Série conjuntura internacional dos direitos fundamentais: uma onda progressista nos EUA?

13/04/2016

Por Matheus Felipe de Castro – 13/04/2016

A eleição do presidente Barack Obama em 2008 abriu um ciclo progressista nos EUA, não somente com o simbolismo de um negro assumindo pela primeira vez a presidência do país mais poderoso do mundo, mas possibilitando uma série de reformas, consumadas ou tentadas, que arejaram a face da controvertida nação imperialista das Américas.

Seu antecessor, George W. Bush (2001-2009) ganhara as eleições do democrata Al Gore de maneira polêmica quando a Suprema Corte dos EUA, de maioria republicana, julgou inconstitucional (5x4) a recontagem dos votos da Flórida, que dava a vitória a Bush por uma muito pequena margem de votos, embora todas as pesquisas de boca de urna apontassem a vitória do adversário. Isso possibilitou a Bush contar com 25 delegados a mais, o que lhe concedeu evidente vantagem no Colégio Eleitoral (sempre bom lembrar que as eleições nos EUA são indiretas).

Assim, Gore, embora contasse com 48,4% dos votos populares em todo o país sobre 47,9% de Bush, perdeu as eleições no Colégio Eleitoral por 271 votos a 266, o que, à época, foi denunciado por analistas políticos de todo mundo como um golpe de Estado patrocinado pelo Judiciário estadunidense.

Deslegitimado, Bush assumiria a presidência, dando demonstrações públicas de carregá-la como um fardo, cujo alívio era efetivado através de constantes retiros do presidente em suas fazendas no Texas, onde podia caçar e descansar com correligionários e familiares.

Os ataques às Torres Gêmeas do World Trade Center, em 2001 mudariam repentinamente esse cenário, possibilitando ao presidente "cowboy" concentrar poderes que o levariam a criar aquilo que ficou conhecido como "doutrina Bush", promovendo, sob o pretexto de uma "guerra global contra o terror" a invasão do Afeganistão e do Iraque, guerras que duraram uma década, a aprovação no Congresso norte-americano do famigerado "Patriot Act", espécie de AI-5 ianque que autorizou a tortura como método de obtenção de confissões e a suspensão de direitos fundamentais de amplo espectro dos cidadãos norte-americanos, além da criação do Campo de Concentração de Guantánamo e utilização, para esse fim, da velha prisão inglesa de Abu Ghraib, no Iraque.

Foi ainda, no final do seu mandato, que explodiu o descontrole do "subprime", crise econômica que se alastraria por todo o globo, mas que muitos analistas apontaram como tendo origem em manobras políticas que o governo Bush realizara para beneficiar rentistas, bancos e fundos de investimento, o que alimentou uma gigantesca bolha de capitais fictícios, papéis podres, hipotecas não pagas, gerando turbulências políticas e econômicas cuja intensidade não se conhecia desde a quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque em 1929.

Esse foi o ambiente negativo que fomentou o nascimento da candidatura progressista de Barack Obama, então senador pelo Ilinois, que com o slogan "Yes, we can", apaixonaria o coração e as mentes não só do povo norte americano, mas de todos os progressistas do mundo, desejosos de que a grande potência do norte pudesse viver tempos melhores.

O governo Obama foi um governo em disputa entre as alas mais progressistas e mais conservadoras no interior do próprio Partido Democrata, prensados externamente pelos congressistas republicanos e pelas necessidades não só da manutenção do poder imperialista dos EUA no mundo, mas também pelos interesses das grandes corporações norte-americanas. Como um governo nunca é o governo de um homem só, mas o governo do representante de uma força política num contexto objetivamente bem delimitado, poder-se-ia dizer que se tratou de um governo com uma liberdade "situada".

Na política externa, Obama encerrou as frentes de batalha abertas por Bush, mas não sem antes autorizar bombardeios massivos ao que entendeu ser focos de resistência jihadistas. Encerrou a guerra do Iraque, mas incrementou inicialmente as tropas americanas no Afeganistão, frente de batalha que vem sendo diminuída desde 2013, mas que ainda conta com alguns milhares de soldados na região. Manteve o que chamou de "aliança inquebrantável" dos EUA com Israel, embora tenha desagradado Benjamin Netanyahu ao desautorizá-lo publicamente no caso das construções de habitações israelenses em bairros predominantemente árabes em Jerusalém Oriental, o que atraiu a ira dos conservadores israelenses contra a sua administração. Determinou a eliminação física de Osama Bin Laden. Patrocinou as revoltas na Líbia e na Síria. Foi omisso com as situações pós-guerra no Oriente Médio, o que pode ter colaborado inclusive para que o Daish se instalasse no vácuo de poder deixado com o abandono político e econômico da região. Não conseguiu angariar forças políticas suficientes para fechar Guantánamo, proposta de sua primeira campanha presidencial. Promoveu ativas políticas de reaproximação com Cuba, trabalhando intensamente para aprovar no Congresso norte-americano o fim do embargo que estrangula o povo cubano há mais de meio século, lhe impondo a "tortura coletiva" mais longa da história.

Na política interna Obama nomeou duas mulheres para a Suprema Corte Americana, valorizando a política de gênero. Assinou decretos garantindo igualdades salariais a várias categorias de trabalhadores. Expandiu o programa estatal de seguro de saúde para mais de 4 milhões de crianças. Revogou medida do governo Bush que limitava o investimento em células tronco embrionárias. Promoveu medidas para limitação de emissão de gases estufa pelas empresas norte-americanas. Assinou a Matthew Shepard and James Byrd, Jr. Hate Crimes Prevention Act, uma medida que expande uma lei federal de 1969 sobre crimes motivados pelo preconceito, incluindo nesta categoria crimes motivados por identidade de gênero,orientação sexual, ou deficiência. Permitiu que gays e lésbicas pudessem servir as Forças Armadas dos EUA. Defendeu o casamento homoafetivo, embora a decisão final favorável tenha vindo pelas mãos da Suprema Corte em 2015. Trabalhou pela limitação do "sagrado" direito estadunidense ao porte ilimitado de armas, sem grande sucesso. Estimulou a economia com um pacote de investimentos superior a 800 bilhões de dólares. Aprovou o Patient Protection and Affordable Care Act, o famoso "Obamacare", em 2010, dando início a um Sistema Único de Saúde público nos EUA, o que foi vigorosamente contestado pelos republicanos não só no Congresso como na Suprema Corte.

Como se vê, permeado por profundas contradições, o saldo do governo Obama, tanto nas políticas internas quanto externas foi positivo, podendo ser considerado, dentro das condições expansionistas norte-americanas e em comparação ao histórico dos governos que lhe antecederam (mesmo o de Bill Clinton), um governo avançado em relação à expansão do respeito aos direitos humanos e fundamentais não só nos EUA, mas em todo o mundo, tendo ganho inclusive um prêmio Nobel da Paz.

A novidade é que as eleições deste ano nos EUA podem aprofundar essas mudanças iniciadas por Obama ou contê-las significativamente. Não digo reprimi-las porque não acredito na hipótese da vitória de um republicano neste momento histórico. Não há clima para a vitória de um republicano, a não ser que aconteça um fato de grandes proporções até a data do pleito, o que poderia mudar a opinião do eleitor médio norte-americano. Embora a candidatura do milionário conservador Donald Trump venha arregimentando seguidores em quantidade que chegou a assustar os eleitores democratas, não há contexto para uma virada republicana nos EUA.

Aliás, ouso dizer que considero positiva a candidatura do republicano. Donald Trump é dado a grandes fanfarronices. Outros candidatos republicanos mais conservadores disputam o páreo pela vaga do partido no pleito. Ted Cruz e Marco Rubio são considerados mais à direita que Trump, embora mais comedidos e teriam, por isso, mais condições de ocupar o centro do tabuleiro eleitoral (em eleições em países de democracia liberal, quem ocupa o centro do espectro político tem condições maiores de ampliação tanto junto à esquerda quanto à direita) impondo maiores riscos à sucessão democrata.

Nesse contexto, acredito que as eleições serão ganhas por um candidato democrata. Ou seja, a decisão, ao que parece, será tomada nas prévias do partido democrata que se divide entre as candidaturas de Hillary Clinton e Bernie Sanders. A primeira, de viés mais conservador, se localiza à direita do espectro político de Obama, representando velhas oligarquias daquele país. O segundo, de viés mais progressista, considerado por muitos um socialista democrático (o que para os padrões norte-americanos é altamente explosivo), se localiza claramente à esquerda de Obama no espectro político de seu partido.

A eventual vitória de Hillary representaria uma continuidade democrata, mas com menos reformas sociais e com políticas externas mais conservadoras do que as que Obama foi capaz de implementar. Lembre-se que Hillary é esposa do ex-presidente Bill Clinton, democrata bastante controvertido, localizado bem à direita do espectro político do Partido Democrata. A vitória de Hillary, enfim, daria um passo mais conservador rumo ao centro do teatro político norte-americano, podendo, inclusive, colocar em risco, algumas das políticas positivas implementadas por Obama.

Já a vitória de Bernie Sanders promete aprofundar as reformas progressistas internas iniciadas por Obama, mas não concluídas. Promete mudar significativamente as relações internacionais dos EUA frente ao mundo. Seu viés socialista democrático promete levar os EUA a um patamar de discussão jamais vivenciado antes em toda a sua história. Representaria um passo além, aprofundando a onda progressista nos EUA, razão pela qual tem ganho a simpatia de amplos setores jovens estadunidenses.

Inicialmente tido como um candidato sem qualquer chance, Bernie Sanders venceu Hillary Clinton sete vezes consecutivas e vai se firmando, surpreendentemente como concorrente viável neste ano. Conquistou parcelas amplas do eleitorado que desejam mudanças significativas no país e é a chance histórica de os EUA demonstrarem que embarcaram numa onda progressista de transformações mais profundas. Agora, ele disputará com Hillary as primárias do Estado de Nova Iorque. Se vencer, o socialista Sanders será o próximo presidente dos EUA e representará a maior conquista do governo Obama: a abertura de horizontes para um governo ainda mais avançado que o seu.​


Matheus Felipe de Castro. . Matheus Felipe de Castro é Doutor em Direito pela UFSC, Professor de Direito Constitucional na mesma instituição e Professor Titular do Mestrado em Direitos Fundamentais da UNOESC. . .


Imagem Ilustrativa do Post: 0616 // Foto de: NOAA Great Lakes Environmental Research Laboratory // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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