Supremo Tribunal Federal, democracia e política

08/10/2016

Por Martonio Mont’Alverne Barreto Lima - 08/10/2016

Após a Segunda Guerra Mundial e as redemocratizações da Europa Ibérica e da América Latina, o protagonismo das chamadas cortes constitucionais passou a reescrever as teorias constitucionais e da democracia do século 20. Praticamente inexiste qualquer obstáculo às teses quase unânimes de que o sucesso de uma constituição democrática estaria mais nas mãos de juízes do que naquelas dos políticos, dos partidos, da sociedade. Surpreende que mesmo quando se sabe por meio da história que juízes e tribunais não fazem revoluções democráticas – até ao contrário! – haja ainda uma grande maioria de intelectuais e juristas a apostar tanto no Poder Judiciário para os problemas econômicos, políticos e sociais.

Curiosamente, os textos das constituições dirigentes de 1945 até o final dos anos 1980 não conferem tanto poder às cortes constitucionais. O papel destacado dos tribunais constitucionais é resultado de processos interpretativos que os próprios tribunais realizaram sobre as constituições cuja guarda lhes compete, legitimados por intelectuais vigorosos, porém desingênuos. Por aqui começam os problemas, já que são essas cortes que dizem até onde elas próprias podem ir. Em outras palavras: são elas seus próprios juízes no arco da delimitação institucional da separação de poderes do Estado moderno. Assim, a lição clássica de que ninguém será seu próprio juiz virou realidade cotidiana, imaginando-se que os membros dessas cortes são homens e mulheres acima das suspeitas políticas. A imediata menção ao Poder Moderador de nossa Constituição Imperial de 1824 salta à frente de todos. No compasso que se observa hoje, parece não haver limites para a atuação das cortes, e não deve ser esquecido o fato de que os políticos deram sua contribuição para isso. Ao não decidir questões como aborto, função social da propriedade, pena de morte, união homoafetiva, a política cedeu seu espaço para os tribunais, que praticamente marcharam sobre todos os temas, trazendo para si a responsabilidade de determinar o alcance e o sentido das constituições. O déficit democrático não poderia ser mais evidente.

Será nesse panorama mundial que o Supremo Tribunal Federal do Brasil insere-se. O tribunal fora domesticado pela ditadura militar quando o Ato Institucional nº 2/1965 dilatou o número de seus integrantes para dezesseis. Após a Emenda Constitucional nº 16/1965 à Constituição de 1946, que introduziu a ação direta de inconstitucionalidade, não se operaram grandes transformações, na medida em que o único ativamente legitimado para sua propositura era o procurador-geral da República nomeado pelo militar que exercia a Presidência da República.

O novo papel do STF veio mesmo com a Constituição de 1988, dotada, originalmente e por emendas posteriores, de novos instrumentos de controle concentrado da constitucionalidade, aplicados à definição de direitos e garantias fundamentais. Sem dúvida o caso mais emblemático é o da judicialização da saúde. Por meio de entendimento interpretativo esdrúxulo, o STF entende que o Poder Judiciário pode interferir em política de saúde, provocando verdadeira desordem no planejamento financeiro e orçamentário da União, dos estados e dos municípios, sem sequer enfrentar a discussão de que o direito à saúde, conforme a Constituição de 1988, é um direito social coletivo, e não individual. Para dar tratamento a esses novos instrumentos de controle da constitucionalidade é que o STF partiu para a definição de sua competência, depois para estabelecer métodos interpretativos, para, finalmente, exercer um domínio completo sobre a Constituição.

O melhor caso dessa expansão vem dos efeitos da declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade. A previsão do art. 27 da Lei nº 9.868/1999 nada mais corresponde à jurisprudência já construída pelo STF. De acordo com esse entendimento, o STF está praticamente livre para estabelecer o tempo de sua decisão, já que “(...) tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”. Liberto de amarras constitucionais e legais, as quais se localizam nos seus próprios julgados, o STF foi apoiado por livros e artigos sobre o assunto, a não faltarem no Brasil e no mundo, e que convergem para o mesmo resultado: aquele de perceberem os problemas de efetivação constitucional como meramente normativos. Dessa maneira, as constituições restam esvaziadas de seu sentido de política democrática, de debate na esfera pública, a localizarem-se como espaço da retórica argumentativa, e não da disputa política.

O destaque decorre, portanto, da ação política do STF. Decisões sobre coligações partidárias, fidelidade partidária, fixação de número de vereadores, nepotismo no serviço público passaram a integrar o cardápio decisório do STF, sem que partidos políticos e os políticos esboçassem qualquer reação a tal avanço em seu território. Praticamente qualquer legislação sobre temas polêmicos que venha a ser aprovada no Brasil somente será cobrada após o pronunciamento do STF sobre a matéria. Em todos os assuntos relevantes tem havido a palavra do STF, sem a contenção de muitos de seus ministros, a anteciparem seus posicionamentos em conferências e entrevistas, numa desrespeitosa subversão das funções institucionais relativas ao cargo que ocupam.

Nesse cenário, chama atenção a desvinculação do STF de seus próprios julgados e as consequências constitucionais e políticas que tal prática traduz. O que fundamenta a aceitação de uma corte perante sua respectiva sociedade? Sua coragem cívica e sua imparcialidade nas decisões. Não será a inexistente neutralidade, já que nenhum de nós é neutro, e todos tenhamos a obrigação da imparcialidade. Nos casos recentes do julgamento sobre possibilidade de prisão anterior ao trânsito em julgado da sentença e no processo de impeachment contra a então presidenta Dilma Rousseff, o STF deixou claro que juízes e tribunais dificilmente farão revoluções democráticas. Como nada fizeram contra o golpe de 1964, nada fizeram para preservar a Constituição de 1988 que o mesmo STF jurou guardar. Ao não se dispor a enfrentar uma opinião pública manipulada por anos de unilateralidade de informação, o STF faltou com a coragem necessária às garantias do Estado democrático, abrindo a porta para desmandos das outras instâncias do Poder Judiciário, que se sentiram à vontade para também criarem e imporem seus “convencimentos inéditos” em situações definidas por essas próprias instâncias inferiores como igualmente inéditas. Não causa espanto que a maior parte da sociedade mal saiba o que é e para que serve o STF.

A interpretação sobre a Constituição, de forma a tornar-se dela senhor, e a oscilação jurisprudencial são os dois móveis em que se articulam o STF, no que é seguido pelo resto do Poder Judiciário que comanda no país. A decisão recente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, legitimando a exceção (pelas palavras do voto vencedor) enquanto existe lei vigente a regular uma situação, é um evidente sinal de que STF e Poder Judiciário passaram à condição de soberanos numa democracia. Em outras palavras: reivindicaram para si próprios a condição de poder constituinte, e não a de poder constituído, submetido à Constituição e às leis. A definição de seus limites não será objeto de deliberação dos representantes do povo – mas de suas decisões.

O que tal cenário pode significar? Não há perspectiva científica fora da história, e será na e com a história que podemos tirar as lições para não repetirmos as tragédias humanas. A publicação da Teologia Política de Carl Schmitt em 1922 trouxe impacto para a discussão política e constitucional já explicitada na primeira frase do ensaio: “Soberano é quem decide sobre o Estado de exceção”. Schmitt recorre ao pensamento conservador europeu de Donoso Cortés e Joseph-Marie de Maistre para fundamentar o decisionismo político. O tema do soberano voltará a ocupar a atenção de Schmitt em 1931, com o aparecimento de outro escrito, a relacionar-se com o que aqui se discute: O Guardião da Constituição. Nessa obra, a posição do presidente do Reich como órgão a decidir sobre inconstitucionalidade ou constitucionalidade dar-se-ia em razão de seu poder decisionista sobre um parlamento heterogêneo que jamais tinha como materializar a vontade do Estado. Em outras palavras, o presidente do Reich seria o soberano, único possível garantidor da “energia total do Estado”, isto é, da existência própria do Estado. Como não poderia deixar de ser, as teses de Schmitt dialogam entre si numa e noutra obra, e a exceção pode ser permanente e não democrática, uma vez que sustentada por um órgão decisionista e distante de qualquer noção de primazia da soberania popular. Os campos de atuação do econômico e do político, como bem notou no Brasil Gilberto Bercovici, passam a ser os espaços preferidos desse novo panorama.

O STF assumiu, com o Poder Judiciário que o segue, a condição de soberano na realidade brasileira. Decidindo como e quando há exceção, e a não se vincular às suas próprias decisões, agindo na conformidade da ocasião, o STF traz para seu exame o que não lhe é permitido, isto é, o controle da política e da Constituição. Parece claro que essa posição distancia-se do dirigismo constitucional brasileiro ainda vigente, e satisfaz o desejo político dos setores conservadores da mesma sociedade brasileira, os quais nunca aceitaram uma Constituição que trouxesse em suas determinações temas como função social da propriedade e imposto sobre grandes fortunas, além de intervenção no domínio econômico de todas as atividades econômicas, especialmente aquela dos meios de comunicação e da exploração das riqueza naturais. Decidindo ao sabor de uma opinião pública não plural, a permitir que violações constitucionais corroam o sistema constitucional democrático, o STF em pouco tem colaborado para a democracia brasileira. Suas contas serão acertadas com a história.


Publicado anteriormente em http://www.teoriaedebate.org.br/index.php?q=materias/nacional/supremo-tribunal-federal-democracia-e-politica


Martonio Mont’Alverne Barreto Lima. . Martonio Mont’Alverne Barreto Lima é Doutor em Direito pela Universidade de Frankfurt. Professor Titular da Universidade de Fortaleza. Procurador do Município de Fortaleza... . .


Imagem Ilustrativa do Post: STF - 02 // Foto de: Bruno_Batista // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/50865767@N06/8247174039

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura