Por Geraldo Prado - 21/06/2015
Inicialmente, convém destacar que este ensaio está limitado ao exame preliminar do âmbito de incidência de três preceitos dispositivos específicos, introduzidos pela Lei nº. 11.719, de 20 de julho de 2008.
Trata-se de lei que integra a reforma parcial a que foi submetido o Código de Processo Penal e, em específico, esta lei cuida do tema de procedimentos, malgrado discipline ainda outros pontos que concernem à estrutura do processo.
Assim, não há aqui a pretensão de fundar críticas políticas, ideológicas e estritamente jurídicas que cabem a respeito de reformas parciais ou pontuais do Código de Processo Penal e do que isso representa.
O ângulo sob o qual se pretende trabalhar é bem mais modesto e se refere aos termos definitivos dos artigos 396 e 399 do Código de Processo Penal, que cuidam de prever, em distintos momentos da primeira etapa dos procedimentos, a emissão de uma mesma decisão: a de recebimento da denúncia ou queixa!
A situação, por si só preocupante, tem acentuada a sua gravidade ao se notar que o §4º do artigo 394 do Código de Processo Penal (de acordo com a redação da referida lei) contém ainda que modestamente a previsão da chamada “Reserva de Código de Processo”. Em outras palavras: os procedimentos penais em primeiro grau, isto é, no que concerne ao julgamento originário da causa[1], terão de observar a sequência definida nos artigos 395 a 398 do Código.
Daí que a incompatibilidade entre dois preceitos dispositivos desta lei tende a produzir seus efeitos em relação à quase totalidade dos procedimentos, cumprindo encontrar a solução adequada à situação criada pelo Congresso Nacional.
É preciso reconhecer desde logo que o caput do artigo 396 estabelece que se o juiz não rejeitar a denúncia ou queixa, em se tratando de procedimento ordinário ou sumário, irá recebê-la e ordenará a citação do acusado para apresentar resposta, por escrito, no prazo de dez dias. O artigo 399, por sua vez, dispõe que recebida a denúncia ou queixa, o juiz designará dia e hora para a audiência de instrução e julgamento.
Não há como negar que os preceitos obrigam à prática de comportamentos contraditórios: tendo em mãos a denúncia ou queixa o juiz, de imediato, define- se por recebê-la, exceto nas hipóteses previstas no artigo 395 do Código. Depois disso – e somente então – o juiz ordenará a citação do acusado; e, com a resposta do acusado, devidamente citado, o juiz tornará a receber a denúncia ou queixa e designará audiência de instrução e julgamento!
Na linha perspectivada pelo positivismo jurídico – que os tribunais em sua maioria continuam a prestigiar – o que se tem aí, iniludivelmente, são preceitos que ordenam a prática do mesmo ato, com consequências jurídicas sérias (artigo 117, inciso I, do Código Penal), mas sucessivamente.
Não se duvide que a despeito da clara incompatibilidade haja quem busque atribuir às palavras e expressões recebê-la-á e recebida a denúncia ou queixa significados diversos! Norberto Bobbio alertava para isso em seu livro “Teoria do Ordenamento Jurídico”[2]. Entre eliminar uma ou as duas regras, a tendência recaí em “conservar as duas normas incompatíveis... eliminando a incompatibilidade” por meio de interpretação corretiva, até mesmo com a ratificação da citada decisão.
A opinião defendida neste breve ensaio é outra e por muitas razões!
A questão está situada no plano da incompatibilidade: ou a inicial é recebida em seguida ao seu oferecimento ou será recebida após a citação, quando o processo terá completada a sua formação (artigo 363 do Código) e o acusado também terá apresentado resposta (à semelhança do procedimento sumaríssimo das infrações de menor potencial ofensivo, que serviu de inspiração ao projeto original da Comissão presidida por Ada Pellegrini Grinover).
Os critérios ordinários de solução de antinomias aparentes não são suficientes nos casos em que, à semelhança deste, os preceitos são contemporâneos, do mesmo nível e gerais!
Buscar, portanto, a solução inscreve-se como tarefa para a qual a visão do todo (por conta da Reserva de Código) e o reconhecimento da função precípua do processo penal acabam por indicar o método e os critérios.
É assim, pois, porque o Direito Processual Penal deve consolidar o conjunto de garantias por meio das quais a atividade de investigação da responsabilidade penal de alguém é apurada em um Estado de Direito.
Daí a compreensão:
a) “de que as garantias são procedimentos funcionalmente dispostos pelo sistema jurídico para assegurar a máxima correção e o mínimo desvio entre as exigências constitucionais e a atuação dos poderes públicos”[3];
b) o Estado de Direito instaura “nexo funcional entre o poder e os sujeitos”[4];
c) e impõe, no plano da edição das leis, a adoção do “princípio da precisão”, que concretize as exigências de determinação, clareza e confiança da ordem jurídica[5].
O que se pretende é prestigiar a configuração normativa que assegure de forma mais efetiva as garantias constitucionais do processo penal, em especial, o contraditório. Este é o marco de constituição da norma jurídica processual, na medida em que se sabe:
1. Que “normas não são textos..., mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos”[6];
2. Para o quê é fundamental que se delimite o âmbito normativo, dito de outra maneira, o programa normativo “com atenção aos elementos relacionados ao problema a ser decidido”[7];
3. Isso com o reconhecimento de que em uma República democrática a dogmática jurídica ocupa lugar de destaque em virtude das possibilidades de concretização de direitos. Cabe, pois, entender o caráter incindível da interpretação/aplicação do direito[8] reservado ao sujeito ativo desta operação jurídica.
Assim, há de se reconhecer que o âmbito normativo instituído pelo artigo 396 do Código de Processo Penal está incorporado pelo mais extenso programa delimitado no artigo 399. Neste, cuida-se de dar efetividade ao disposto no artigo 363 do mesmo diploma e assegurar a complementação do processo com a efetiva citação do acusado. Com a citação e defesa será possível examinar, para além das causas de rejeição da inicial previstas no artigo 395 do Código, as hipóteses de absolvição cuja admissão decorra da defesa preliminar (artigo 397).
É neste contexto que o restante texto normativo do artigo 396 adquire sentido, pois a defesa preliminar implementa a garantia constitucional do contraditório (como assumido em todas as recentes leis processuais sobre procedimentos especiais!) e permite que a absolvição sumária seja precedida deste indispensável contraditório, de sorte a evitar atos arbitrários que fulminem, indevidamente, o também constitucional direito de ação.
O sacrifício da primeira norma (empregando a terminologia positivista) neste caso será parcial, uma vez que apenas o preceito que determina o imediato recebimento da inicial (recebê-la-á) será eliminado, porque somente ele contrasta com o preceito que remete esta decisão ao instante posterior ao da apresentação da defesa preliminar (artigo 399).
Por isso, oferecida a denúncia ou queixa e se não houver imediata rejeição, por aplicação do disposto no artigo 395 do Código de Processo Penal, o juiz determinará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, em dez dias. Somente depois disso é que o juiz poderá receber a inicial (artigo 399), caso não a rejeite à luz dos novos argumentos ou não absolva o acusado com fundamento em alguma das causas previstas no artigo 397 do mesmo estatuto[9].
Para esta solução há precedente da doutrina em hipótese de incompatibilidade parcial[10] e, também, no Brasil, da jurisprudência, no caso paradigmático de definição do preceito dispositivo da associação para o tráfico de drogas, em decorrência da edição da Lei dos Crimes Hediondos[11].
Sob o ângulo prático esta interpretação/aplicação restitui as coisas aos seus devidos lugares e conforma a atividade da legislação ordinária a critérios constitucionais.
E, não menos importante, permite que a Reserva de Código opere em uma dupla dimensão garantista: reforçando a idéia do Código como “instrumento de acesso e interação com uma determinada realidade”[12]; e fundando a necessária racionalidade a possibilitar que a norma processual prevista no artigo 394, §4º, do Código de Processo Penal cumpra a exigência constitucional de validade do sistema[13].
Este artigo foi publicado originalmente no Boletim IBCCRIM. São Paulo, v.16, n.190, p. 04-05, fev. 2008 e extraído do livro Em torno da Jurisdição, de Geraldo Prado. A obra em questão é uma coletânea de textos, votos e artigos produzidos pelo autor entre 1995 e 2010.
PRADO, Geraldo. Em torno da Jurisdição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 99-102
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Notas e Referências:
[1] E aí é irrelevante que se trate de ação penal exercitada perante o juiz singular, qualquer que seja a infração penal atribuída ao acusado, exceto às de menor potencial ofensivo, ou mesmo ação penal proposta diretamente no Tribunal (a denominada ação penal originária).
[2] 10ª edição, Brasília, UNB, 2006, p. 102-3.
[3] PEÑA FREIRE, Antonio Manuel. La garantia em el Estado constitucional de derecho, Madrid, Tro[ a, 1997, p. 28.
[4] COSTA, Pietro e ZOLO, Danilo. O Estado de Direito: História, Teoria e Crítica, Martins Fontes, São Paulo, 2006, p. XIV.
[5] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed. Almedina, Coimbra, p. 258.
[6] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, 5ª edição. Malheiros, São Paulo, 2006, p. 30.
[7] ÁVILA, Ana Paula Oliveira. A face não-vinculante da eficácia vinculante das declarações de constitucionalidade: uma análise da eficácia vinculante e o controle concreto de constitucionalidade no Brasil, in: Fundamentos do Estado de Direito – Estudos em homenagem ao professor Almiro do Couto e Silva. Malheiros, São Paulo, 2005, p. 205.
[8] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas, 2ª edição. Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2006, p. 9.
[9]Não é nova a resolução defi nitiva (“de mérito”) de uma causa sem precedência de decisão de recebimento da inicial. Basta ver o disposto no artigo 74 da Lei nº. 9.099/95.
[10] BOBBIO, obra citada, p. 89.
[11] HC nº. 68.793 – RJ, Primeira Turma, Relator designado Min. Moreira Alves, julgado em 10 de março de 1992 – RTJ 166/493.
[12] CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo Penal de Emergência. Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2002, p. 26.
[13] PASTOR, Daniel R. Recodificación penal y principio de reserva de código. Buenos Aires, Ad-Hoc, 2005, p. 11.
. Geraldo Prado é Professor da UFRJ e Consultor Jurídico.
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