Por José Edvaldo Pereira Sales – 20/07/2017
Afastadas as hipóteses de desclassificação ou de procedência parcial da acusação que ensejem a formulação de proposta de suspensão condicional do processo a que se refere o art. 89 da Lei nº 9.099/95 – Súmula nº 337 do STJ –, sabemos que o ministério público deverá (a lei usa o termo “poderá”; preferimos o dever, pois a não oferta deve ser fundamentada objetiva e concretamente) por ocasião da denúncia, oferecer a proposta de suspensão condicional do processo, por dois a quatro anos, desde que preenchidos os requisitos de ordem objetiva e subjetiva. Na defesa preliminar ou em audiência, a proposta se aceita, depois de recebida a denúncia, sujeitará o acusado às condições estipuladas. Até aqui nada estranho à rotina procedimental forense e ao previsto em lei.
Temos, contudo, nos deparado com um tipo de situação inusitada, embora não muito rara. Referimo-nos aos casos em que a denúncia é oferecida e os requisitos legais justificam perfeitamente o oferecimento da proposta, mas, por esquecimento, a proposta não consta na peça inicial ou em qualquer petição apartada. Não há recusa justificada do autor em não oferecer a benesse legal; há esquecimento, tout court. Protocolada a peça, o juiz despacha-a, adota o rito próprio para o caso, a defesa passa a atuar no feito, a inicial é recebida e processada “regularmente” até que num determinado momento, muito posterior àquele em que a proposta seria oferecida e o acusado a aceitaria (se assim fosse), constata-se que houve o esquecimento. Abre-se, então, oportunidade para que a proposta seja formulada e o acusado diga se aceita-a. Sujeitando-se à proposta, o acusado inicia seu período de prova pelo tempo estipulado (2 a 4 anos) sob as condições prescritas. A questão que suscitamos aqui é saber se esse esquecimento pode ser corrigido posteriormente, em qualquer tempo, com a oferta da proposta.
Se expirado o prazo da suspensão sem que o benefício tenha sido revogado, extinta estará a punibilidade. Por sua vez, a revogação ocorrerá nos casos de descumprimento das condições impostas durante a prova, dentre as quais, a reparação do dano (quando for o caso), salvo impossibilidade de fazê-lo; a proibição de frequentar determinados lugares (que deverão ser especificados); a proibição de ausentar-se da comarca onde reside, sem autorização do juiz, indicando-se o período de tempo a partir do qual o afastamento torna obrigatória a comunicação; o comparecimento pessoal e obrigatório a juízo, mensalmente (muitos estipulam períodos maiores), para informar e justificar suas atividades; outras condições adequadas ao fato e à situação pessoal do acusado fixadas pelo juiz; não ser o beneficiário processado por outro crime ou contravenção. Violadas tais condições, ocorrerá a revogação e o processo retomará seu curso regular. Se, contudo, elas forem cumpridas, expirado o prazo da prova, extinta estará a punibilidade.
Vamos aqui associar dois fatores: o esquecimento e o comportamento do acusado. Queremos apresentar os diversos casos que se nos apresentam com uma certa frequência: processos em que não foi oferecida a proposta de suspensão, e nem justificado seu não oferecimento, nos quais durante toda a tramitação até o instante em que se notou a falha, o comportamento do acusado, mesmo sem estar submetido a qualquer prova/condição, foi tal que não violou qualquer regra legal aplicável, em tese, a qualquer pessoa sujeita às restrições legais e gerais próprias da suspensão aqui discutida como comparecimento aos atos processuais, manutenção de endereço atualizado, não envolvimento com prática de crime ou contravenção e outras que podem ser aferidas a partir de cada contexto. Outras condições, que somente poderiam ser exigidas se o acusado tivesse aceitado a proposta, como comparecimento periódico em juízo, não podem ser avaliadas exatamente em razão do esquecimento. Incluímos também nestas últimas condições, a reparação do dano, que é tida como das condições mais importantes dada a própria natureza da lei especial (vide, e.g., STJ, Habeas Corpus nº 291.267/SP da 5ª Turma e REsp Repetitivo nº 1.498.034/RS da 3ª Seção), mas somente pode ser proposta e aceita na esfera do possível. Se não oferecida a proposta antes do transcurso do tempo máximo (ou mínimo, a depender do caso), não é mais possível que o processo penal se preste à reparação civil. A questão deve ser discutida na esfera cível, atentando-se, inclusive, para os prazos próprios lá estipulados para a propositura da ação cabível. Não custa lembrar que mesmo no processo cível o pagamento da condenação de uma reparação somente ocorrerá se possível – execução frustrada. No processo penal, que nem a sede própria para tal fim, seria demais exigir o contrário. Associados, então, os dois fatores – esquecimento e comportamento –, retomamos a questão: caberia formular a proposta a qualquer tempo?
É absolutamente desnecessário, pensamos, discorrer aqui sobre os efeitos deletérios de se responder a um procedimento criminal (ter um inquérito, um T.C.O. ou até mesmo um boletim de ocorrência registrado em seu desfavor). Responder a uma ação penal já é uma pena. Os procedimentos penais/criminais/policiais (em sentido amplo mesmo) têm o poder de uma alquimia com resultados invertidos: em tudo que tocam, apega-se uma mancha irremovível pior que o pecado, que é perdoado por Deus. Essa pena tem efeitos mais amplos e duradouros que a específica pena aplicada na decisão condenatória. Esta, uma vez cumprida, extingue-se; aquela, será carregada durante toda a existência terrena, que é breve, mas por ser uma pena tão drástica, dar à vida uma sensação de perenidade. Os processos em geral, mesmo com graves repercussões, como uma execução, uma pensão alimentícia, uma improbidade administrativa, não se comparam com a carga social negativa que o processo penal traz a reboque. Objetivamente, o que nos interessa é indagar, de forma mais direcionada, se alguém que poderia ter o benefício da suspensão do processo no início do processo (a ênfase meio redundante é absolutamente necessária) deverá submeter-se à prova muito tempo depois quando alguém constatou que houve o esquecimento – a proposta não formulada antes pode ser formulada agora?
Pensamos que é necessário estabelecer um parâmetro temporal para que esse esquecimento seja suprido. Esse limite só pode ser o tempo máximo previsto pelo próprio art. 89 da Lei nº 9.099/95, a saber, quatro anos (temos grande propensão – pensamos ser absolutamente procedente – sustentar o mínimo de dois anos diante de cada caso –, isto é, se a situação envolvendo o acusado comportaria uma suspensão de dois anos, não há razão para considerar os quatro anos como critério). A contagem desse prazo só pode ter como termo inicial a primeira audiência designada nos autos, pois, caso não houvesse o esquecimento, seria nessa audiência que o acusado seria ouvido sobre a aceitação ou não da proposta formulada. Ultrapassado esse tempo, se não houve a proposta e nem apresentada justificativa para seu não oferecimento, não poderá mais ser formulada. A consequência será obrigatoriamente a extinção da punibilidade. É possível que tenha ocorrido a prescrição nos prazos do art. 109, V e VI, do CP. O efeito prático será o mesmo. Entretanto, mesmo nos casos em que não se operou a prescrição da pretensão punitiva como, por exemplo, furto e receptação – casos mais comuns que temos visto –, deve ser declarada extinta a punibilidade. Qual o fundamento? O esquecimento do acusador e o comportamento do acusado. Por analogia, à míngua de previsão legal específica, deve ser utilizado o § 5º do art. 89 da Lei nº 9.099/59.
Ninguém pode ser penalizado pela inércia do autor da ação, sobretudo se é o Estado por intermédio do ministério público. O acusado foi submetido ao processo durante quatro anos (ou mais) e se ainda tiver que cumprir período de prova depois desse tempo, mesmo que no mínimo legal (dois anos), é o típico caso de constrangimento decorrente de uma ilegalidade que nasceu na omissão, na inércia, no esquecimento. Um verdadeiro bis in idem; dupla punição escamoteada sob o argumento de outorga de benefício legal. Poderíamos aqui trazer, por analogia, discussões como a que se refere o RE 641.320/RS, julgado pelo STF, a respeito de deficiências do Estado e o não prejuízo, em face delas, a direitos dos apenados. O raciocínio aqui é semelhante. Alguém poderia suscitar a hipótese de que caberia ao acusado ter detectado a falha e pleiteado o direito... Não é incomum no processo penal esse tipo de “contra-argumento”. É que o Estado tão deficiente, inerte e displicente em várias de suas áreas de atuação quer sempre transferir algum (ou muitos) tipo de ônus ao cidadão. Aceitar isso no âmbito criminal é criar um tipo de persecutio ao avesso: o ius puniedi é do Estado, mas cabe ao cidadão fiscalizar se está sendo perseguido com eficiência.
. . José Edvaldo Pereira Sales é Mestre e Doutorando em Direito (PPGD/UFPA). Promotor de Justiça da Capital (Estado do Pará). . .
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