Por José Edvaldo Pereira Sales – 09/08/2017
I
Falar, ainda que sob a forma de esboço, de hermenêutica e de garantismo requer uma delimitação conceitual antes de se fazer indicações sobre a relação entre ambos. Uma síntese sobre o sentido de hermenêutica pode ser encontrada em Grondin (GRONDIN, Jean. Hermenêutica. São Paulo: Parábola Editorial, 2012) que aponta três acepções:
(a) Na primeira, o termo hermenêutica possui um sentido clássico significando a arte referente à interpretação de textos. Esse desenvolvimento ocorreu, principalmente, na teologia para a interpretação de textos sagrados ou canônicos. Daí dizer o mesmo autor que na teologia se desenvolveu uma hermenêutica sacra, no direito, uma hermenêutica iuris e na filosofia, uma hermenêutica profana. Sua função é auxiliar a interpretação quando o intérprete estivesse diante de passagens obscuras, ambíguas. Nesse sentido, a proposta hermenêutica nessa acepção está voltada para formulação de regras, preceitos ou cânones que viabilizem uma boa interpretação.
(b) A outra forma de se conceber a hermenêutica está atrelada a Wilhelm Dilthey para quem a hermenêutica deve voltar-se para as regras e métodos das ciências do entendimento. Noutras palavras, a hermenêutica é o fundamento metodológico para as chamadas ciências humanas. Essa perspectiva desenvolveu-se tendo em vista o desejo de considerar tais ciências como “verdadeiras ciências”, pois, até então, o rigor metodológico das ciências puras (exatas/naturais) inviabilizava esse projeto. Era preciso uma metodologia diferenciada, mas tão rigorosa quanto a das ciências puras, e caberia à hermenêutica essa tarefa.
(c) Por fim, a hermenêutica passa a ter um caráter de filosofia universal, pois não é apenas um método, mas processos fundamentais da essência da vida. A existência humana no mundo é caracterizada inexoravelmente pela interpretação. Coube a Martin Heidegger a ruptura com aquelas acepções clássica e metodológica (além do clássico Ser e tempo, vide também Ontologia: (hermenêutica da facticidade), duas obras importantes de Heidegger sobre o tema). A hermenêutica, nessa perspectiva, vincula-se à existência. É a passagem de uma hermenêutica de textos para uma hermenêutica da existência, isto é, como ontologia da compreensão centrada como o modo ser do Dasein. Hans-Georg Gadamer, discípulo de Heidegger, desenvolveu vários pontos do pensamento de seu mestre e introduziu outras vias para apresentar, no seu clássico de 1960, Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, o que conhecemos como Hermenêutica filosófica, que não se ocupa de “métodos para as ciências do espírito”, mas fundado na analítica existencial de Heidegger, busca trabalhar o que acontece quando se opera a compreensão, tema típico das ciências humanas, independente do querer e do fazer, como ele mesmo ressalta no prefácio à 2ª edição de sua obra fundamental.
Esse é um esquema bastante simples sobre um tema que permeia áreas distintas da investigação humana; e, em cada uma dessas acepções, temos uma série de autores e variações diversas que não cabem aqui explicitar. A título de sugestão de leitura, sugerimos o artigo dos professores Saulo de Matos e Victor Pinheiro (MATOS, Saulo Martinho Monteiro de; PINHEIRO, Victor Sales. Por um conceito hermenêutico de Direito: delimitação histórica do termo ‘hermenêutica’ e sua pertinência ao Direito. In: Revista do Instituto de Hermenêutica Jur. Belo Horizonte, ano 14, n. 20, p. 169-194, jul./dez. 2016), além da obra de Grondin indicada no início. O propósito maior dessas três acepções é dar uma ideia muito geral sobre hermenêutica para situar a leitura que o garantismo faz da interpretação para o direito.
II
Portanto, feita essa sucinta exposição sobre acepções para o termo hermenêutica, vejamos o garantismo. Em relação ao garantismo, certamente somos remetidos ao pensamento do jusfilósofo italiano Luigi Ferrajoli e, dentre suas várias obras, ao seu Direito e razão: teoria do garantismo penal.
No entanto, aqui entre nós (brasileiros), o termo garantismo tem sido apresentado com os mais diversos significados, preponderando, em muitos meios, inclusive acadêmicos, um sentido depreciativo; e, noutros, uma tentativa de apresentar uma “compreensão mais completa” da teoria do maestro italiano, que teria recebido uma interpretação reducionista por parte de alguns estudiosos brasileiros, pretendendo-se, assim, apontar uma indicação de falhas na leitura da teoria. Vamos classificar e sintetizar esses sentidos para garantismo da seguinte forma:
(a) Sentido vulgarizado (banalizado): não há aqui uma “teoria” desenvolvida ou em curso, mas uma adjetivação negativista do tipo “fulano é garantista” ou “não sou garantista”. Há uma rotulação. Querendo-se com isso dizer que o garantismo seria sinônimo de “tolerância com a criminalidade”, “apoio a bandidos” – “uma bandidolatria”. É o mesmo discurso que, não poucas vezes, coincide com a ridicularização dos direitos humanos. É como se o trocadilho (negativo) fosse indiferente: defender direitos humanos é ser “garantista” e vice-versa. As origens dessa visão podem ser buscadas no completo desconhecimento, leia-se, falta de leitura e compreensão, da obra de Luigi Ferrajoli (e de outros temas caros para o direito contemporâneo como os direitos humanos), num esforço (talvez até inconsciente) de se adaptar a um discurso majoritário de rigor punitivista, e no papel (ou no desserviço) que a “mídia policialesca” desempenha diariamente popularizando discursos de Lei e Ordem, enaltecendo a violência “justificada” a depender da vítima. É certo que outros fatores contribuem para essa miopia conceitual como as questões de ordem histórico-social presentes no direito penal mais do que em qualquer outro direito. Um tipo de discurso que mal se dá conta (será?) de que nos esforçamos para que o Estado reprima o que ele mesmo é causador: a “criminalidade” é própria das camadas sociais desfavorecidas atingidas em cheio pela exclusão quase total de políticas públicas de inserção social. Temas complexos que estão para além de um discurso fácil do tipo “o cidadão de bem está preso em sua casa” e das acomodações das classes mais favorecidas que não querem violência, mas também não abrem mão de privilégios e práticas centenárias de concentração de renda.
(b) (Um suposto) Sentido “pleno” ou “integral”. Várias propostas têm surgido no Brasil a respeito do garantismo, ora para criticá-lo total ou parcialmente, não sob o ponto de vista epistemológico, mas sob o viés negativista à semelhança do que foi dito na letra “a”; ora para apresentar uma “leitura correta” do pensamento de Ferrajoli, que teria sido recebido no Brasil, a partir de alguns estudiosos, uma interpretação deficiente (reducionista). Qualquer dessas perspectivas tem a pretensão de sustentar um tipo de Garantismo que seria “pleno”, “total”, “mais completo”, “integral”. Apoiam-se na ideia de um “Garantismo positivo”, como uma preocupação do sistema jurídico quando o Estado não protege de maneira suficiente determinado direito fundamental, que se coloca ao lado do “Garantismo negativo”, que objetiva coibir os excessos do Estado, ambos constituindo a dupla face do princípio da proporcionalidade. Há vários textos (artigos e livros) nesse sentido, muitos disponíveis na internet, que apresentam uma leitura semelhante à anterior (letra “a”) com a única distinção de estarem vestidos de uma “sofisticação acadêmica”. O que resultada disso, inegavelmente, é um modelo maximalista para o direito penal com criminalização de condutas, exasperação de penas e requalificação de crimes (referimo-nos a certos ilícitos tidos como de menor potencial ofensivo que deixariam de sê-lo em nome desse agravamento fundado em princípio).
(c) Sentido epistemológico (segundo Ferrajoli). Sintetizamos aqui as três respostas de Ferrajoli à pergunta “O que é garantismo?” apresentada no Capítulo XIII de Direito e razão.
(c.1) Modelo normativo de direito: modelo de estrita legalidade, o que significa dizer que no plano epistemológico, o Garantismo é um sistema cognitivo ou de poder (intervenção) mínimo; no plano político, é uma técnica de tutela idônea a minimizar a violência e a maximizar a liberdade; e no plano jurídico, é um sistema de vínculos impostos à função punitiva do Estado em garantia dos direitos dos cidadãos.
(c.2) Teoria jurídica da validade e da efetividade como categorias distintas na medida em que exprime uma aproximação teórica que mantém separados o ser e o dever ser no direito. Essa aproximação é uma teoria da divergência entre normatividade e realidade, direito válido e direito efetivo. É uma teoria ao mesmo tempo normativa e realista: opera como doutrina jurídica de legitimação e perda de legitimação. E, por isso, exige uma tensão crítica sobre as leis vigentes (perda de legitimação interna do direito penal ou crítica interna).
(c.3) Filosofia política, pois exige do direito e do Estado o ônus da justificação externa com base nos bens e nos interesses dos quais a tutela ou a garantia constituem a finalidade. Nesse âmbito, pressupõe a separação entre direito e moral e propicia uma perspectiva de crítica externa.
Para uma síntese mais pormenorizada (e mais completa) do garantismo tal qual apresentado por Ferrajoli, sugerimos a leitura de: ROSA, Alexandre Morais da. Para entender o Garantismo Penal de Ferrajoli. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/para-entender-o-garantismo-penal-de-ferrajoli-por-alexandre-morais-da-rosa/>; e também o livro de ALBUQUERQUE, Fernando da Silva; PINHO, Ana Cláudia Bastos de. Precisamos falar sobre garantismo: limites e resistência ao poder de punir. Florianópolis: Empório do Direito, 2017.
III
Apresentados, então, os sentidos para hermenêutica e garantismo, é possível agora relacionar os dois termos. Esclarecemos, desde logo, que garantismo para nossas pretensões aqui é o de Luigi Ferrajoli. E, como veremos, hermenêutica ou interpretação para Ferrajoli tem uma natureza técnica, instrumental, muito mais próxima daquela primeira acepção apresentada por Grondin, conforme visto no início, embora com pelo menos duas distinções muito características: Ferrajoli não está preocupado com a elaboração e apresentação de um rol de preceitos ou de cânones interpretativos dos quais o intérprete poderia valer-se; sua preocupação está centrada em elaborar uma teoria que, embora legitime o poder punitivo (é bom ressaltar isso), imponha limites ao Estado, inclusive e com destaque para o Estado-Juiz (preocupação sobre como os juízes devem decidir) a partir dos direitos fundamentais.
Ferrajoli encara a interpretação (ele utiliza o termo interpretazione) sob essa perspectiva. Sendo um autor declaradamente juspositivista, possui, entretanto, diversas particularidades frente a outros teóricos do positivismo jurídico. Uma delas é sua grande preocupação com a decisão ou sobre a relação entre limites ao poder punitivo e decisão. Ferrajoli estaria mais próximo da tradição positivista de Hans Kelsen do que de H. Hart, por exemplo; embora dialogue com os dois, mantém com ambos divergências profundas. Não é sem motivo que Norberto Bobbio, um kelseniano, escreveu o prefácio para a primeira edição de Direito e razão.
Para entendermos melhor a interpretação para Ferrajoli, é bom fazermos uma ligeira comparação entre os dois (Ferrajoli e Kelsen). Kelsen entendeu, em sua Teoria pura do direito, que as indeterminações no direito podem decorrer de três fatores:
(a) A norma superior nunca pode vincular em todas as direções o ato pelo qual é aplicada tanto na produção normativa quanto na sua execução;
(b) A indeterminação pode ser intencional por parte do órgão que criou a norma;
(c) A indeterminação pode ser não-intencional, quando resultante da pluralidade de significações de uma palavra ou de uma sequência de palavras. O sentido verbal não é unívoco. Portanto, podemos notar que Kelsen não cria na precisão (controle) da linguagem.
Para Kelsen discutir qual a resposta correta dentre as várias possibilidades não é um problema de teoria do Direito, mas um problema de política do Direito, pois o juiz é dotado de relativa liberdade ou discricionariedade. Dentro da moldura que lhe é outorgada ele pode movimentar-se; e, ao aplicar o direito, o órgão julgador combina uma operação de conhecimento do direito com um ato de vontade ou de escolha. É exatamente esse ato de vontade que distingue a interpretação feita pelo órgão julgador de todas as outras interpretações. É a chamada interpretação autêntica, pois cria direito.
Ferrajoli, por sua vez, taxa esse juspositivismo de paleopositivismo. Sua aposta está no controle da linguagem e, para isso, sua teoria objetiva minimizar os espaços de discricionariedade existentes em face do que ele denomina de poder de disposição no âmbito do poder judicial. Esse poder, que é eivado de ilegitimidade, só existe porque aqueles espaços são inevitáveis, pois a linguagem jurídica possui significados ambíguos.
Os axiomas do garantismo (SG) são apresentados por Ferrajoli, que chega a propor a criação de uma linguagem legal. Na sua obra posterior a Direito e razão, que é Principia iuris, o terceiro volume é dedicado à apresentação de sua teoria a partir de um modelo axiomático e utiliza, para isso, uma série de enunciados lógicos.
Em sentido amplo, Ferrajoli divide a interpretação em:
(a) Interpretação doutrinal, que é a praticada pelos juristas com o objetivo de lidar/elucidar os conceitos próprios do direito (fato de língua).
(b) Interpretação operativa, a realizada pelos juízes e demais operadores do direito diante da análise que fazem dos fatos em apreciação (fato de linguagem).
No que se refere mais especificamente ao poder judicial, intimamente ligado à decisão, Ferrajoli divide-o dessa forma (vide principalmente o Capítulo III: O poder punitivo entre verificação e valoração. In: FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010):
(a) Poder de verificação jurídica ou interpretação.
(b) Poder de verificação fática ou de comprovação probatória.
(c) Poder de conotação (equidade do juiz).
(d) Poder de disposição: esse poder é resultado de carências, imperfeições do sistema; é patológico e está em contradição com a natureza da jurisdição.
Os três primeiros são, para Ferrajoli, intrínsecos à função jurisdicional e estão presentes no sistema garantista aperfeiçoado; o quarto, não – ele está em contradição com a jurisdição.
A preocupação central de Ferrajoli em impor limites ao poder punitivo do Estado leva-o a conceber um modo de ler e de interpretar o direito em busca consequencialmente de uma redução de espaços de discricionariedade do julgador de modo que a decisão reflita uma operação cognitiva atrelada a parâmetros restritivos introduzidos no direito a partir de um modo de conceber a linguagem tendo seu ápice no controle da linguagem e no princípio da taxatividade. Recorre Ferrajoli à filosofia analítica com destaque para o controle de linguagem e propõe a criação de uma linguagem legal com a finalidade de minimizar ao máximo os espaços de discricionariedade. Isso só é possível a partir de uma teoria de verdade como verificação para que a produção do direito, incluindo a elaboração de leis e a própria interpretação, seja um ato de conhecimento (verificável empiricamente), embora paire a sombra da ilegitimidade do poder de disposição. Se é impossível reduzir esses espaços, a teoria (garantismo) deve trabalhar para reduzi-los ao máximo.
Se o garantismo nessa acepção é tido como sinônimo de deslegitimação do direito penal e de agressão aos direitos fundamentais... a conversação em torno do significado dessa proposta teórica se torna muito difícil.
. . José Edvaldo Pereira Sales é Mestre e Doutorando em Direito (PPGD/UFPA). Promotor de Justiça da Capital (Estado do Pará). . .
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