Um não tão feliz dia internacional das mulheres

08/03/2016

 

 Por Fernanda Martins e Marcelli Cipriani - 08/03/2016

Feliz dia internacional de: 11 estupros por hora. Feliz dia internacional de: 1 espancamento a cada 24 segundos. Feliz dia internacional de: apenas 35% das violações notificadas. Feliz dia internacional de: 1 milhão de abortos clandestinos por ano. Feliz dia internacional de: revitimização institucional (policial, de saúde). Feliz dia internacional de: só 10% de mulheres no Congresso. Feliz dia internacional de: PL5069. Feliz dia internacional de: cultura do estupro. Feliz dia internacional de: apenas 2/3 dos salários recebidos por homens. Feliz dia internacional de: quase 60% das mulheres vivenciando assédios no ambiente laboral. Feliz dia internacional de: 7h a mais de trabalho semanal por mulheres que são casadas.

 

O dia internacional da mulher recupera o destino fatídico de mais de 100 operárias estadunidenses – que, em 1857, morreram incendiadas em uma fábrica que as explorava com condições deploráveis de trabalho, com assédios sexuais e psicológicos, com salários insuficientes e com carga horária extremamente abusiva. Também relembra que, nessa mesma época, milhares de trabalhadoras dos Estados Unidos já reivindicavam aquilo que, até hoje, temos que demandar: equidade política e econômica, respeito à inviolabilidade do próprio corpo, direito à própria autonomia. Ainda, marca o papel feminino no rompimento do czarismo violento na Rússia, há quase um século: também operárias faziam greve de fome e pediam a paz no país, dando força e servindo como estopim da revolução que lá, posteriormente, se alocou.

Assim, o dia 8 de março serve para que, mediante o reconhecimento do passado feminino ao longo do mapa e do tempo, não esqueçamos da trajetória de resistências que nos acompanha, por absoluta necessidade de sobrevivência, ao longo da história: já fomos carbonizadas apenas por levantar a voz; já definhamos, sem alimento, em busca da paz; já nos organizamos para afirmar o óbvio – que o gênero, essa construção hierárquica de papeis sociais assimétricos, essa determinação coercitiva do que devem ser nossos lugares, destinos, funções, comportamentos e posições na sociedade, não mais seria aceito.

Hoje, a despeito de avanços inegáveis, ainda sofremos sangrando por abortos malsucedidos, desvalorizadas por colegas de trabalho, diminuídas por salários menores do que os masculinos, destruídas por espancamentos que chegam ao número endêmico de 3 a cada minuto, invadidas por 6 estupros a cada hora. Quase dois séculos após o abafar perverso das operárias assassinadas, nossas liberdades permanecem suprimidas pelo medo que mais de 90% das mulheres entre 16 e 24 anos afirmam ter de ser vítimas de violência sexual.

A rua continua não sendo nossa, e nos trazendo angústias a cada passo que escutamos atrás de nós quando, sozinhas, nela caminhamos. A política institucional também não nos pertence, contando com uma sub-representatividade feminina de míseros 10% de deputadas e senadoras mulheres. A despeito de termos ocupado universidades como professoras ou estudantes, os espaços de autoridade e de poder seguem sendo essencialmente masculinos. No campo do direito, particularmente, não há preocupação com conceder preferência às sustentações orais feitas por gestantes, por exemplo, e nada se questiona acerca das leis que ensinamos, aprendemos e aplicamos, como se as mesmas fossem neutras, no lugar de terem sido criadas sem nossa participação, ainda que versando especificamente sobre nossos corpos e nossas vidas.

Precisamos questionar, em nossos cotidianos profissionais, não apenas quais são as mulheres inseridas no direito, mas igualmente quais são aquelas que visam a ser padronizadas para receber garantias a partir dele: antigamente, a semi-imputável, que precisava da autorização masculina para simples atos da vida civil. Também, a “mulher honesta”, ou aquela que, por não sê-la, ensejava a possibilidade de cancelamento do matrimônio pelo marido que descobrisse sua não virgindade. Hoje, a vítima ideal, a mãe compulsória, a adolescente que tem sua oportunidade de estágio vetada por não ser homem, a aluna que é assediada pelo professor...

Não há como ignorar que a realidade excludente é um cenário comum no mundo jurídico. Movimento silente e compactuado, muitas vezes, mesmo por “pensadores” que clamam por todos os meios de igualdade e de consagração da isonomia no tão pretendido Estado Democrático de Direito brasileiro. Diante de todos os manifestos e as negações que se elaboram na dura realidade de denúncia ao machismo, sorrateiramente opta-se pela manutenção do silenciamento das vozes das mulheres no ambiente jurídico-acadêmico nacional.

Romper o silêncio é um trabalho difícil, porque pressupõe arriscar a desconstrução de estruturas fixadas e pré-moldadas diante daquilo que sempre se manteve como alicerce da sociedade. A invisibilização das violações que decorrem dos papéis que nos imputaram e das expectativas sexistas que criaram para nós, se aprofunda ainda mais porque “nem homens nem mulheres gostam de falar sobre o assunto, contornam rapidamente o problema. Porque a ideia de mudar o status quo é sempre penosa.”[1] Esse cenário, entretanto, nada mais é do que a tradicional reprodução do machismo, expressa para além dos números alarmantes de violência material da mulher no Brasil, pois também pela exclusão e pela diminuição de nossas vozes: que é outro ato de opressão – no caso, simbólica – a nos aprisionar nos marcos do espaço privado[2].

A ocupação da academia e do espaço do direito através do diálogo com as mulheres e suas particularidades – formas de escrever, objetos de pesquisa e peculiaridades de leituras e demandas jurídicas –  deve ser reconhecida acima de tudo como meio de atuação política emancipatória, como ato de resistência crucial que desestabiliza instituições as quais, como as jurídicas, “dependem da reprodução da desigualdade e da injustiça” e que “infligem violência nas mulheres e nas minorias de gênero e, de fato, em todas as minorias sujeitas ao poder policial [aqui reconhecido também como espaço judicial] por se mostrarem e falarem como aquilo que são.”[3]

Todavia, em que pesa tudo isso, inúmeras foram as seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) a oferecer, nesse 8 de março, “serviços” como aulas de maquiagem e depilações faciais gratuitas, massagens e palestras sobre dietas, vendas de produtos de beleza com descontos. Não há nada de errado, obviamente, em mulheres desejarem essas espécies de “homenagens” – entretanto, existe algo de profundamente violento na ressignificação de nossas lutas, que se arrastam até os dias atuais, e em sua redução despolitizada à conformação da mulher em padrões. Como mulheres e advogadas, estamos expostas a jornadas duplas, triplas e quádruplas, à violência doméstica, à desvalorização profissional, aos baixos salarias, aos assédios de colegas, à perseguição política por posicionamentos e críticas à misoginia. Esses problemas, para além de agrados pontuais, precisam – com urgência – ser publicizados, debatidos e, enfim, solucionados.

Parabéns solitários (ou flores, chocolates e benesses estéticas desacompanhadas) no dia 8 de março são uma espécie de prêmio consolatório perverso de uma sociedade que teima em reinterpretar a longa tragédia feminina como se fosse saudação, pretexto para presentes e um balde de água gelada na memória. Homenagear a data de hoje, inspirada e produzida por múltiplas datas e sofrimentos do passado, a partir de conformações a padrões que nos violam, é falar em nosso nome, reduzindo-nos a um todo estereotipado por critérios pífios, marcando e definindo o feminino, de fato, pelos estigmas que sempre os lobisomens da história se esforçaram em impor.

O lembrete acerca das motivações que enseja(ra)m o dia de hoje como dia internacional da(s) mulher(es) apenas deveria representar minimamente os símbolos imortais de uma incessante e desesperada – jamais desesperançada – luta pela dignidade humana em sua radicalidade. Aí, portanto, algum âmago e certo sentido ao 8 de março: instante para não esquecer, como em todos os outros dias, o quanto já avançamos, mas, principalmente, o quanto ainda precisamos avançar.


Notas e Referências:

[1] ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Sejamos todos feministas. Tradução de Christina Baum. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 42.

[2] PATEMAN, Carole. O contrato sexual. Tradução de Marta Avancini. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.

[3] BUTLER, Judith. Repensar la vulnerabilidad y la Resistencia. Conferencia en la Universidad de Alcalá, XV Simposio de la Asociación Internacional de Filósofas, 2014.


Marcelli CiprianiMarcelli Cipriani é Graduanda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); integrante do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal (GPESC – PUCRS), e do Grupo de Pesquisa em Gênero, Sexualidade e Feminismos (GP-GSFem – PUCRS); bolsista de Iniciação Científica do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional (PRISMAS – PUCRS).

.

fernandaFernanda Martins é Mestre em Teoria, Filosofia e História do Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. Professora substituta na Universidade Federal de Santa Catarina e professora na Universidade do Vale do Itajaí. E-mail: fernanda.ma@gmail.com

 


Imagem Ilustrativa do Post: Hip Hop - Serie 2 - Figura 2 // Foto de: Obras de Panmela Castro // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/anarkiaboladona/14954641950/

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura