voltaria a lhe inquietar:
“Minha mãe me dá dinheiro. Por que ela tem dinheiro e o pai do Stanislaus não tem?” A réplica de sua mãe já não lhe satisfazia como outrora, pois começava a “duvidar da necessidade de uma ordem em que uns desperdiçam dinheiro no jogo e outros passam apuros.”
Então, ele se depara, melancolicamente eu diria, com uma triste constatação: “... o mundo perdeu a graça. Os valores que ontem eu julgava eternos e inamovíveis, tornaram-se questionáveis, eu me tornei questionável para mim mesmo.”
Certa vez, ao ver o seu amigo Julius – um louco, segundo ele – morrer abandonado pelos amigos em um bar, com “espasmos epiléticos e espumando pela boca”, dá-se conta que, “pela primeira vez, havia se deparado com a crueldade do mundo.” Ele não entendeu “como as pessoas agem, pois elas não precisariam se esforçar muito para serem boas, mas elas se alegram com o mal.”
Sobre professores e alunos há um trecho muito apropriado, que lembra um pouco o que dizia o nosso Freire: “Professores amargurados propõem a nós os mesmos temas de ensaio que lhe foram propostos quando estudavam, frases veneráveis cobertas de ferrugem, e ai do aluno que acrescenta pensamentos próprios a essas palavras; ele ganha o selo da suspeita, do anarquismo. Temor a Deus, senso de sujeição e obediência, isso é o que ele deve aprender.”
Uma outra vez, ao ler, em uma reunião do grupo literário da escola, uma cena de uma peça teatral de Gerhart Hauptmann[3], chamada “Rose Bernd” (um drama naturalista), recebeu uma bronca do diretor:
_ “Gerhart Hauptmann é um miolo mole hipermoderno e democrata: eu proíbo que o senhor faça essas leituras; vá estudar matemática, isso é mais importante para a vida”, rascou-lhe. (grifei, já que muito pertinente nos dias brasileiros de hoje). Não à toa que, no retorno das férias e aos “bancos escolares”, o jovem Toller sempre se sentia “acorrentado e aprisionado.”
Na guerra, em pleno front, ao ver uma floresta devastada, comparou magnificamente: “Uma árvore é como uma pessoa. O sol a ilumina, ela tem raízes, as raízes estendem-se pela terra, a chuva a rega, o vento desliza pelos seus galhos, ela morre, nós sabemos pouco de seu desenvolvimento e ainda menos de sua morte. Ela se dobra à tormenta de outono como se fosse seu fim, mas não é a morte que vem, e sim o sono regenerador do inverno. Uma floresta é um povo. Uma floresta devastada é um povo massacrado.”
Numa das reuniões no castelo de Lauenstein, na Turíngia (Alemanha Central), em que se encontravam eruditos, artistas, escritores políticos – entre eles Max Weber –, Toller afirma que deveriam eles, “nesses tempos, cujo sentido muita gente não é mais capaz de apreender, discutir uns com os outros o significado da época e que tarefas ela nos colocava.”
Constatava que todos haviam sido “arrancados de seus gabinetes, todos eles passaram a duvidar dos valores de ontem e hoje; (...) eles procuram o caminho para sair do terrível tumulto da época, procuram o ato de coração, o exorcismo do caos.” (grifo meu, pois também precisamos fazê-lo).
Em um destes encontros, Weber – que odiava “todos os idílios sociais” -, cercado de jovens atraídos por sua personalidade e honestidade intelectual, atacou “todos os professores alemães, incapazes de enxergar a realidade através de seus casulos teóricos”:
_ “De que ajudaria conquistar a própria alma, se a nação definha?”, pergunta Weber, arrematando:
_ “Faz-se necessário eliminar os privilégios de classe, erradicar o poder da burocracia, instituir um governo parlamentar e democratizar as instituições estatais.” (idem).
Weber, mostrando sua “natureza combativa”, discutia “com palavras que colocavam em risco tanto sua liberdade como sua vida”, pois queria, “mais do que reformar os privilégios, construir um novo fundamento, acreditando que a transformação da ordem exterior também transformava as pessoas.”
Toller gritava aos jovens, tentando “reunir todos aqueles que eram meros espectadores, arrancando-os de seu sono”: “Não faz sentido vocês só ficarem reclamando; hoje só há um caminho possível, temos que nos rebelar! O fato de sermos poucos não é argumento contra a realidade que denunciamos com nossas palavras. Política significa sentir-se corresponsável pelo destino de seu país e assim agir. Quem não cumpre essa tarefa que se vire com a sua consciência.” (grifado também, como uma advertência).
Para ele, não devemos nos contentar “em apenas arriscar nossas vidas do ponto de vista mental, espiritual e físico; devemos saber que vamos, efetivamente, arriscar nossas vidas mental, espiritual e fisicamente.” (grifei).
Nota Toller que “a angústia de viver lancina o homem e o corrói profundamente; ele ama a liberdade, mas, como tem medo dela, prefere se humilhar e forjar seus próprios grilhões a ousar agir e respirar livremente, assumindo a responsabilidade por seus atos.”
Sim, pois “nada torna um ator político mais culpado que o silêncio. Ele tem que falar a verdade, não importa quão pesada ela seja, apenas a verdade estimula a força, a vontade e a razão.”
Portanto, “quem hoje deseja entrar no plano da política, lidando com os interesses econômicos e humanos, tem de saber com clareza que o princípio que orienta sua luta e as consequências dela são determinados por poderes bem diferentes de suas boas intenções. Que muitas vezes lhe serão impostas formas de resistência e contra-ataque que ele não deixará de sentir como trágicas, formas que podem fazê-lo sangrar, no sentido mais profundo da palavra.”
Admite que fracassou, aliás “nós todos fracassamos, cometemos erros, somos culpados, fomos incompetentes; nossa aposta foi vã e o sacrifício foi inútil.”
Após ser condenado a cinco anos de prisão pelo crime de alta traição – “pelos motivos mais honrosos” e por ter liderado a revolução que implantou a República Conselhista da Baviera -, bradou Toller aos Juízes que o sentenciaram:
“Uma vez que não penso como os senhores, os senhores devem permitir-me dizer que não acatarei esse veredito como um veredito do direito, mas como um veredito do poder.” (grifado, pois atualíssimo!).
Eis o retrato de uma fase histórica extremamente rica da história alemã do início do século XX, prenhe de aventuras e desventuras revolucionárias, utopias e decepções socialistas, amores e desamores, enfim, a vida como tem que ser.
Vale a leitura, sobretudo para que, aprendendo com o passado e com a história de um povo e de uma nação, saibamos enfrentar a dura realidade que se nos apresenta hoje, e desafiar o futuro sombrio que nos aparece amanhã.
Notas e Referências
[1] Publicado no Brasil em 2015, pela Editora Madalena (São Paulo), traduzido por Ricardo Ploch.
[2] O “temperamento melancólico” é explicado “nos revolucionários, pois estão sempre à procura de um ideal que se esquiva, e em alguns criadores, sempre em busca de uma auto superação.” (ROUDINESCO, Elisabeth e PLON, Michel, Dicionário de Psicanálise, Zahar, Rio de Janeiro, 1998, p. 507). Sobre a melancolia, Freud escreveu um texto primoroso, publicado em 1917, tratando-a, “não como uma doença, mas um destino subjetivo.” (“Luto e Melancolia”, encartado no volume 12 de suas Obras Completas, publicadas no Brasil pela Editora Companhia das Letras: São Paulo, 2010, páginas 170 a 194).
[3] Escritor e dramaturgo alemão, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1912.
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