Por Henrique Kaster - 10/02/2017
Não se pretende neste artigo apontar as mazelas do sistema prisional brasileiro. As condições dos estabelecimentos penais são conhecidas e tendem a piorar na mesma proporção do aumento exponencial de presos. Apresentam-se apenas alguns enfoques que sabidamente não funcionam em matéria prisional. E outros que poderiam funcionar.
Primeiro, aquilo que não funciona. Nos últimos 20 anos a população prisional quadruplicou. Temos um déficit de vagas que está na casa dos 400 mil. Há outros 400 mil mandados de prisão a serem cumpridos. Para que a construção de presídios acompanhasse nossa realidade prisional, deveria ser construído, aproximadamente, um novo estabelecimento prisional por semana, a custos inviáveis.
Construir presídios, portanto, não funciona.
Confiar demais na pena de prisão também não funciona. Na Alemanha, pouco mais de 10% das condenações resulta em regime fechado. Apenas em casos realmente graves há o encarceramento. Aliás, para cada aumento de 25% no encarceramento há uma diminuição de apenas 1% na criminalidade.[1]
Também não funciona debitar responsabilidades apenas ao Poder Executivo. Não há dúvidas de que a construção e a manutenção de estabelecimentos prisionais toca ao Executivo. Mas também é indubitável que a responsabilidade por mandar e por manter pessoas em locais inadequados e que servem para fomentar a prática de novos crimes é de todos: da sociedade e especialmente dos operadores do Direito.
Estigmatização não funciona tampouco. A pena no Brasil não acaba na extinção da punibilidade. O preso carrega seu registro prisional como currículo negativo. Não obtém emprego, é marginalizado mesmo depois de “pagar” pelo que fez. O círculo vicioso alimenta o retorno ao sistema prisional.
O abandono certamente não funciona. Prender o ser humano e não lhe oferecer, a par de condições mínimas de habitalidade, oportunidade para trabalhar ou estudar dentro do presídio é fazer do passar vagaroso do tempo um componente desencadeador de maior aflição e agressividade. A maioria dos presos quer trabalhar e simplesmente suporta esse passar do tempo de forma ociosa.
E aquilo que funciona?
Funciona ter presente que a pena de prisão deve ser reservada a casos graves, quando é impossível o convívio social. A prisão muitas vezes serve justamente para aumentar a criminalidade: dá soldados ao crimes organizado e transforma as pessoas em verdadeiros criminosos. Há poucos presos por homicídio no Brasil, país com um dos maiores números absolutos de mortes violentas no mundo. Mas há muitos pequenos traficantes ou pessoas que cometeram crimes contra o patrimônio nas cadeias.
Há inúmeros estudos apontando que os países que apostam no respeito a seus cidadãos precisam muito pouco de presídios. Elevar penas e confiar nas prisões custa mais barato a um político populista do que propiciar escola de tempo integral, educação profissionalizante, lazer razoável, acesso minimamente respeitável à saúde. O Direito Penal não serve para resolver problemas sociais que não são enfrentados com seriedade. Quando as coisas vão bem, não se precisa de Direito Penal. Quando vão mal, não é o Direito Penal que resolve.
Tornar os presídios habitáveis certamente não é solução, mas ameniza a situação caótica. Oportunidade de educação e trabalho. Tratar o preso com respeito para que se tenha condições éticas de exigir que ele, ao deixar o sistema, faça o mesmo em relação às regras sociais.
Fortalecimento dos conselhos da comunidade, que são o elo entre o sistema e a sociedade, funciona. Desmistificar a figura esteriotipada do presidiário também funciona. É de se ter cuidado com a função performática das palavras. Nem todos presidiários correspondem àquele imaginário de estupradores ou assassinos perigosos. A sociedade, por pior que seja o crime, não pode subtrair àquele que errou o direito de não persistir no erro. Esse é um imperativo ético de qualquer sociedade civilizada.
Cumprida e extinta e pena, o condenado não deve mais nada a ninguém. O acesso à certidão de antecedentes deveria ser restringido, de modo a que uma pena originariamente limitada no tempo não se transformasse em pena eterna.
Por fim, não há como administrar o problema prisional sem tratar da principal causa de input no sistema. O crime de tráfico de drogas é o que mais prende no Brasil. Poucos são os barões da droga detidos. A maioria dos presos vendia drogas em uma esquina vestindo chinelos de borracha.[2]
Para racionalizar a entrada de presos no sistema é primordial debater-se sobre a descriminalização das drogas. Um século de criminalização parece não ter servido para proteger os usuários, mas serviu para criar, fazer crescer e manter o crime organizado.
A descriminalização não é a panacéia para todos nossos problemas. Mas é tida como um golpe duro no crime organizado, cujos lucros, em sua grande maioria, advêm de um comércio relegado à informalidade pelo Estado. Aproximadamente 1% do PIB mundial corresponde ao narcotráfico. Muitos ganham com a criminalização: traficantes, agentes públicos corruptos, indústrias de armas e de segurança privada, bancos que fazem circular dinheiro sujo, empresas de logística, políticos populistas etc.
O único que não ganha com a criminalização é o usuário, razão de ser de todo o sistema punitivo das drogas: a criminalização reduz os recursos disponíveis para tratamento, estigmatiza o dependente e o afasta do sistema de saúde, eleva os índices de contaminação por HIV e tuberculose e ainda dificulta que questões sobre drogas sejam discutidas abertamente em escolas e na família.[3]
A descriminalização, ao mesmo tempo em que evitaria prisões desnecessárias, enfraqueceria o crime organizado e seria fonte de recursos para tratar os usuários que fazem uso problemático de drogas. Segundo a ONU, apenas 10% dos usuários faz uso problemático de estupefacientes, e esses devem ser tratados como doentes que são, mas para isso são necessários recursos. Os outros 90% levam uma vida normal, não querem e não precisam ser protegidos pelo Estado.
Também não se pode olvidar que a criminalização fomenta, além de corrupção e lavagem de dinheiro, vários crimes que decorrem justamente do fato desse mercado ter sido relegado ao descontrole estatal. Dependentes que deveriam ser tratados, e que não o são, cometem normalmente pequenos crimes para sustentar o vício. Crimes violentos, contudo, ocorrem por disputas entre territórios e nas cobranças de dívidas entre traficantes e destes para com usuários.[4] A regulação do comércio, como ocorre com o tabaco, serviria para estancar esses métodos heterodoxos de resoluções de desavenças.
E parece não haver motivos para temer aumento do consumo ou “exércitos de esquizofrênicos”. As experiências de descriminalização não foram seguidas por modificação nos padrões de consumo (Estados Unidos, Alemanha, Portugal, Espanha, etc). Portugal, por exemplo, descriminalizou todas as drogas há mais de 15 anos, sem modificação de consumo. Em nenhum outro lugar há notícia de modificação nos padrões de uso.
É certo que as drogas fazem mal e seu uso deve ser controlado por meios racionais e eficazes, como a prevenção pela educação clara, tal qual realizado com o tabaco. A verdade é que as drogas sempre acompanharam o ser humano – vide o elevado consumo de álcool, antidepressivos e ansiolíticos no Brasil. Já o tráfico é uma opção criada pela lei: a proibição move o crime organizado, é responsável por uma série de crimes paralelos, mas não é eficaz para controlar o uso.
No caminho até a descriminalização caberia punir proporcionalmente traficantes, especialmente os não violentos. Talvez não seja mais possível cultivar o mito de que viveremos em um mundo melhor prendendo vendedores de drogas no varejo ou “mulas” do tráfico.
Enfim, a solução para os presídios passa pelo entendimento de que os presídios não são a solução para tudo.
Notas e Referências:
[1] TARLING, Roger. Analysing Offending Data: Models and Interpretations. London: HMSO, 1993, p.154. O Home Office, no Reino Unido, chegou a um número semelhante: 15% de aumento de prisões para diminuição de 1% nas taxas de criminalidade.
[2] Por todos, vide: VALOIS, Luís Carlos. O Direito Penal da Guerra às Drogas. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016.
[3] Vide, por exemplo, compilação, em Língua Portguesa, de vários estudos levada a efeito pela Global Commission on Drug Policy: https://www.globalcommissionondrugs.org/wp-content/uploads/2016/03/GCDP_2014_taking-control_PT.pdf, acesso em outubro de 2016.
[4] GUADANHIN, Gustavo de Carvalho; GOMES, Leandro de Castro. Política criminal de drogas: uma crítica à abordagem proibicionista. Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 24, v. 123, 2016, p. 272-9.
. Henrique Kaster é Mestre e doutorando em Direito pela PUC/SP. Especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra. Especialista em Ciências Penais pela UNISUL/SC. Professor no Programa de Pós-Graduação da PUC/PR. Magistrado. . .
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