Por S. Tavares-Pereira – 03/03/2017
Séries
Neste 2017, as publicações estão classificadas em séries. Veja, no pé deste post, as publicações anteriores. Hoje se dá sequência à série eProcesso – prática com teoria, destinada a refletir sobre o que significa a evolução para o processo eletrônico.
Série eProcesso - prática com teoria II
A eNorma como instrumento de desvirtuamento do jurídico.
No passado, os homens de decisão – notadamente nas empresas, mas também no Estado – se perguntavam: “o que automatizar”? Diante de um panorama de exigüidade de recursos computacionais, era necessário levar recurso para os pontos em que mais impacto produzisse no processo de produção de bens e serviços. A explosão da capacidade dos computadores tornou necessário inverter a pergunta. No eProcesso, e nos tempos atuais, cabe indagar: “o que não se deve automatizar?”. A resposta deve vir dos juristas ou do legislador, mas será cada vez mais necessária.
No primeiro artigo desta série eProcesso – prática com teoria, destaquei a importância de se entender e aceitar que, em muitos papeis, um aplicativo (programa de computador ou algoritmo) pode ter desempenho superior a um humano. Esse entendimento é um corolário do primeiro princípio que enunciei para o eProcesso em artigo de 2009: o princípio da máxima automação.
Esse princípio supõe a existência de atos processuais não automatizáveis. Norbert Wiener – o pai da cibernética, a ciência da automação – anunciou isso na década de 40 do século passado e a afirmação continua atual. Ele referiu-se especialmente ao juiz deixando claro que há horas em que cabe apenas chamar o juiz[1]. A lição de Wiener é generalizável mas ganha especial força no caso do juiz.
A constatação da impossibilidade de automatizar tudo põe nas mãos do juiz humano uma imensa e indeclinável responsabilidade de afirmar o Direito. Não se trata de ativismo judicial. Trata-se pura e simplesmente do cumprimento do dever constitucional da magistratura. Incumbido do delicado discurso de adequação, ou seja, do ato de fixar a norma para o caso concreto considerando todas as perístases da situação (linguajar de Klaus Günther[2]), o juiz tem o papel crucial de fazer prevalecer a lei. Sem juiz que imponha a norma, não há Direito.
Ora, como deve agir o juiz humano, nessa parte que lhe está entregue, quando a tecnologia oferece resistência? Nesses tempos de eProcesso e de aclamação acrítica da tecnologia, a busca de um agir judicial afirmativo do Direito é vital. Haverá alguma razão para o famoso e corriqueiro “o sistema não permite”? Sabe-se que, de fato, o sistema está encarregado, em muitos momentos, de impor padrões de atuação no âmbito processual (veja-se a resolução 136). No caso, não é o sistema que permite ou não e sim o legislador. O fundamento mediato e legítimo da restrição imposta pelo sistema encontra-se na lei. Mas a posição do juiz, ao decidir, merece um olhar especial de supremacia e prevalência. Não parece valer a argumentação tecnológica e refinada do “faço assim porque é o único jeito que o sistema me deixa fazer”.
Uma desembargadora do TRT/SC divertiu-me, certa vez, afirmando que “esse PJe não cumpre ordem judicial!”. Ouvi o mesmo desabafo, meses depois, em Recife, de outro desembargador. Pois em 11 de janeiro de 2016, respondendo a um pleito de uma juíza da Casa, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro finalizou uma rápida decisão de indeferimento do pleiteado com os seguintes parágrafos:
De acordo com o informado pela DIMAG, o sistema informatizado está programado para efetuar o pagamento da referida gratificação proporcionalmente ao número de dias usufruídos. A par disto, INDEFIRO o pedido, em vista da inviabilidade operacional para atendimento do pleito.[3] [grifo meu]
A decisão carioca apresenta facetas que devem ser realçadas, principalmente nessa fase dura de transição para o eProcesso. Não se trata de criticar a decisão, mas de fazer um esforço analítico para entender seu sentido e seu alcance, do qual pode resultar melhorias no eProcesso e aperfeiçoamento das visões dos magistrados a respeito do importante fenômeno que estão sendo obrigados a enfrentar: a evolução para um processo feito com ferramentais eletrônicos. Não é pequeno o desafio, seja para fazer prevalecer o Direito, seja para colocar em seu devido lugar a maravilhosa tecnologia (Princípio da subinstrumentalidade da tecnologia).
A título de impulso à reflexão, note-se:
1) A decisão, no fundo, reconhece o Direito da requerente. O decisor não afirma a inexistência do Direito. Gera-se, assim, uma situação inusitada e intrigante: o julgador indefere um Direito existente e reconhecido, introduzindo uma inegável contradição no sistema jurídico porque, a um reconhecimento liga-se logicamente um deferimento e não um indeferimento.
2) O indeferimento fundamenta-se na “inviabilidade operacional de atendimento”. Há, aí, um equivalente jurídico-jurisdicional do famoso “devo, não nego, pago quando puder!”? Ou, numa visão mais dogmática, a impossibilidade técnica ganha status de causa extintiva da obrigação? Pode-se afirmar que a magistratura, no seu todo, sentir-se-á desconfortável com tais impactos do modus faciendi na substância do Direito. Daí a relevância de interpretar adequadamente o teor da decisão aqui comentada, buscando um acordo semântico de fundo.
3) Na verdade, ao fim e ao cabo, foi o programador quem definiu se o Direito pleiteado persistia na ordem jurídica ou não. E o decisor consentiu, legitimando os limites/derrogações incrustados nas eNormas[4] do SEPAJ[5]. O seja, a eNorma derrogou o dispositivo legal que conferia o Direito à requerente. Vivo estivesse, Niklas Luhmann certamente se divertiria com essa concretização da ideia lançada em sua obra Legitimação pelo procedimento. No caso, prevaleceu a limitação tecnológica sobre o comando legal. O Direito foi espancado pela tecnologia com o assentimento do juiz.
Alguns pensam, nessa hora, em Lessig (Code[6]), ou em Danielle Keats Citron[7], famosa pelas denúncias a respeito de os programadores fazerem novas políticas públicas, nos Estados Unidos, quando dão automaticidade às leis de concessão de benefícios. Mas a percepção desse agir técnico desfigurador das regras via programação já era anunciada, meio dramaticamente, na década de 70 por John Eaton e Jeremy Smithers, falando do mundo empresarial: “já dura demais o tempo em que os gerentes têm estado à mercê de seus peritos técnicos, principalmente no mundo de processamento de dados."[8] Muito mais séria é a situação atual, especialmente no eProcesso. Os juízes têm a obrigação-dever de dar concretude ao Direito, se evidenciada a sua presença, mesmo que o SEPAJ não queira. Como diria aquela desembargadora já citada: “Esse SEPAJ tem de cumprir ordens judiciais!”
Notas e Referências:
[1] WIENER, Norbert. Cibernética e sociedade. O uso humano de seres humanos. 4 ed. São Paulo:Cultrix, 1954, cap. VI.
[2] GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. São Paulo:Landy Editora, 2004. p. 335 e seguintes onde trata dos elementos de um alógica da argumentação de adequação.
[3] PJERJ/GABPRES/Proc.n. 2016-209.481, fl. 8.
[4] eNorma: utilizo o conceito para designar as normas jurídicas codificadas de que são feitos os sistemas eletrônicos. Seu estudo demonstra tratar-se de uma categoria jurídica nova, de características muito particulares: autoaplicabilidade, pseudocontextualização, ininterpretabilidade (trata-se de uma interpretação final), seletividade etc. Para mais detalhes ver: Norma Tecnológica ou Eletrônica (eNorma).
[5] SEPAJ: designo assim aos Sistemas Eletrônicos de Processamento de Ações Judiciais (art. 8º da Lei 11.419/2006), indispensáveis para se fazer o eProcesso.
[6] LAWRENCE, Lessig. Code. Version 2.0. New York:Basic Books, 2006. 410p.
[7] CITRON, Danielle Keats. Technological due process.Washington University Law Review. St. Louis, v.85, p. 1249, 2008.
[8] EATON, John; SMITHERS, Jeremy. Tecnologia da informação: um guia para empresas, gerentes e administradores. Tradução de Eric Drysdale. Rio de Janeiro:Campus, 1984. p. 11.
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S. Tavares-Pereira é mestre em Ciência Jurídica (Univali/SC) e aluno dos cursos de doutoramento da UBA. É especialista em Direito Processual Civil Contemporâneo pela PUC/RS, juiz do trabalho aposentado do TRT12 e, antes da magistratura, foi analista de sistemas/programador. Advogado. Foi professor de direito constitucional, do trabalho e processual do trabalho, em nível de graduação e pós-graduação, e de lógica de programação, linguagem de programação e banco de dados em nível de graduação. Teoriza o processo eletrônico à luz da Teoria dos Sistemas Sociais (Niklas Luhmann).
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