Tráfico e consumo: desclassificação e extinção da punibilidade

17/08/2017

Por José Edvaldo Pereira Sales – 17/08/2017

Enquanto o STF não retoma o julgamento do RE 635.659/SP, com Repercussão Geral, interrompido em razão de um pedido de revista do falecido Ministro Teori Zavascki, em 10/09/2015, que tem como discussão a constitucionalidade da criminalização do porte de drogas para consumo próprio, muitos juízes (e tribunais) não querem se antecipar ao pronunciamento final da mais alta Corte do país. Votaram, na ocasião, apenas o relator, Ministro Gilmar Mendes, e os Ministros Edson Fachin e Luís Roberto Barroso. Os três ministros votaram pela inconstitucionalidade do art. 28 da Lei nº 11.343/06, cada um apresentando peculiaridades no seu voto.

O relator declarou a inconstitucionalidade do dispositivo, sem redução do texto, para afastar dele qualquer efeito de natureza penal, permanecendo as medidas lá previstas, mas com natureza administrativa. O Ministro Edson Fachin declarou a inconstitucionalidade, também sem redução de texto, limitando-a à situação dos autos – porte de maconha para consumo próprio –, mantendo-se, contudo, a integralidade do art. 28 quanto às demais substâncias entorpecentes. O voto do Ministro Luís Roberto Barroso apresentou conclusão semelhante (restringir ao caso dos autos), mas indicando quantitativos para diferenciar o porte para consumo e o tráfico.

Essa notícia não é nova. O julgamento foi interrompido, como se disse, em 2015, e ainda não foi retomado, embora estejamos ás vésperas do segundo ano de aniversário do pedido de vista. O debate, contudo, permanece e está na pauta do dia. Não só isso. A rotina policial e forense (com exceções) não foi afetada por esses votos por não constituírem a maioria no STF e, com a retomada do julgamento, poder-se-á ter (realmente não temos como fazer previsão diante dos “precedentes” do STF (e do STJ) em matéria penal) resultado diverso reconhecendo a íntegra constitucionalidade do art. 28. Entretanto, é possível que esse não seja o desfecho. Mas, não queremos aqui rediscutir a questão, e sim apontar a constatação de que não poucos juízes não se sentem confortáveis em declarar a inconstitucionalidade tendo como motivo a pendência do julgamento pelo STF ou mesmo a convicção pessoal de que o reconhecimento da inconstitucionalidade do art. 28 produzirá um incentivo ao tráfico fomentando, em consequência, a violência.

Enquanto isso, a polícia continua a fazer conduções de usuários ou, o pior, a efetuar prisões de usuários sob a acusação de traficância. Queremos partir aqui daquilo que pensamos ser um erro para tentar minimizar seus efeitos na prática forense. Temos notado que tornar teses aceitas no Judiciário é tarefa das mais difíceis sobretudo quando elas têm ares de inovação. A justiça tem os olhos vendados e quando tira a venda, olha para trás. Teses com essas feições e ainda mais se pertinentes à matéria penal carregando em algum sentido ares de minimização quase sempre não são vistas com bons olhos e, prontamente, são rechaçadas com argumentos dos mais diversos do tipo “vamos permanecer fiéis à jurisprudência”.

A que erro nos referimos? À permanência da rotina policial, ministerial (mp) e forense (judiciário) no que se refere ao art. 28 da Lei nº 11.343/06 como se não houvesse no STF três votos favoráveis à inconstitucionalidade desse dispositivo e com repercussão geral. Os TCO’s e IPL’s continuam a ser lavrados; as transações penais e denúncias, oferecidas; e as decisões (pela não inconstitucionalidade) chancelando a plena validade do art. 28, proferidas. Queremos aqui dar enfoque a um erro, que no final do procedimento, produz outro erro: prisões em flagrante por tráfico que no curso ou no fim da ação penal recebe decisão desclassificatória de porte para consumo. Isso não deveria acontecer, é um erro. Mas, vamos ignorar propositadamente aqui o RE 635.659/SP. Qual deve ser o desfecho para o inquérito policial decorrente do flagrante onde há pedido de desclassificação ou para a ação penal onde é proferida decisão desclassificatória?

Queremos dar destaque à situação em que – repetimos, ignorando o RE – o usuário é preso sob acusação de tráfico e na sentença ocorre a desclassificação para consumo. Esse usuário, preso como traficante, não poderá sofrer qualquer tipo de sanção. É que a prisão, medida mais drástica, está muito além daquelas previstas no art.28. A consequência é o arquivamento do inquérito (se o membro do MP reconhece a desclassificação desde logo) ou a da ação penal (quando da sentença) sob um fundamento extralegal, mas amparado pelo direito, a saber, o cumprimento de uma sanção maior do que a que seria imposta.

O STJ julgou um caso do Rio Grande do Sul, HC 373.364, relator Ministro Rogério Schietti Cruz, julgado em 16/02/2017, no qual o juiz de primeiro grau, na sentença, desclassificou a conduta de tráfico para porte de substância entorpecente. Foi considerada extinta a punibilidade por entender o STJ que o acusado havia cumprido sanção mais severa. Embora o acórdão do STJ não detalhe isso, a sentença indica que o acusado permaneceu preso durante 5 meses e 29 dias. A questão chegou ao STJ porque o ministério público recorreu da sentença, o Tribunal de Justiça do RS deu provimento ao apelo e condenou pelo tráfico, o que levou à impetração do HC pelo acusado perante o STJ, que restabeleceu a decisão de primeiro grau. O fundamento da sentença – para quem está preocupado com a indicação do dispositivo – foi o princípio da proporcionalidade. Na verdade, partiu o magistrado de um raciocínio que parece evidente a qualquer pessoa: quem já cumpriu pena mais grave (a prisão) não pode, depois, ter que cumprir pena menos grave. Consta na ementa do HC; “Habeas corpus concedido, para cassar o acórdão impugnado e, por conseguinte, restabelecer a sentença que condenou o paciente pela prática do crime previsto no art. 28, caput, da lei nº. 11.343/2006 e, consequentemente, declarou extinta a sua punibilidade, diante do cumprimento de medida mais severa do que a pena aplicável”.

Pensamos que esse caso, que é fruto de um erro (desconsiderar o RE e tudo que já se discutiu sobre a matéria pela doutrina), serve bem para, tal qual uma saída pela tangente, servir de modelo para aqueles que preferem aguardar o pronunciamento final do STF. Enquanto isso não ocorre, sempre que alguém for preso sob acusação de tráfico, independentemente do número de dias (a gravidade da permanência no cárcere, ainda que breve, vale por si), já sofreu sanção mais grave que as medidas previstas no art. 28. E, por isso, deve ser declarada extinta a punibilidade.

Há, contudo, fora os erros antes mencionados que serviram de caminho para o que foi dito, um aspecto interessante para reflexão e aplicação em casos que não tenham relação com a Lei nº 11.343/06. Queremos nos reportar às prisões por delitos que as comportem, mas que depois passam por desclassificação (no inquérito ou na sentença). A possibilidade de estender os efeitos do HC 373.364/RS do STJ para todos os casos em que houver entendimento pela desclassificação da conduta deve ser levada em consideração. É certo que o art. 28 comporta uma particularidade: não há sanção de encarceramento; contudo, em regra, se a desclassificação importa no reconhecimento de um delito de menor potencial ofensivo, o resultado poderá ser uma transação penal (quase sempre é), que não pode consistir numa medida restritiva da liberdade. Em muitos desses casos, se houve prisão anterior, a situação se aproxima muito do HC decidido pelo STJ. Na verdade, o raciocínio é o mesmo: se houve restrição anterior mais gravosa, a posterior torna-se desnecessária (ou melhor, incabível por ser contrária ao direito por violação do princípio da proporcionalidade). A submissão à prisão é sempre e sempre medida drástica e não pode ser ignorada frente a desclassificações.

Não raras vezes, ter um desfecho justo no processo requer raciocínios enviesados que transitem entre as teses velhas e as novas para não se cometer injustiças em nome daquelas ou também em nome da rejeição destas. No fim, enquanto as novas não são aceitas e não passam por um período de acomodação até se tornarem velhas, aqueles raciocínios acabam se tornando em verdadeiras teses – um tertium genus – que se metamorfoseiam e fazem o direito. É o caso da tese do HC 373.364/RS do STJ que nasce de um erro, mas evita outro no final do processo.


José Edvaldo Pereira Sales. . José Edvaldo Pereira Sales é Mestre e Doutorando em Direito (PPGD/UFPA). Promotor de Justiça da Capital (Estado do Pará). . .


Imagem Ilustrativa do Post: Open Your City // Foto de: Jhonie F. Tonasso // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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