Por Soraia da Rosa Mendes – 05/09/2016
Há quase quarenta anos Roberto Lyra Filho (1980) nos alertava que “o direito que se ensina errado” – constatação que dá título a um de seus mais primorosos textos – poderia entender-se em dois sentidos: o primeiro, como o ensino do direito em forma errada, correspondente a um vício de metodologia; e o segundo, como uma errada concepção do direito que se ensina, correspondente a uma visão incorreta dos conteúdos que se pretende ministrar. Tal como afirmava Lyra Filho essas duas dimensões permanecem vinculadas, uma vez que não se pode ensinar bem o direito errado, e o direito que se entende mal, determina, com essa distorção, os defeitos de pedagogia.
Não se trata aqui, mesmo porque o tempo, a ocasião e o espaço não permitiriam, de desenvolver, como merecido, a densidade que encerra o direito na concepção lyriana. Contudo, no que toca ao direito processual penal e à execução penal, quer parecer absolutamente apropriado constatar, com Lyra Filho, que há “um equívoco generalizado e estrutural na própria concepção do direito que se ensina”[1].
Explico.
Tal como afirmado por Baratta em “La Vida y el Laboratorio del Derecho”, o direito, como um conjunto de ciência e técnica é uma das linguagens especializadas com que se realiza uma construção particular do mundo. Sendo as atividades por ele compreendidas, em suas diferentes áreas, a organização institucional, a distribuição de recursos e a repressão dos conflitos.[2]
Contudo, o mundo jurídico ergue-se sobre um elevado grau de artificialidade determinado pelas circunstâncias de que: um, o direito reconstrói a sociedade na medida em que constrói sobre uma realidade que já é produto de construção social na linguagem comum; e, dois, que o mundo jurídico é construído como uma estrutura normativa na qual o comportamento dos sujeitos são qualificados deonticamente (isto é, a partir de um conjunto de regras éticas específicas).
O direito não tem por objeto imediato as ações, mas programas e modelos de ação de modo que pode ser considerado com um laboratório no qual o mundo do ser é transformado em um mundo do dever ser. A relação de abstração na qual o direito se encontra em relação ao real é frequentemente interpretada como a distância entre o abstrato e o concreto.
O concreto é tomado como o vivido, isto é, as situações irrepetíveis da existência, e com isso se estabelece a distância entre o drama existencial que os sujeitos vivem, ou tenham vivido, em uma situação real da vida, e sua representação no “teatro do Direito”. Uma distância que, como destaca Baratta, se evidencia particularmente no processo.
A finalidade característica do processo penal é decidir se subsistem as condições previstas pelo direito para dispor de uma intervenção de tipo repressivo sobre um conflito. E a da execução a de concretizar as disposições da sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.
Valendo-me da certeira constatação de Lopes Jr[3], e pedindo licença para amplia-la no que toca com a execução penal, digo também que processo e a execução sofrem de uma certa forma de autismo. Um “autismo jurídico” visível por sua capacidade de desconectar-se do mundo e mergulhar em suas categorias mágicas.
Situações conflitivas concretas encontram, ancorando-me em Baratta, no processo penal e na execução um laboratório de transformação teatral no qual elas são transcritas em um roteiro prévio e os atores comprometidos em papeis estandardizados. O drama da vida é substituído por uma liturgia na qual os atores originais são substituídos e representados por profissionais do rito.
Daí porque falar-se tanto nos dias atuais do papel completamente secundário da vítima no processo penal, e, quanto ao/à acusado/a, da distância que pode existir desde o ponto de vista temporal, entre o “autor” implicado no conflito real e o “réu” ou “condenado” no papel que o processo lhe designa.
No laboratório do Direito, segue Baratta, o comportamento individual, ao contrário de ser considerado uma variável dependente (de modo que somente é possível compreende-lo partindo da situação, e não o contrário), se apresenta como uma variável independente em relação à situação. De maneira que a determinação da responsabilidade está subordinada a essa independência e a seu grau.
A análise da situação, na lógica do processo de verificação da responsabilidade ou da execução da sentença, limita-se a uma construção abstrata que a separa do contexto social e torna impossível, ou de toda forma irrelevante, o conhecimento das raízes do conflito ou ambiente real no qual seres humanos jogados ao bater das portas e os cadeados fechados.
Refletir sobre perspectivas e metodologias de conhecimento do direito processual penal e da execução penal parte do reconhecimento desta artificialidade que determina, ou melhor dizendo, domina o funcionamento do sistema penal desde dogmas como a “busca da verdade real”, de caráter eminentemente inquisitorial, ou a tão alardeada “ressocialização”.
Esquece-se, ou propositadamente deixa-se de lado, no ensino do processo penal e da execução penal que seus fins devem ser o de limitar o poder punitivo do Estado e garantir os direitos do polo mais fraco, que são o réu ou a ré (no processo de cognição) e o condenado ou a condenada (no processo de execução).
Para evitar que a construção artificial da realidade no processo penal tenha ainda maiores e piores consequências sobre a realidade, isto é, sobre a existência do indivíduo e sobre a sociedade, ou, ao menos, para limitar as consequências negativas, a única possibilidade é, segundo Baratta, que os juristas implicados no drama processual adquiram e desenvolvam uma consciência adequada sobre a distância que separa o artefato jurídico da realidade. O que pressupõe uma participação pessoal dos atores e das atrizes, segundo as respectivas possibilidades de elaboração e de participação no outro grande laboratório da realidade social: aquele em que se constrói o saber social.[4]
Desta tese derivam duas consequências importantes relacionadas à preparação e a experiência prática dos atores e das atrizes profissionais, dos/as juristas diretamente implicados no processo penal; mas também, em geral, dos que são indiretamente implicados por estarem comprometidos com a construção doutrinária. Eis o ponto em que o ensino do direito processual penal e da execução penal, em uma autoanálise necessária, devem assumir sua parcela e responsabilidade com “o direito que se ensina errado” e com, como dizia Lyra, “com a produção de office-boys engalanados de um só legislador que representa a ordem dos interesses estabelecidos”[5].
Para tanto é preciso descortinar a ainda existente importação acrítica de conceitos e categorias provenientes do processo civil, como muito bem já denunciado por Lopes Jr. (2016), Duclerc (2015)e Badaró (2015); afirmar especificidades do processo penal, como o fazem Divan (2015) e Moura (2001) em relação, v.g., à justa causa; assim como voltar-se para a ensino jurídico nas ciências criminais (aqui em especial relevo ao processo e à execução) desde uma “opção crítica” que, como afirma Baratta, é uma atitude que permite viver a experiência no interior do sistema de justiça penal sendo consciente de que seus instrumentos são necessários para limitar os efeitos negativos e os custos sociais do próprio sistema[6].
Esta “opção crítica” contrapõe-se a uma “opção ideológica” na medida em que esta última refere-se à atitude de quem pretende poder interpretar “objetivamente” a realidade para além do sistema, usando os códigos próprios deste. Como diz Baratta, permanecer em um concepção ontológica da responsabilidade e da culpabilidade, como se conflitos e situações socialmente negativas pudessem ser explicadas na realidade partindo dos atos pessoais, é a maneira como uma boa parte dos juristas, de modo altamente generalizado no senso comum, segue dando legitimidade à pena-sofrimento.
Um avanço até mudanças mais profundas do sistema de justiça penal pode se dar com a difusão da “opção crítica” entre os/as juristas e a opinião pública, em um progresso na formação da consciência profissional. O que, em relação ao processo penal e à execução penal, se trata menos de melhoramentos possíveis e necessários, do que de uma transformação do sentido no qual o dramas no processo e no cárcere são vividos na percepção e na experiência dos atores implicados.
Importante ressaltar que não se trata de desprezar os instrumentos do processo penal e da execução, pelo contrário, trata-se de aplica-los, mas nos marcos de um sistema acusatório, e de uma perspectiva de redução de danos que tem a virtude de conter, em vez de ampliar, a desigualdade de poder entre as partes que intervêm no processo penal e o sofrimento de quem cumpre a pena.
O modelo de transformação do processo desde o seu interior proposto por Baratta, e que me parece sob as mesmas premissas aplicável à execução, se baseia no reconhecimento do caráter artificial do mundo do direito, e, ao mesmo tempo, na participação cidadã dos atores e do público no trabalho de reforma dos instrumentos da justiça em perspectivas de um processo mais justo em relação aos direitos dos imputados e das vítimas.
O desenvolvimento cultural e político que deve conduzir a um grau civilizatório mais elevado no processo é representado, neste modelo, nem tanto pela redução da distância comunicativa e existencial entre os atores e as atrizes dos dramas processual e da condição de “interno”, encerrados nos próprios papéis, mas, sim, pelo novo sentido que o drama adquire para cada um deles e delas, se lhes forem asseguradas as condições para ver, antes da realidade social através de instrumentos da justiça, instrumentos da justiça através da realidade social.[7]
Abrindo aqui um necessário parêntesis, sob um perspectiva epistemológica feminista, o que propõe Baratta deve significar uma forma de compreender o processo (e a execução) desde as experiências vividas pelas mulheres na condição de vítimas, rés ou condenadas.[8] O que significa, na linguagem de Baratta, que vida entraria no processo através da ironia, ou seja, pelo viver, vendo-se viver.
Segundo Baratta, o rito processual, que de outra maneira constitui o cenário da conservação e do consenso em relação ao status quo social, se transformaria assim no teatro de uma crítica da realidade, um lugar de emancipação.
Fora da escola da ciência existem outras não menos importantes, com as quais também os/as juristas podem aprender muito: a sabedoria popular. Com isso Baratta nos diz que a ironia não precisa ser inventada. Ela já existe e é praticada fora da cultura “oficial” em uma tradição que tem como protagonista as classes populares, os pobres e os marginalizados que têm sido sempre a clientela privilegiada do sistema de justiça penal.
A cultura popular esta cheia de exemplos da sábia ironia com a qual as classes desfavorecidas, os processados e condenados que delas fazem parte, suas famílias, sua vizinhança, vivem sua própria inclusão histórica no sistema de justiça penal, sua presença privilegiada nos julgamentos e nas cadeias.
Uma história da justiça penal desde baixo, a história depositada na concepção popular e não contada nos documentos do saber oficial, com os que em grande parte se formam os juristas, pode ser uma extraordinária fonte de conhecimentos e de consciência profissional para os/as operadores da justiça, como em geral para todos os cidadãos e as cidadãs, que se sentem representados e protegidos pela justiça penal.
Por outro lado, como alerta Baratta, algumas vezes no processo penal encontram-se como imputados também representantes dos grupos socialmente poderosos pertencentes a organizações criminosas ou responsáveis por crimes de colarinho branco.
Mesmo em relação a estes, que excepcionalmente são alvos do sistema, como diz Baratta, a experiência do processo é importante e instrutiva na medida em que, antes de questionar os recursos materiais do sistema de justiça penal, é necessário restituir aos conflitos desta natureza suas dimensões reais. O que significa também ampliar a frente da luta contra a criminalidade organizada como a frente de uma luta política que interessa a toda a sociedade civil mediante o fomento a um processo de tomada de consciência e de ação de que sejam protagonistas todas as forças democráticas e não somente os órgãos da justiça penal.[9]
De tudo o até aqui exposto é possível afirmar que a “opção crítica” corresponde a uma necessária mudança de foco a partir do reconhecimento de que, de fato, no processo penal e na execução, o direito que se ensina errado corresponde a uma errada concepção do direito que se ensina, e consequentemente de uma visão incorreta dos conteúdos que se pretende ministrar.
A perspectiva é, portanto, de formação de um/a novo/a jurista, capaz de tomar o comportamento humano como uma variável dependente em um cenário menos artificial, ou seja, que se deixe interpelar pela vida concreta.
A pergunta que resta é como formar esse/a novo/a jurista. E com ela voltamos novamente a Lyra Filho e ao primeiro sentido do direito que se ensina errado como o ensino do direito em forma errada, correspondente a um vício de metodologia.
Um primeiro e necessário reconhecimento, sob o prisma metodológico, é o de que nenhum aluno e aluna é um quadro em branco. Há uma historicidade individual, familiar e social a ser considerada. Em segundo lugar de que são arcaicas as metodologias de mera transferência de informações, de necessidade de acúmulo e armazenamento, verticalmente direcionadas (“professor-aluno”), sem possiblidade de questionamentos no plano horizontal (“aluno-aluno”) e sem abertura contributiva (“aluno-professor”), o que dificulta a transformação da informação em significado, afastando as possibilidades de apropriação, assimilação e incorporação do conhecimento, produzindo desinteresse na aprendizagem.[10]
O que se apresenta como desafio é caminhar em direção ao compartilhamento das responsabilidades professor-aluno, tendo o professor como um auxiliar no desenvolvimento cognitivo e crítico, criador de possibilidades cognitivas à autoaprendizagem. Além disso, na superação da redução metodológica a aulas expositivas e, no caminho do que Baratta falava, buscar compreender a realidade que circunda o processo penal e, digo eu agora, principalmente, a execução penal.
Como já disse Giacomolli a construção de um Direito Processual Democrático passa pelo reconhecimento de sua autonomia, não só no plano da normatividade ordinária, mas também disciplinar, científico e dogmático.[11] Digo eu, então, com Lyra Filho e Baratta, que tal construção depende (e muito) do pouso da aeronave que nos transporta a todos e todas para o planeta onde vivem Caio, Tício e Mévio para um outro real, onde existe vida em cada folha do processo, um rosto atrás das grades em cada requerimento de remição, progressão, prisão domiciliar...
Notas e Referências:
[1] LYRA FILHO, Roberto. O Direito que se Ensina Errado: sobre a reforma do ensino jurídico. Brasília: Centro Acadêmico de Direito da UnB, 1980. Pp. 06.
[2] BARATTA, Alessandro. La Vida y el Laboratorio del Derecho. In: Criminología y Sistema Penal: compilación in memoriam. Montevideo-Buenos Aires: Editorial BdeF, 2006. Pp. 31-56.
[3] LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2016.
[4] BARATTA… p. 43.
[5] LYRA FILHO… p. 28.
[6] BARATTA… p. 44.
[7] Idem… p. 46.
[8] MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia Feminista: novos paradigmas. São Paulo: Saraiva, 2014.
[9] idem…p. 50.
[10] GIACOMOLLI, Nereu José. Ensino e Metodologia do Direito Processual Penal. In: KHALED JR. Salah (coord.). Sistema Penal e Poder Punitivo: estudos em homenagem ao Prof. Aury Lopes Jr. Florianópolis: Empório do Direito, 2015. Pp. 398
[11] Idem… p. 404.
. . Soraia da Rosa Mendes é professora e advogada, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, e doutora em Direito pela Universidade de Brasília – UnB... .
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