Por Eliza Cerutti e Marcos Catalan - 22/12/2015
Os diques erigidos no desvelar da história da humanidade – pela Cristandade ou pelo Islã e, mais recentemente, pela normatividade moral gestada na indelével fusão de insustentáveis imperativos categóricos com alguns dos arquétipos de lisura moldados na Era Vitoriana – não foram capazes de conter a força das marés da contemporaneidade e, uma vez rompidos, deixaram de obnubilar a percepção de situações que desafiam barreiras culturais e religiosas, e que exigem, a partir da intersecção com outros saberes, conformação jurídica apta a oferecer respostas à demandas imantadas à identidade e(ou) a arranjos interpessoais inimagináveis, há algumas décadas, nas sociedades de matriz eurocêntrica.
Um desafio que cresce em complexidade quando se percebe que (a) direito civil não foi estruturado para tutelar a dimensão existencial de seres demasiadamente humanos – eis que, sua arquitetura jurídica, inspirada em referenciais decimonônicos, foi projetada para tutelar os indivíduos por meio da proteção de seu patrimônio – e (b) se reconhece a dificuldade desse mesmo direito em lidar com o novo. Uma problemática da qual não podem ser afastados os valores grafados com alegres matizes na Constituição Federal promulgada em 1988, uma Constituição informada pela nítida percepção da possibilidade de tutela de múltiplas dimensões da existência humana diante das promessas – implícitas e (ou) explicitas –, feitas a todos que vivem no Brasil, de vidas dignas, de garantia do direito à liberdade e à identidade, que se materializam – também – quando do exercício da vida privada, da intimidade, da sexualidade e (ou) da possibilidade de constituição (ou não) de família, sem o peso de muitas das âncoras morais forjadas em um passado recente.
Constituição, prenhe de regras e princípios caracterizados, também, por sua força normativa hierarquicamente superior à advinda de quaisquer outras leis vigentes no país, e que, por ser estruturalmente aberta, permite que seu conteúdo seja moldado em um processo dialógico de reconstituição de si mesma, sempre que necessária a edificação de solução para um problema que tenha sido pensado (ou não) no cenário jurídico existente no momento imediatamente anterior.
Constituição apta a garantir esses espaços de liberdade, se bem instrumentalizada.
Constituição que reduz, e muito, nesse contexto, a relevância do labor do legislador.
Curiosa e paradoxalmente, intensa atividade legislativa pode ser identificada na edição de leis no afã – explicitamente platônico e, portanto, míope – de oferecer respostas precisas às demandas da contemporaneidade. E isso, quando não é usada tal qual a ferramenta criada por Guillotin, buscando ceifar direitos conquistados com inenarrável sofrimento, a exemplo do que ocorre hodiernamente no processo de edição do explicitamente, inconstitucional, estatuto das famílias[1].
Algumas reflexões, talvez, ilustrem melhor, esse cenário.
Na ausência de lei específica, a realização de cirurgia de redesignação de sexo pressupõe respeito à Resolução do Conselho Federal de Medicina[2] – que exige o diagnóstico de transtorno de identidade de gênero e o acompanhamento ao longo de intermináveis dois anos, perante equipe multidisciplinar –, apesar de garantidos o direito à identidade e à percepção de que a livre expressão da sexualidade encontra refúgio na proteção que pulsa dos princípios da dignidade da pessoa humana e da isonomia substancial, ganhando densidade na tutela da intimidade e das múltiplas liberdades que acompanham (ou não) a existência humana. Uma questão privada, portanto, que perpassa a relação que a pessoa tem com o seu próprio corpo, com o seu nome e, enfim, consigo mesma e que, por isso, precisa ser constantemente repensada de modo a garantir o máximo respeito à liberdade em sua dimensão substancial e existencial e não se distancie do estado da arte havido na interação transdisciplinar dos saberes.
A alteração do nome atrelada à identidade de gênero, embora, não regrada expressamente pela Lei de Registros Públicos, não encontra óbices no Direito brasileiro, embora, ignorando tal espaço de liberdade, a práxis demonstre ser imperiosa autorização judicial e a necessidade de comprovação, em juízo, de que o nome não coincide com a identidade de gênero autopercebida. Modificação, aliás, que não pressupõe a realização da cirurgia de transgenitalização ou quaisquer perícias, apesar da controvérsia, ainda reinante, entre os juristas. Autorização judicial exigida, ainda hoje, em razão do excessivo apego à valores despidos de contemporaneidade e que, apesar de grafados na Lei de Registros Públicos[3], não impedem a valorização do uso do nome social, mesmo que inexista lei federal regrando o tema. Aliás, ainda acerca do assunto, é oportuno informar o trâmite, na Câmara dos Deputados, de Projeto de Lei 5002/2013 que ao reproduzir, em boa medida, os termos de lei Argentina, busca simplificar procedimentos ao (a) dispensar a exigência de diagnósticos, (b) de acompanhamento multidisciplinar e (c) afastar a exigência de intervenção judicial para a alteração de nome e (ou) gênero perante os Registros Públicos.
Enfim, no que tange às relações familiares, seja no campo da conjugalidade, seja no da parentalidade, não parece haver espaço, sob o ponto de vista do Direito, para qualquer tipo de diferenciação atrelada a questões relacionadas à sexualidade das pessoas, o que se extrai dos princípios da liberdade, da igualdade ou da garantia à vida familiar e privada. Não obstante, não se pode negar que a fenomenologia das relações humanas é marcada pelo processo de afirmação de muitos dos direitos assegurados constitucionalmente e, por isso, debates como este – por mais que pareçam apontar para obviedades – não podem ser considerados encerrados.
Notas e Referências:
[1] Nos termos do projeto de lei 6583/13.
[2] Trata-se da Portaria 2803/13.
[3] Exceto, na hipótese de seu artigo Art. 56.
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Eliza Cerutti é Maestra en Derecho de la Infancia y Familia por la Facultat de Derecho de la Universitat de Barcelona. Advogada em Porto Alegre. . . .
. Marcos Catalan é Doutor summa cum laude em Direito Civil pela Faculdade do Largo do São Francisco da Universidade de São Paulo. Mestre em Direito pela Universidade Estadual de Londrina. Professor no curso de Mestrado em Direito e Sociedade do Unilasalle, no curso de Direito da Unisinos e em cursos de especialização pelo Brasil. Advogado, parecerista e consultor jurídico. .
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