Sobre o direito de escolher não ter mais direitos – Por Fabrício Pontin

21/10/2016

O instituto Dignitas usa um protocolo padrão para o suicídio assistido. Inicialmente, uma droga antiemética é ministrada, e uma hora depois o paciente toma um pentobarbital em pó, misturado com água, suco de frutas ou com o drink preferido do paciente. Se necessário, o coquetel é ministrado por um canudo, quando pacientes não conseguem mais segurar um copo. A overdose do pentobarbital deprime o sistema nervoso central, e o paciente fica progressivamente tonto, até dormir, cinco minutos depois da ingestão da mistura. O efeito anestésico do pentobarbital progride para um coma e o processo respiratório do paciente se torna gradualmente mais difícil, evoluindo para uma parada respiratória e óbito, que ocorre até 30 minutos depois da ingestão da mistura. O paciente tem autonomia para decidir como a disposição do corpo deve ser feita após o óbito.

Recentemente, uma paciente terminal de 20 anos escolheu morrer tomando um coquetel de pentobarbitais misturado com água, após uma discussão longa do corpo clínico e um histórico de luta contra uma doença debilitante progressiva.

A doença debilitante progressiva e terminal, no caso, era stress prós-traumático decorrente de abusos sexuais sofridos no decorrer de dez anos (enquanto a paciente tinha entre 5 e 15 anos de idade). A paciente tinha sofrido trauma mental e físico enorme, tinha dificuldades para se locomover, sofria de anorexia, depressão profunda, tinha um quadro de autoflagelação e mudanças temperamentais psicóticas e suicidas.

Essa condição foi considerada pelo corpo clínico, após repetidas tentativas de tratamentos, persistente e incurável, e o quadro considerado terminal. E aí temos o centro da polêmica nesse caso.

Questões envolvendo suicídio assistido ou eutanásia (e em alguns contextos até ortotanásia) já são suficientemente controversas em quadros “normais”, onde conseguimos identificar um quadro de terminalidade “claro” — pensamos em situação de doenças raras e com um quadro de “dor insuportável”. Mas a definição de dor insuportável tem alguma objetividade? Ou ela é uma avaliação do paciente? O corpo clínico pode dizer ao paciente “essa dor que você está sentindo não é insuportável, volte quando piorar”, o paciente pode dizer ao corpo clínico “eu não aguento mais, me matem de uma forma que eu não sinta mais dor”?

A forma da nossa resposta a essa questão, no fim das contas, é relacionada com como encaramos o suicídio e a morte. Pessoas tem o direito a se suicidar? Tem o direito de escolher morrer sem sofrer dor? A legislação no Brasil é bastante clara que auxílio ao suicídio é crime, e que tendências suicidas são patológicas e precisam ser tratadas. O consenso na psiquiatria e na psicologia também parece apontar para uma direção similar: pessoas em situação mental “normal” não desejam “normalmente” a morte.

Daí a necessidade de protocolos. No caso Brasileiro, temos protocolos definidos para ortotanásia e para discutir formas de conduzir doenças terminais. Médicos e pacientes tem alguma autonomia para discutir como levar os últimos dias, meses ou anos de vida em casos limite. Mas não há autonomia fora dessa ideia de “caso limite”. Na realidade, no Brasil é ilegal você usar métodos para facilitar o suicídio do paciente (por exemplo, dar os ingredientes de um coquetel letal, e deixar o paciente tomar o coquetel sozinho — o que a gente chamaria de suicídio assistido) ou usar métodos para apressar uma morte de forma mais tranquila do que a “natural” (aqui já estamos no terreno da eutanásia).

Não faz muito tempo, uma jovem de Oregon, que tinha câncer terminal de cérebro, se tornou uma ativista pela legalização do direito de morrer em Oregon — e conquistou o direito de tomar um coquetel letal, em sua própria casa, cercada da família, e morreu tranquilamente, seis meses depois do melhor prognóstico dado pelo corpo clínico para a evolução natural do tumor que ela tinha.

Em contraste, o caso da jovem inglesa é dramático na medida que não oferece uma patologia específica, que a gente imediatamente identifica como incurável. E também é dramático porque pode indicar uma falta de apoio para vítimas de abuso sexual. Liberais ingleses estão se digladiando nesse caso, por entenderem que, no fim das contas, essa jovem foi abandonada pelo sistema e se viu sem alternativas.

É uma discussão complicada, sobretudo se a gente não conhece as partes envolvidas. Lendo sobre o caso, parece que a paciente teve apoio, e até chegou a ter resultados “positivos” em uma das terapias que passou. Mas uma piora radical e um retorno do quadro fez que ela procurasse o instituto Dignitas, na Holanda, e decidisse morrer.

Mas será que ela estava na capacidade plena de suas funções mentais para escolher a morte? A discussão sobre “capacidade plena”, nesses contextos, é muitas vezes imobilizante. A questão é se existe capacidade suficiente. Dentro do contexto, ela conseguia compreender a própria dor? Compreender se podia continuar vivendo com aquela dor? Ela conseguia compreender os potenciais do tratamento que ela tinha pela frente?

Uma boa resposta ao problema vai ter que deixar de lado a possibilidade de “morrer” ser uma resposta necessariamente ruim. Talvez morrer seja a melhor hipótese para esse indivíduo. E aqui o compromisso ético é de se certificar que a morte dessa pessoa possa ser tranquila, sem dor e não causar ainda mais danos. Pacientes em situação limite as vezes tentam acabar com a própria vida sem auxílio de terceiros, ao ver suas demandas por ajuda negadas, e acabam sofrendo mais e se colocando em situações onde, daí sim, não podemos mais pressupor a vontade do paciente — curiosamente, muitas vezes achamos que por um indivíduo estar, por exemplo, em coma persistente, ele está sofrendo e pode ser eutanasiado, e é um caso paradigmático onde a gente simplesmente não tem acesso a vontade do paciente, assumindo que ele não deixou umliving will (algo que, diga-se de passagem, tem valor nulo na legislação brasileira e que mesmo se existente pode ser totalmente ignorado pela família, e, de verdade, pode causar processos contra os médicos se eles respeitarem a vontade no atestado).

Por outro lado, existe uma questão importante sobre o corpo clínico e conflito do corpo clínico com a vontade do paciente. Se o corpo clínico tem reservas com a prática que o paciente quer auxílio para praticar, mais especificamente, se o corpo clínico não acha que o paciente deve morrer, a demanda do paciente pela intervenção do corpo clínico na própria morte é suficiente?

Uma parte de mim quer responder que é claro que não é suficiente. A gente não pode entender os membros do corpo clínico como autômatos que simplesmente obedecem os desejos do paciente, particularmente em algo um tanto mais irreversível que uma cirurgia plástica.

Existe uma curva difícil aqui, que inclui nossa habilidade de, primeiro, deixar a questão da morte enquanto dogma de lado, e, segundo, confiar na capacidade autônoma das pessoas decidirem acerca do próprio bem estar.

https://www.youtube.com/watch?v=swkxfC349BI

Eu nem quero falar muito sobre o respeito a autonomia do paciente para questões de vida e morte no contexto Brasileiro e os capitais sociais vinculados a isso, até porque isso exigiria mais informação do que eu tenho de verdade. Mas o interessante aqui é como as nossas legislações e a nossa discussão cultural sobre a morte, seja no Brasil, seja na Holanda, seja na Inglaterra, ainda tem certa dificuldade em encarar o fato da morte de frente — e como casos como esse da jovem inglesa nos coloca contra a parede sobre o quanto a gente pode opinar, de verdade, sobre a vontade alheia de morrer e o interessante paradoxo do direito de cometer suicídio (que no fim das contas, é o direito a escolher não ter mais qualquer direito). 


Imagem Ilustrativa do Post: Euthanasia // Foto de: Alberto Biscalchin // Sem alterações

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