Por Daniela Portugal - 21/01/2016
"Vou-me embora pra Pasárgada Lá sou amigo do rei Lá tenho a mulher que eu quero Na cama que escolherei"
(Manoel Bandeira)
A recentíssima Lei nº 13.254, de 13 de janeiro de 2016, introduziu importantes novidades no que diz respeito às formas de regularização cambial e tributária, lançando efeitos específicos quanto à punibilidade de crimes correlatos. A lei institui o Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT), que se trata da declaração voluntária de recursos, bens ou direitos não declarados ou declarados ilicitamente.
A Lei oportuniza a declaração ou retificação voluntária para todos os residentes ou domiciliados no Brasil em 31 de dezembro de 2014 que sejam ou tenham sido proprietários ou titulares de ativos, bens ou direitos até aquela mesma referida data.
O objeto da regularização cambial e tributária, nos termos do art. 2º da Lei, compreende tanto recursos ou patrimônio de origem lícita, oriundos de atividades permitidas, quanto produto ou o proveito de determinados crimes, estes selecionados pela própria Lei no seu art. 5º, § 1º.
Obviamente, a Lei não faz nenhuma menção do benefício a bens oriundos de crimes comuns patrimoniais - esses continuam a ser regrados pelo sistema repressivo tradicional, em que a reparação do dano pode representar, no máximo, causa de diminuição de pena[1].
A possibilidade de regularização referida na recente Lei se restringe a recursos de origem lícita e a produtos e proveitos de alguns dos chamados crimes de "colarinho branco", previstos nas Leis nº 8.137/90 (crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo); nº 4.729/65 (define crime de sonegação tributária); nº 7.492/86 (crimes contra o sistema financeiro nacional); nº 9.613/98 (crimes de lavagem de capitais); além de elencar crimes econômicos e crimes-meio correlatos previstos no Código Penal.
Como se frisou, todavia, os benefícios RERCT não são extensivos a todos os crimes previstos nas supracitadas leis, mas apenas a alguns tipos selecionados, expressamente, pela Lei nº 13.254/2016, em seu art. 5º, § 1º.
Nesse sentido, quanto aos crimes contra a ordem tributária, a nova lei seleciona o art. 1º, incisos I e II, e art. 2º, inciso V, da Lei no 8.137/90, bem como os delitos previstos na revogada Lei nº 4.729/65[2]. Beneficia-se, aqui, a conduta de supressão ou redução de tributo mediante omissão de informações, fornecimento de declarações falsas e inserção de elementos inexatos. O programa de regularização não compreende, por exemplo, o crime tributário praticado com falsificação de nota fiscal ou de outros documentos de operação tributária.
Ao tratar dos crimes contra o sistema financeiro nacional, a nova lei somente beneficia o crime de evasão de divisas, nas modalidades previstas no caput e no parágrafo único do art. 22 da Lei nº 7.492/86, sem que se estenda o benefício a tantos outros delitos também descritos na Lei dos Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional, como é o caso da gestão fraudulenta e temerária.
O art. 5º, § 5º, da Lei nº 13.254/2016, ainda, restringe que a evasão de divisas passível de extinção de punibilidade derive de recursos com origem lícita ou, quanto ilícita, que sejam oriundos dos crimes expressamente listados pela nova lei como autorizadores do benefício (infrações descritas no art. 5º, § 1º, incisos I, II, III, VII ou VIII).
A nova Lei, quando define a possibilidade de extinção de punibilidade para crime de lavagem de capitais, vincula, equivocadamente, aos casos em que o objeto do crime for bem, direito ou valor proveniente, direta ou indiretamente, dos delitos prévios previstos nos incisos I a VI do art. 1º da Lei nº 9.613/98.
Cometeu-se, aqui, grave impropriedade técnica. Note-se que o Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT), instituído pela Lei nº 13.254/2016, direciona o programa de normalização para proprietários ou titulares de ativos, bens ou direitos em períodos anteriores a 31 de dezembro de 2014. Ocorre que, desde 2012, por meio da alteração dada pela Lei nº 12.683/12, a Lei de Lavagem de Capitais não dispõe mais, em seu art. 1º, de um rol de delitos antecedentes.
Por um lado, a retirada do rol de delitos prévios fora prejudicial em se ampliar o conteúdo material do crime de lavagem, passando a permitir que um rol maior de condutas pudesse ensejar a incidência do art. 1º da Lei nº 9.613/98. Não se pode, entretanto, pretender resgatar a antiga redação, mais benéfica, somente no que ela puder ser prejudicial aos agentes que tenham praticado crime de lavagem de capitais antes de 31 de dezembro de 2014.
Ora, se não há mais um rol de delitos prévios desde 2012, não há como se restringir o benefício da oportunização de regularização cambial e tributária somente para o produto ou proveito de lavagem de capitais que tenha derivado, exclusivamente, de tráfico de entorpecentes, terrorismo e seu financiamento, contrabando ou tráfico de armas, ou de crime contra a administração pública, impondo-se, pois, a sua extensão para os bens e recursos oriundos de outras infrações penais.
Além disso, a Lei nº 13.254/2016 estende os benefícios para alguns crimes previstos no Código Penal, listando a sonegação de contribuição previdenciária (art. 337-A) e crimes correlatos, tais como a falsificação documental e ideológica (arts. 297, 298 e 299) e o uso de documento falso (art. 304).
Foram vetados a figurarem objeto do benefício o art. 21, caput e parágrafo único, da Lei nº 7.492/86 (atribuição de falsa identidade ou sonegação de informação em operação de câmbio), bem como o art. 334 do Código Penal (crime de descaminho), sob o fundamento de que tais espécies ampliariam demasiadamente as hipóteses de extinção de punibilidade.
Quanto às condições para a o reconhecimento da extinção de punibilidade, a nova lei determina que a pessoa física ou jurídica interessada apresente à Receita Federal, com cópia para o Banco Central, declaração única de regularização, bem como a descrição das condutas praticadas pelo declarante que se enquadrem nos crimes previstos no § 1o do art. 5o da Lei, assim como a indicação de todos os recursos e proveitos destes delitos decorrentes.
Os referidos recursos, bens e direitos objeto da retificação passarão a ser objeto de arrecadação, viabilizando-se a repatriação de ativos financeiros no exterior, o que ocorrerá em ação intermediada por instituição financeira autorizada a funcionar no Brasil.
A nova Lei exige, ainda, que o cumprimento das condições ocorra antes do trânsito em julgado da decisão criminal condenatória, determinando, também, que a inclusão no RERCT produzirá, em relação à administração pública, a extinção de todas as obrigações de natureza cambial ou financeira, principais ou acessórias, inclusive as meramente formais, que pudessem ser exigíveis em relação aos bens e direitos declarados. Além disso, o § 5o do art. 4º da nova lei prevê que a regularização de ativos mantidos em nome de interposta pessoa estenderá a ela o benefício da extinção de punibilidade.
Resta evidente, mesmo a partir de uma interpretação rasteira do novo texto legal, a sua finalidade arrecadatória e o seu direcionamento político, fatores confirmatórios da tão conhecida seletividade penal. No Brasil, os crimes que são, efetivamente, alvo do interesse punitivo e segregador do Estado, tornam imperiosa a aplicação da norma penal, mesmo quando havida a reparação do dano causado - é o caso dos delitos patrimoniais, objeto de tratamento minucioso dado pelo Código Penal brasileiro.
De outro lado, se o interesse é meramente arrecadatório, a via punitiva penal é apenas meio de constrangimento para o contribuinte, quando a aplicação da pena privativa de liberdade figura, em verdade, instrumento de ameaça para forçar o pagamento de imposto de renda e outros tributos e valores acessórios, como deixa claro o art. 6º da nova Lei.
De tudo isso, fica ainda mais claro o óbvio. A finalidade do Direito Penal não é, nem nunca foi, a proteção de bens jurídicos de maior relevância, mas a institucionalização, por meio do cárcere, dos interesses econômicos estatais, em que a escolha das consequências jurídicos e sistema de benefícios benefícios passa, sistematicamente, pela identificação dos inimigos e amigos da (des)ordem em vigor.
Não se pretende, com isso, construir um discurso de ainda maior rigor punitivo, mas - e de forma diametralmente oposta - de democratização dos benefícios penais, para que novos modelos resolutivos sejam, também, direcionados aos verdadeiramente selecionados a compor o sistema carcerário brasileiro. Com o modelo desigual que hoje nos rege, vigora a lei do "salve-se quem puder", e que vá embora para Pasárgada quem for amigo do rei!
Notas e Referências:
[1] Dispõe a Parte Geral do Código Penal brasileiro: art. 16 - Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato voluntário do agente, a pena será reduzida de um a dois terços. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984). Art. 65 - São circunstâncias que sempre atenuam a pena: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) (...) III - ter o agente: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) (...) b) procurado, por sua espontânea vontade e com eficiência, logo após o crime, evitar-lhe ou minorar-lhe as conseqüências, ou ter, antes do julgamento, reparado o dano.
[2] Cf. STF, HC 85942/SP, public. 01.08.2011; STF, HC 76382/MG, public. 29.08.2003.
. Daniela Portugal é Advogada criminalista. Mestre e Doutora em Direito Penal pela Universidade Federal da Bahia. Professora da Universidade Federal da Bahia, da Escola de Magistrados da Bahia e da Faculdade Baiana de Direito. .
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