Terrorismo: do processo de conhecimento ocidental à vitimização

05/11/2016

Por Thais Silveira Pertille – 05/11/2016

A Lei Antiterrorismo brasileira (Lei 13.260), em vigor desde março deste ano, tem proporcionado discussões em torno de temas realmente polêmicos na dogmática penal, como a criminalização de atos preparatórios, assim como naquilo se refere ao conceito da expressão terrorismo. Especificamente quanto a essa última, importante reconhecer que não se pode discuti-la sob um número limitado de posições e olhares críticos, havendo a necessidade de que as abordagens destinadas a colaborar com a limitação do conceito de “terrorismo” possam se dar de forma multidisciplinar, o que colabora para que o problema seja enfrentado com a complexidade que de fato possui.

Assim sendo, importante enfatizar que a ideia destas breves palavras é chamar a atenção para uma abordagem psicanalítica do tema, levantando-se como primeira questão a discussão acerca daquilo que se pode entender do processo de subjetivação, ponto que parece demasiado importante para questões que envolvam o ser humano. Por subjetivação compreende-se o meio pelo qual se constitui o Outro na mente humana. É a partir dela que se criam relações com esse Outro imaginário, muitas vezes distante do real com o qual de fato se pretende estabelecer conexão, isso em função das naturais limitações das concepções humanas no processo de conhecimento. Até mesmo a ideia de construção do Eu como sujeito sofre com essa limitação, de forma que muitas vezes se confirma a afirmação freudiana sobre a dificuldade que cada ser sofre no processo de análise própria: “O Eu não é senhor em sua casa”. Com a frase, Freud fazia referência à incapacidade humana de, por meio de processos regidos pela consciência, autodeterminar-se por inteiro. Trabalhava o autor com as inevitáveis influências que exerce o inconsciente sobre o agir humano, pois quando regidas pelo desejo as pessoas movem-se sempre no sentido da própria satisfação por meio de condutas muitas vezes não diagnosticadas por métodos convencionais de percepção.

Indo nesse sentido é que Jacques Derrida afirma que “O Um se resguarda do outro. Protege-se contra o outro, mas no movimento desta violência ciumenta comporta em si mesmo, guardando-a, a alteridade ou a diferença de si (a diferença para consigo) que o faz Um. O ‘Um que difere de si mesmo’” (2001, p. 100).

De sorte que, partindo da ideia de subjetivação, salta aos olhos que esse processo de relacionamento vem se dando, além da limitação já esperada, também de forma estritamente pré-determinada e paranoica na cultura Ocidental. O Outro, aquele ser tão exótico, para quem o Eu esforça-se em conhecer por meio do relacionamento, está sendo afastado pelo preconceito, tão enraizado por diversos movimentos culturais, que faz a ideia de terrorismo e terrorista fixar-se em um estereótipo único. O processo de entender o Outro, que é tão único de cada ser humano, passa à simplicidade típica de qualquer preconceito, onde o Eu não trabalha para conhecer, mas apenas para taxar aquele que pensa compreender. Dito de outra forma, se o processo de conhecimento (próprio e alheio) por si só apresenta complexidades muitas vezes instransponíveis em exercícios de consciência, o que se dirá de quando todo o movimento de definição do Outro parte de conceitos preestabelecidos, como se fosse possível classificar cada ser humano como integrante de determinados estamentos comportamentais!?

Compreender, conhecer, exige esforços infindáveis na direção do incerto, sem que se tire da mente que o “preconceito” é sempre algo que já foi interiorizado pelo Eu e que, portanto, não se coaduna com a ideia de novidade que envolve a disposição ao novo, que é imprescindível a qualquer processo de conhecimento. De modo que, na busca pelo debate produtivo e por novas alternativas de convivência entre os diversos tipos de culturas e sociedades, é necessário ir além do “confinamento posicional”. Amartya Sen explica que aquilo “que podemos ver não é independente de onde estamos em relação ao que tentamos ver, e isso, por sua vez, pode influenciar nossas crenças, compreensão e decisões” (2011, p. 188).

Nessa perspectiva, o modo de subjetivar, de criar o sujeito aos olhos humanos, hegemonicamente está restrito ao modo de subjetivar ocidental, modo esse que pressupõe que aquilo que cabe à vista, ao imaginário do Eu corresponde ao todo. A forma de conhecer ocidental imagina ser possível captar toda a dimensão do Outro, ignorando o infinito que separa o Eu do outro e as incontáveis características e dimensões que esse Outro contempla. Segundo Costas Douzinas, a consciência individual, em sua concepção moderna, passou a ser a origem de todo o conhecimento, de forma que aquilo que difere do ser em si não pode ser absorvido pela capacidade cognitiva, ou seja, “o Outro é reduzido ao meu conhecimento do Outro” (2009, p. 351).

De encontro a essa forma restrita de entender o Outro se dá a inovação que propõe a ética da alteridade no que tange a compreensão da subjetividade, vez que o seu surgimento inaugura outra percepção do “ser” em contraposição ao tão enraizado pensamento racional ocidental que “se rendeu a neutralização da diferença que existe entre a realidade e aquilo que se pensa dela. Onde se fazia o homem escravo de suas representações e formata sua realidade a partir disso” (PEREIRA, 2011, p. 165).

Uma simples pergunta, mas de profundo significado, ecoa através de toda reflexão realizada acerca do conhecer e do terrorismo; quem é esse sujeito terrorista? E há de se questionar por conseguinte, por que eles próprios não se denominam assim? Alexandre Morais da Rosa sustenta que “Os atos por nós chamados terroristas, são atos de amor”. O que, inevitavelmente, permite o espanto da pergunta: Amor!? Para o Eu Ocidental e sua forma de conhecimento, como atentados de extrema violência, dimensão e brutalidade podem sequer conter a palavra amor em sua discussão? Amor pela humanidade sim. As pessoas que chamam terroristas têm, em sua grande maioria, a convicção indubitável de que estão salvando as almas da terra. Os atos conhecidos por terrorismo são para eles sua entrada no céu e uma demonstração espetaculosa de amor pela humanidade, a qual tem a certeza de salvar. E como refletiu Graciela de Conti Pagliari, os atos que chamamos terroristas vão até onde houver infiéis, não respeitam fronteiras, são naturalmente transfronteiriços. O amor da redenção que desconhecem os ocidentais pode chegar onde menos se espera.

Tomando os olhos do Outro fica bastante difícil responsabilizar esses atos sob a égide de nosso sistema penal, vez que esse tem em seu cerne a culpabilidade, a responsabilidade, a intensão do prejuízo em dimensões naturalmente diversas daquelas que motivam as condutas ditas terroristas. O que faz refletir que talvez estaria se pretendendo punir pessoas que agem em plena convicção de amar. Afinal, quem julga o terror já o faz por estar imerso na cultura que sequer vislumbra esse amor, é de se lembrar que a “dependência posicional pode tanto iluminar como, eventualmente, induzir a erro” (SEN, 2011, p.189).

É certo que não se está a defender a violência com que ocorrem os atos aqui debatidos, o que se tenta é sair do referencial confortável de vítima e, como tal, eterno detentor de direitos inesgotáveis. Sobre essa condição, Jaques Derrida disse, referindo-se ao 11 de setembro de 2001, “não há inocentes”. O autor reflete que apesar de sua profunda compaixão às vítimas do atentado, ainda assim, não existem inocentes. Nesse sentido, Gustavo Pereira, trabalhando a visão do autor, descreve que o atentando deve ser encarado “não como a simplória posição maniqueísta proposta pela mídia, que desvenda bandidos e revela heróis, mas em uma perspectiva que comprometa a população estadunidense a incluir-se no problema sem assumir a sedutora posição de vítima” (PEREIRA, 2014, p.59). Mesmo porque a posição de vítima é, muitas vezes, também uma questão de ponto de vista. Norte-americanos que tanto alardeiam sua tragédia de 11 de setembro de 2001, sequer conhecem outro 11 de setembro, aquele de 1973, quando os Estados Unidos apoiaram o golpe que derrubou o presidente chileno Salvador Allende, permitindo a instauração naquele país de uma ditadura brutal, com registros que noticiam a morte de cerca de três mil pessoas, assim como a tortura de outras vinte e oito mil. Todavia a posição de algoz não é uma boa propaganda e também não rende tanta expectativa de direitos quanto a de vítima. Não é por outro motivo que um 11 de setembro seja lembrado tão enfaticamente a despeito de outro.

Pascal Bruckner afirma que a vitimização é a “tendência a se proclamar mártir dos outros, da sociedade, do Estado” (1998, p. 32). O papel de vítima, segundo o autor, é um dos meios para fugir às responsabilidades que advém do ser livre. Quando se reivindica o papel de vítima deixa-se de lado a responsabilidade sob o que quer que seja, pois a qualidade de ser ameaçado legitima quaisquer medidas de proteção aos direitos, a todos os direitos que essa vítima pressupõe ter, sem dever algum. Vitimizar-se é uma das escapatórias dos deveres que nascem com as liberdades e uma das razões para tantos engajamentos sem causa, sem reflexão.

É notório que as leis e atos que têm surgido contra o terrorismo estão sempre partindo do pressuposto da vítima, nos moldes do descrito acima, e possibilitando ataques às liberdades humanas como só detentores de direitos inesgotáveis podem fazer. A Lei brasileira não vai por caminho diferente, arriscando garantias processuais tipicamente democráticas em nome desse direito das vítimas, o que tem se deixado de lado é que quem definirá vítima e terrorista será o Estado através do seu sistema de persecução penal. Por medo, pelo terror, sucumbe-se a medidas que põe de lado garantias democráticas tão caras à liberdade. O preço da liberdade é a responsabilidade, a fuga dela abre as portas do autoritarismo.

Graciela Pagliari lembra que George Bush em seu discurso no próprio dia 11 de setembro de 2011 já justificou as ações que ordenaria, cobrindo-se do horror que televisionava o mundo, legitimou os ataques na ideia de que o terrorismo seria a atitude do mal contra a América do Norte e contra os ideais democráticos de liberdade. Embora injustificável a ação que derrubou as torres gêmeas norte-americanas, a contrapartida dos Estados Unidos foi oportunista, vez que desencadeou, além de uma série de restrições às liberdades individuais, também as guerras no Afeganistão e no Iraque.

Sobre o ocorrido, o autor Amartya Sen lembra que houve uma distorção nas informações repassadas aos cidadãos dos Estados Unidos, incluindo, até mesmo, o cultivo de ficções como conexões imaginárias de Saddam Hussein com os ataques ou com a Al-Qaeda, informações que contribuíram para que esses cidadãos apoiassem as invasões e guerras que viriam (2011, p. 423).

Portanto, não é sem lastro a afirmação de que o engajamento sem reflexão é um perigo, todos querem estar engajados em alguma coisa. É claro que o mundo precisa do engajamento pelas causas humanistas, mas o comprometimento sem reflexão leva ao fanatismo, à repetição de ideias que só faz reunir massas de pessoas pouco críticas, mas, perigosas pelo ímpeto direcionado de maneira egoísta e oportunista daqueles que as guiam.

A inteligência que permeia a condição humana lhe torna capaz da própria destruição, mas também capaz de refletir que seja ela usada para muito além do pequeno cercadinho de verdades que bloqueiam o conhecimento. Talvez, saindo da posição de vítimas para a tomada de responsabilidade infinita que tem pelo Outro e por todas as ações que se desencadeiam entre os seres, seja possível que a humanidade torne-se capaz de melhores construções éticas e, quem sabe, de uma convivência multicultural e de paz.


Notas e Referências:

DE SOUZA, Mériti; PAGLIARI, Graciela de Conti; MORAIS DA ROSA, Alexandre. Lei, terror e medo: o contexto da construção da lei antiterrorismo. Auditório do CCJ, UFSC, em 08/09/2016. Palestra.

DERRIDA, Jacques. Posições. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

DOUZINAS, Costas. O fim dos direitos humanos. Tradução Luzia Araújo. São Leopoldo – RS, 2009.

PEREIRA, Gustavo Oliveira de Lima. A pátria dos sem pátria – Direitos humanos e Alteridade. Porto Alegre, 2011.

SEN, Amartya. A ideia de justiça. Tradução Denise Bottmann, Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das letras, 2011.


Este texto é baseado no evento intitulado “Lei, terror e medo: o contexto da construção da lei antiterrorismo” ocorrido na Universidade Federal de Santa Catarina em 08 de setembro do presente ano e organizado pelos acadêmicos do curso de direito da UFSC. Falaram na oportunidade as professoras doutoras Mériti de Souza, do curso de Psicologia da UFSC, Graciela de Conti Pagliari, do curso de Relações Internacionais da UFSC, e o professor doutor Alexandre Morais da Rosa, do curso de Direito da mesma casa.


Thais Silveira Pertille. Thais Silveira Pertille é Acadêmica da décima fase do curso de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina e estagiária do Ministério Público Federal, Procuradoria da República em Santa Catarina. . .


Imagem Ilustrativa do Post: Terrorism Training in NYC // Foto de: MarineCorps NewYork // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/nycmarines/4546231143

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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