Trabalho, capital e o fim do Bem Estar Social

13/01/2017

Por Juliana Nandi - 13/01/2017

Viver em uma sociedade moderna do século XXI; que devido à tecnologia e acesso rápido a informações é chamada de “sociedade global”; mas que ainda se baseia em trocas comerciais, de acordo com o modelo mercantilista do século XV (o antigo escambo), por itens de sobrevivência, tem um preço alto. Ser global não significa ter as mesmas oportunidades de enriquecimento, educação, lazer, saúde, ou perspectivas de qualidade de vida – destacando que a vida humana tem se estendido em tempo, mesmo a daqueles que vivem na pobreza. Assim como quem produzia na antiguidade não era quem enriquecia, mas sim aquele que detinha (e detém atualmente) a propriedade, ou os meios (via capital) para se produzir.

A massa trabalhadora é “orientada” de acordo com os interesses de quem se encontra no topo da pirâmide hierárquica do mundo capitalista. Essa pirâmide é sustentada por uma grande base em que está contida a mão de obra humana, ou seja, todos aqueles que não possuem a propriedade sobre o capital, e que necessitam trocar seu tempo, saúde, juventude, intelecto, força, e tudo o que é necessário para a Indústria (leia-se Mercado) consumir para produzir e revender a essa mesma massa, em formato de mercadoria pronta; para a satisfação de uma vida de qualidade; que somente o capital e seus produtos podem proporcionar, seus estoques.

John Locke (2006), na sua obra “Segundo Tratado Sobre Direito Civil”, trata sobre o Direito Natural. Esta é certamente uma ideia que está no meio popular, apesar de Locke ser um filósofo. O que se percebe é que o Direito Natural, permeia no imaginário da grande massa (a base da pirâmide capitalista) como algo realmente existente (não necessariamente com este termo, “Direito Natural”, associado), tal como a existência do livre arbítrio – escolha – em sua mais pura forma. O autor se refere ao estado de igualdade entre os homens, em que um indivíduo não possui mais que outro, sendo que desfrutam (nas palavras do autor) das mesmas vantagens, criados sob as mesmas condições, sem sujeição a um senhor, a não ser sob sua própria vontade, mesmo considerando justo a propriedade individual (independente das condições sociais em que o indivíduo nasceu). Para Bobbio (2010), o Direito Natural; segundo algumas correntes teóricas; está vinculado `a Justiça, mas também pode o Direito ser injusto. A corrente jusnaturalista de Kant afirmaria como justo ter liberdade, enquanto a de Aristóteles consideraria a escravidão. Num trecho de “A República”, de Platão, temos:

“- Por enquanto, não é evidente se é grande. Mas que deve examinar-se se dizes a verdade, isso é que é evidente. Uma vez que tu e eu concordamos em que a justiça é algo conveniente, e que tu acrescentas a esta definição que essa conveniência é a do mais forte, e eu ignoro se é assim, temos de examinar a questão. ”[1]

O que seria a conveniência e a força atual senão o Capital? Apesar de existirem ainda agressões de Guerra no seu estrito sentido de violência física. Quem seria o financiador dessas caríssimas conquistas territoriais e de poder senão o próprio Capital? E é ele também o responsável por experiências de massa. Cada indivíduo residindo na sua própria experiência do que entende como existência (leia-se vida) justa, tomando aquilo que lhe é justo ter (além do que ele deseja, por um possuir alheio), como o que é necessário à sua sobrevivência, ou seja, ao seu arbítrio de concessão de si mesmo a serviço do capital – na pessoa jurídica do Mercado -, que por sua vez lhe provém o essencial à sobrevivência.

Vejamos esta sujeição de indivíduos modernos a duas figuras diferenciadas, mas que atuam conjuntamente: Estado e Capital. Basicamente os donos do capital atuam em nome do Estado, e o Estado atua de forma corrompida pelo Capital, mas se legitimando com a ideologia de que atua em nome e a favor do povo (da massa, da base da pirâmide capitalista, que é quem também o sustenta). Há uma formação de opinião de massa sobre o que é justo dentro de uma cultura de submissão `a força do capital, bem como o poder do Estado sobre toda propriedade que dentro de seu território esteja.

Os Direitos Humanos, que contidos em uma Constituição (positivados), como a do Brasil, são chamados de Direitos Fundamentais, são conquistas a tratamento mais “humanitário” adquirido historicamente sobre a exploração e crueldade humana daqueles que detém poder de força, coerção ou econômico sobre todos os que são desprovidos de qualquer uma dessas propriedades. Essa positivação dos Direitos Humanos deveria servir como garantia `a população de um país de que as leis estabelecidas para o Bem Estar Social (papel de manutenção do Estado) sejam respeitadas e cumpridas.

O papel “clássico” de manutenção do Bem Estar Social primado pelo Estado parece estar sofrendo uma verdadeira metamorfose, aquela mesma de Kafka -; no livro com o mesmo título “Metamorfoses”; em que o caixeiro viajante se torna um inseto, totalmente pequeno e insignificante frente às forças sociais. Neste caso, o Brasil como República Federativa está sendo diminuído por um grupo de donos do capital, que também são donos do poder político, e que manipulam a massa trabalhadora, para crer que seus “caixeiros viajantes” não passam de insetos para o Estado, e que serão salvos  e alimentados pelo Capital do Mercado.

No Brasil, os Direitos Fundamentais estão protegidos por garantias positivadas na Constituição. Há normas chamadas de normas Topoi, ou seja, aquelas que estão no topo de uma pirâmide hierárquica de normas. É o caso dos princípios constitucionais, que quando confrontados com alguma outra norma, devem prevalecer. Os direitos sociais adquiridos após conflitos e diferentes direções políticas em nosso país, inclusive passando por uma ditadura militar, têm sido atingidos pela força imperativa do Capital.

Toda a questão em debate desde a manutenção ao Bem Estar Social; positivada em uma Constituição promulgada, que prevê rito em seu artigo 60 para ser emendada; aos direitos sociais adquiridos, associados à exploração do trabalho em nosso país, passa por uma enorme crise, em detrimento do Capital, do Mercado, do enriquecimento de grupos empresariais, políticos -, seja em corrupção ativa, desviando verbas, superfaturando obras ou vencendo licitações de obras que nunca sairão do projeto – ou que nunca serão finalizadas. Toda essa crise ética, posta como puramente política é tida como a crise de um Estado e de uma Constituição totalmente falidos. Um Estado que não tem a capacidade de administrar sua nação, ou seja, seu meio ambiente.

A massa trabalhadora que; em especial na América Latina; deposita esperanças de obter uma vida digna em figuras de “políticos salvadores”, com acesso a tudo que o Capital promete, e que ela assiste nas redes abertas de televisão, após o dia árduo de trabalho, a que as classes superiores à sua (este termo aqui é puramente econômico, e não cultural) têm acesso, e que as concederia a mesma beleza, saúde, felicidade, conforto e o Bem Estar verdadeiro. O problema desse depósito de esperança em figuras de pessoas salvadoras, que, em tese, representam a população, é que elas são financiadas pelo capital, bem como o são seus partidos políticos (que nem ideologia definida no Brasil possuem).

Voltemos aos caixeiros viajantes do Brasil, a massa, esta que sonha durante as novelas da televisão aberta, e que recebe notícias de jornais, dominados por políticos (em especial pela chamada direita), como se verdade inquestionáveis fossem. Não há crítica, porque a educação não é voltada às massas, diga-se aqui a educação que forma letrados - e não analfabetos funcionais. E ocorre uma enorme confusão entre o que é de Direito e Dever Público e Privado. [2] Nessa confusão entra o discurso do Capital Salvador, substituindo na figura do Mercado e Indústria o personagem do político que promete a solução à toda crise de pobreza e de ética.

A mais valia de Karl Marx; que é o termo para designar o processo de exploração da mão de obra assalariada para a produção de mercadorias; que é a apropriação do trabalho excedente na produção de produtos com valor de troca, tem crescido em detrimento não apenas dos salários, mas em função da perda de direitos sociais, como o do tempo de serviço para se aposentar.

A população recebe a informação; via meios de comunicação financiados pelo empresariado, que por sua vez também financia as campanhas eleitorais dos “políticos salvadores”; de que a corrupção política dos agentes representantes do Estado, aqueles que foram votados por essa mesma massa de “caixeiros viajantes”, retirou seus direitos sociais. E agora resta acreditar no paraíso vendido pelos empresários, de que o trabalho fornece ao assalariado o acesso aos bens de consumo, e quanto mais se trabalha, mais se pode obter (licitamente, honestamente).

A dignidade do trabalhador está em sua honestidade, em seu trabalho, que deve prover à família a sobrevivência e os meios para sonhar, para ter objetivos a serem “nunca” alcançados, do possuir acesso ao topo da pirâmide social e ao Bem Estar que lá se encontra, não mais fornecido pelo Estado em falência, mas pelo mesmo capital que coincidentemente arranca horas das vidas das pessoas para produzir a riqueza para os donos do poder, e consumir os recursos das massas, também para alimentar o luxo de poucos.

Falemos de luxo, que é aquilo posto como produto tão caro, quanto um sonho impossível de ser realizado, mas que motiva a massa miserável a seguir suando nas fábricas, nas engrenagens das máquinas, seja administrando ou operando. A motivação parece estar justamente em ascender na pirâmide social, para então parar de trabalhar assalariadamente, recebendo proventos dignos de fontes de renda que eram de responsabilidade do Estado prover. Quando o Estado é declarado como falido pelo empresariado, o que ocorre é que a ideia de venda do luxo, que se concentra num padrão de vida jamais alcançável pela massa, mas sim utópico, é utilizado como discurso de salvadores dos miseráveis. E com o consentimento dos “caixeiros viajantes”, os donos do capital retiram via representantes do Estado direitos sociais históricos.

A massa trabalhadora, de seres vistos como números para a produção do PIB (Produto Interno Bruto) do país (Insetos caixeiros viajantes), se posta em defesa dos grandes financiadores da falência do Estado de Bem Estar Social, o empresariado, os donos do Mercado, do Capital. Há uma crença de que esse Estado esteja esmagando a população via impostos, quando na verdade as grandes Indústrias compram licitações (que são financiadas pelos impostos) para lucrar com isso- sem pensar em qualquer benefício coletivo -, e vendem a ideia de que o emprego – seja ele qual for, seja em que condições for ofertado, pelo preço que lhe couber pagar a mão de obra -, é o que deve ser valorizado, pois é com ele que se “chega aos céus”, ou seja, que se adquire o Bem Estar Social.

Nasce a morte dos Direitos Sociais previstos na Constituição, e agora o Mercado manobra seu massacre via o sonho brasileiro da ideia de igualdade entre operários e patrões, e do sonho de ter uma política menos associada a corrupção, como se pessoas físicas e jurídicas estivessem longe dessa realidade, meramente como expectadores, ou melhor, como vítimas de um sistema Público. E o Capital invade as casas, o privado, e toma conta do que seria Público. Ainda não há nome para o que virá, mas certamente poderá se decidir durante o sepultamento do Estado de Bem Estar Social.


Notas e Referências:

[1] PLATÃO. A República. Ed. Martin Claret. São Paulo. 2002. Pg. 25

[2] SARMENTO, Daniel. Livres e Iguais. Estudos de Direito Constitucional. Juris Editora. Rio de Janeiro. 2006. Pg. 37: “[...] as fronteiras entre o público e o privado são extremamente móveis e instáveis, e que a prioridade atribuída a cada um dos elementos do par também oscila ao sabor das mutações políticas e cosmovisivas [...]”

BOBBIO. Norberto. Teoria Geral do Direito. Ed. Martins Fontes. São Paulo. 2010

GRUBBA. Leilane Serratine. O essencialismo nos direitos humanos. Ed. Empório do Direito. Florianópolis. 2016

HEGEL. Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da Filosofia do Direito. Ed. Martins Fontes. São Paulo. 2000

KANT. Immanuel. Crítica da razão prática. Ed. Martins Fontes. São Paulo. 2002

KANT. Immanuel. Introdução ao Estudo do Direito. Doutrina do Direito. Ed. Edipro. São Paulo. 2007

KERSTENETZKY. Celia Lessa.  O Estado do Bem-estar Social na Era da Razão. Ed. Campus Elsevier. Rio de Janeiro. 2012

MARX. Karl. O Capital. Crítica da economia política. Ed. Civilização Brasileira. São Paulo. 2008

PLATÃO. A República. Ed. Martin Claret. São Paulo. 2002

PINHEIRO. Carla. Direito Internacional e Direitos Fundamentais. Ed. Atlas. São Paulo. 2001

SARMENTO, Daniel. Livres e Iguais. Estudos de Direito Constitucional. Juris Editora. Rio de Janeiro. 2006


Juliana Nandi. Juliana Nandi possui formação em Relações Internacionais pela Unisul; Pós-Graduação - MBA em Gestão Empresarial pela HSM Educação Executiva; Atualmente é aluna do curso de graduação em Direito da Univali; Atuou profissionalmente na Importação para algumas grandes empresas catarinenses e faz parte dos núcleos de estudos de Direitos Humanos e Direito Penal e Processual Penal na Univali.

Imagem Ilustrativa do Post: scaffold_workers // Foto de: Dan DeLuca // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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