Senhor Ministro: what happens after you go home?

09/07/2017

Por Affonso Ghizzo Neto – 09/07/2017 [1]

A postura do magistrado Gilmar Mendes, Ministro do Supremo Tribunal Federal, vem chamando a atenção de muitos seguimentos da sociedade brasileira. Não só de operadores do direito ou técnicos da área jurídica, como também de leigos, diversos cidadãos brasileiros que – muito além do conteúdo normativo e jurídico relacionado às decisões judiciais – parecem perplexos diante da postura expansiva, desmedida, incoerente, contraditória e ilimitada do magistrado frente aos inúmeros escândalos de corrupção que vem assombrando a nação brasileira.

Questionam-se, por exemplo, procedimentos contraditórios adotados por Mendes em situações aparentemente similares, com interpretações jurídicas distintas ou, como se diz no brocardo popular, com “dois pesos e duas medidas”.[2] Ambas relacionadas à chamada operação “Lava Jato”, mais precisamente no que respeita aos supostos vazamentos de interceptações telefônicas. Vejamos:

Num primeiro momento, coincidentemente antes do impeachment da ex-Presidente Dilma, a meu sentir corretamente, manifestou-se pela validade e regularidade da prova consistente na interceptação telefônica realizada entre Dilma e Lula. Entretanto, numa segunda oportunidade, posteriormente ao impeachment, quando de um alcance maior das investigações, atingindo outros partidos e políticos (PSDB, PMDB etc.), sustentou a ilegalidade das interceptações, considerando-as criminosas, provenientes de várias transgressões e ilegalidades praticadas supostamente pelos membros do Ministério Público.

Em síntese: para Gilmar Mendes a publicidade do conteúdo das interceptações telefônicas de Lula e Dilma foram regulares, ao passo que as interceptações referentes a outros políticos são produtos ilícitos provenientes de crimes.

Recorde-se que em 18 de março de 2016 foi o próprio Gilmar Mendes que se valeu do conteúdo das interceptações telefônicas mantidas entre Lula e Dilma para conceder medida liminar – requerida pelo PSDB e PPS – para anular corretamente a posse do ex-presidente Lula como ministro da Casa Civil.

Transcorrido aproximadamente um ano desta decisão, Gilmar Mendes modifica seu entendimento anterior para refutar com veemência a publicidade de novas interceptações telefônicas que tiveram por objeto uma pluralidade de políticos e partidos políticos (PMDB etc.) envolvidos nas investigações da operação “Lava Jato” e “Carne Fraca”. Mendes acusou o Ministério Público Federal de divulgar indevidamente informações de processos sigilosos, sustentando a anulação de depoimentos provenientes de colaborações premiadas divulgadas pela imprensa. Assim se manifestou Mendes, conforme se verifica pelo conteúdo de reportagem jornalística amplamente divulgada: “Vazamento é eufemismo para um crime que os procuradores certamente não desconhecem.”[3]

Entre constantes ataques ao Ministério Público e ao próprio Poder Judiciário, notadamente no que se refere à operação “Lava Jato”, Mendes vem tomando conta dos noticiários em virtude de manifestações e decisões polêmicas e controvertidas. Muitos de seus posicionamentos e decisões judiciais aparentam parcialidade. Segundo divulgado pelo colunista Lauro Jardim, “de um ministro do STF sobre um colega seu: — O Gilmar (Mendes) vai mudando o Direito dependendo do amigo que é acusado.[4]

Embora muitos questionem a postura de Gilmar Mendes em relação aos acontecimentos relacionados à chamada operação “Lava Jato”, publicidade das interpretações telefônicas (vazamentos), delações ou colaborações premiadas, prisões, solturas e outras manifestações polêmicas – algumas até ríspidas, grosseiras e inapropriadas –, o que mais chama a atenção é a postura e as ações do ministro fora dos Tribunais, ou seja, muito além das salas imponentes do STF.

Para muitos juristas[5], e também para leigos, Mendes vem demonstrado relações pessoais inadequadas, levantando muitas vezes dúvidas e suspeitas sobre a imparcialidade necessária para condução de processos relacionados com políticos diversos, notadamente em relação ao Presidente Michel Temer. O Código de Processo Civil prevê que magistrados não podem julgar “amigos íntimos” nem mesmo aconselhar as partes acerca do objeto das causas que estão – ou estarão – sujeitas a julgamentos nos Tribunais (STF e TSE). A suspeição é medida que se impõe em hipóteses como estas. Talvez não seja coincidência o fato de Mendes ter sido o primeiro ministro do Supremo Tribunal Federal a ter seu impedimento legal requerido por um Procurador-Geral da República.[6]

Aliás, apenas para dar mais um pequeno exemplo dentre muitas condutas do Ministro Gilmar Mendes questionadas junto à sociedade, recentemente o Magistrado participou de uma reunião com o Presidente Michel Temer, num encontro noturno realizado fora da agenda oficial da Presidência da República. No encontro também estavam presentes os ministros Moreira Franco (Secretaria Geral) e Eliseu Padilha (Casa Civil), ambos, ao lado do Presidente, acusados de irregularidades, crimes e outras práticas delituosas na operação “Lava Jato”.

A reunião “informal” ocorreu na véspera da escolha da nova Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, assim como da sessão do Supremo que discutiu a validade da colaboração premiada (delação) da JBS. A nota oficial do Governo Federal informou que: “O presidente Michel Temer marcou o jantar com o ministro Gilmar Mendes para discutir Reforma Política. Ao saberem do encontro, os ministros Eliseu Padilha e Moreira Franco resolveram participar”.[7] Mendes limitou-se a afirmar que, na condição de Presidente do TSE, apenas debateu assuntos relacionados à Reforma Política.

Em outro episódio que repercutiu recentemente na mídia, Gilmar Mendes teve uma ligação telefônica interceptada – com a autorização do STF – ao manter uma conversa com o Senador Aécio Neves, o qual solicitou a Gilmar que mantivesse contato imediato com o Senador Flexa Ribeiro para pedir apoio no projeto de abuso de autoridade, projeto este amplamente questionado na opinião pública, representando, para muitos, uma forte reação de criminosos contra a chamada operação “Lava Jato”, verbis:

— Você sabe um telefonema que você poderia dar que me ajudaria na condução lá. Não sei como é sua relação com ele, mas ponderando. Enfim, ao final dizendo que me acompanhe lá, que era importante. Era o Flexa, viu? — diz Aécio.

— O Flexa. Tá bom, eu falo com ele — responde o ministro.[8]

Dito isso, longe de qualquer julgamento indevido ou recriminação inapropriada em relação às ações do Magistrado, permito-me dividir algumas reflexões a partir de alguns importantes ensinamentos da Magistrada do Distrito de Illinois, Juíza Virginia Kendal. Com a palestra intitulada “What happens after I go home?[9]  ou, em português, “O que acontece depois que vou para casa?”, Kendal estabelece, muito além das atividades administrativas e de magistratura desenvolvidas pelos juízes americanos nos interiores dos fóruns e dos Tribunais, alguns parâmetros de condutas sociais que devem ser observados por parte dos magistrados estadunidenses. Uma importante reflexão sobre o comportamento esperado dos magistrados fora de seus ambientes de ofício. Qual o comportamento a ser observado pelos juízes no cotidiano comum de suas vidas em sociedade? Existem cuidados e limitações específicas? Quais as armadilhas que poderão se impor na vida prática? Enfim, como proceder na vida social sem que ocorram questionamentos e/ou impedimentos em relação às respectivas atividades jurisdicionais?

A juíza Virginia Kendal destaca inicialmente as três principais áreas de preocupação que devem ser diligenciadas pelos magistrados: a) manifestações escritas ou gravações sonoras ou audio-visuais; b) participação social (socialização); e c) atividades complementares de trabalho (trabalhos externos). As primeiras dizem respeito às manifestações escritas, gravações ou audio-visuais divulgados em jornais, blogs ou em outras mídias sociais, como twitter, facebook, instagran etc. Já a socialização abarca os eventos que o magistrado participa no seu cotidiano, como lazer, festas, participação em clubes de serviço ou outras organizações e instituições de caridade, além, conforme a hipótese, a eventual participação na vida política da nação. Por fim, quanto às últimas, se encontram as atividades externas, como advocacia ou outras funções remuneradas.

Kendal destaca a seguir os 4 (quatro) cânones sagrados que devem guiar a conduta dos juízes americanos em suas atividades profissionais e vida privada, verdadeiros princípios de conduta:

1 - Ser imparcial;

2 - Ser íntegro e profissional;

3 - Ser apenas um servidor público de qualidade; e

4 - Ser avesso à política-partidária.

No que respeita ao primeiro cânone, princípio ou mandamento de conduta, “ser imparcial”, observa que os funcionários do judiciário, especialmente os magistrados, devem defender a integridade e independência do Poder Judiciário, assim como do fórum judicial no qual desempenham suas funções administrativas, jurídicas e judiciais. Igual a “mulher de César”[10], a imparcialidade judicial deve ser construída a partir do respeito e da consideração social. O juiz, como servidor judicial por excelência, deve dar o exemplo a partir de suas condutas, ações e atividades diárias dentro e fora dos Tribunais.

O segundo cânone que deve ser respeitado aborda a atuação funcional íntegra, responsável, eficiente e profissional. O magistrado ou outro servidor judicial sempre deve agir com visível integridade e profissionalismo.

O magistrado ou servidores judiciais devem evitar a qualquer custo práticas cotidianas impróprias ou que aparentem impropriedades perante aos olhos da sociedade que representam. Segundo sustenta Kendal, ao se envolver em atividades externas aos respectivos deveres funcionais, o magistrado ou servidor judicial deve evitar o risco de conflito com suas obrigações funcionais, evitando inaptidões, despreparos ou ineficiências. Deve sempre, em qualquer hipótese, cumprir os requisitos de transparência em suas ações e condutas diárias. Há que se perguntar constantemente: Como deve agir um magistrado nesta situação?

O terceiro cânone reafirma a necessidade de observação do padrão de atuação oficial do Tribunal ou juízo, as metas e as políticas institucionais adotadas.  O servidor judicial deve aderir aos padrões institucionais apropriados para desempenhar seus deveres funcionais mantendo o foco na qualidade da prestação administrativa ou jurisdicional (focus on quality).

O Poder Judiciário, tendo como indicador as condutas, ações e inter-relações pessoais de seus servidores, assim como as respectivas perspectivas e consequências junto à sociedade em geral, não deve se olvidar que magistrados são   servidores públicos que devem buscar um serviço de excelência destinado à sociedade que servem. Neste particular, pertinente ressaltar a gravidade de eventuais condutas prepotentes e arbitrárias por parte de funcionários e magistrados. Servir com eficiência, presteza, humildade e qualidade deve ser o objetivo a ser seguido. Nos Estados Unidos, por exemplo, os magistrados de todas as Cortes se comportam como servidores comuns, “mortais”, sujeitos às regras e aos procedimentos impostos a todos os servidores e cidadãos.

Por fim, o quarto cânone faz menção à obrigatoriedade de abstenção de qualquer exercício ou posicionamento político-partidário por parte servidor judicial (juiz) durante o exercício da magistratura, sendo vedada a participação em atividades políticas de governo ou oposição, haja vista que inadequadas e incompatíveis com a função de julgador (no politics).

É preciso fazer a seguinte distinção: A política é inerente à atividade humana, determinando nossas opções de ideias, condutas e valores sociais. Diversamente, a atividade político-partidária consiste no engajamento ideológico, através da associação organizada de membros que busquem a concretização de interesses comuns. O exercício político é natural e humano, inerente ao exercício da cidadania, ao passo que a atividade político-partidária é opcional, dependendo de uma escolha voluntária e participativa.

Assim sendo, a incompatibilidade da magistratura com a atividade político-partidária decorre, antes de tudo, da necessária independência e imparcialidade funcional. No Brasil a Constituição Federal, em seu art. 95, parágrafo único, inciso III, consagra a vedação ao afirmar que é proibido ao magistrado dedicar-se à atividade político-partidária, in litteris:

Art. 95. Os juízes gozam das seguintes garantias: 

(…) 

Parágrafo único. Aos juízes é vedado: 

(…) 

III - dedicar-se à atividade político-partidária.

E foi com base nesta vedação constitucional e na própria Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman) que o próprio Conselho Nacional de Justiça (CNJ) determinou a pena de aposentadoria compulsória a um magistrado justamente pelo exercício indevido de atividade político-partidária.[11]

Mas quem ou quais servidores judiciais devem cumprir os cânones preceituados nos Estados Unidos? Kendal ao fazer referência ao “Code of Conduct for Judicial Employees” (Código de Conduta para Funcionários Judiciais, com as alterações de 2013), afirma que a norma se aplica explicitamente a todos os servidores do órgão judicial, incluindo juízes, funcionários, estagiários, agentes externos e outros empregados com atuações nos Tribunais, ainda que voluntariamente e sem remuneração. Como se vê, com rigor igualitário, a norma também se aplica a estagiários e agentes externos, ainda que não remunerados, que desempenhem alguma atividade relacionada com os serviços dos Tribunais, inclusive a servidores extra-judiciais, ainda que, neste caso, seja menos restritiva, aplicando as restrições e os impedimentos no limite de suas atividades.

Em relação a aparição e manifestações públicas dos servidores judiciais, “Your Public Presence”, Kendal faz menção ao Aviso Consultivo 112 (Advisory Opinion 112), chamando a atenção para a necessária atuação cautelosa, racional e profissional diante dos principais pontos de preocupação que devem pautar a atividade jurisdicional:

  1. Confidencialidade (Confidentiality);
  1. Improvisação (Impropriety);
  1. Prestígio do cargo (Prestige of office);
  1. Dignidade do Tribunal (Dignity of the Court);
  1. Acesso privilegiado ao Tribunal (Special access to Court);
  1. Questões pendentes (Pending matters);
  1. Recebimento ou captação de recursos (Fundraising);
  1. Atividade político-partidária (Political activity); e
  1. Problemas frequentemente em litígio (Frequently litigated issues).

Destacadas estas preocupações, Kendal ressalta as principais implicações decorrentes do primeiro cânone, “ser imparcial”:

a) A participação de juízes e outros servidores judiciais em jornais, mídias, ou nas redes sociais através da inclusão de mensagens para litigantes ou advogados das partes, ainda que indiretamente, implica quebra da imparcialidade porque pode transmitir a impressão de que eles estão em uma posição especial (vantajosa) para influenciar na causa forense;

b) As manifestações e postagens de juízes e outros servidores judiciais nas mídias e nas redes sociais podem transmitir a impressão de que o magistrado ou o servidor se investem da autoridade e prestígio do cargo funcional quando expressam suas ideias pessoais, o que deve ser evitado;

c) A comunicação mantida entre um advogado e o Tribunal através de mensagens longas e elaboradas, "wall posts", ou mesmo através de "tweets" pode transparecer um acesso especial ou privilegiado ao respectivo Tribunal;

d) Estas manifestações na imprensa ou comunicações realizadas nas redes sociais não precisam tratar diretamente sobre uma causa jurídica em andamento (ex parte communication), bastando que deixem a impressão de ter o advogado uma posição vantajosa que possa influenciar, ainda que inconscientemente, o juiz ou o Tribunal;

e) A simples manifestação através de comentários sobre advogados, escritórios de advocacias, positiva, neutra ou negativamente, abala a necessária imparcialidade judicial;

f) A afiliação ou relacionamento com uma organização, ainda que superficial ou casual, por exemplo na condição de “fã” ou “amigo”, também é prejudicial para a imagem do Poder Judiciário;

g) Fazer menção ao exercício do cargo judicial que desempenha na Justiça pode aparentar o uso indevido do prestígio decorrente do cargo;

h) Da mesma forma em relação às manifestações nas redes sociais, postando manifestações ou blogando na condição de servidor judicial fazendo menção expressa ao exercício do cargo, fórum ou Tribunal;

i) A imparcialidade também resta prejudicada quando o magistrado ou servidor judicial utiliza de sua posição funcional para promover o interesse privado de terceiros nas redes sociais (website, social media, blog);

j) Também geram consequências negativas o engajamento e a participação em debates ou diálogos polêmicos que possam denegrir o prestígio e a imagem do Tribunal; e

l) Evidentemente, com maior razão, inapropriado os comentários de magistrados e outros servidores judiciais sobre questões fáticas e jurídicas que possam ser levadas a julgamento nos Tribunais.

Segundo Kendal, mesmo uma conexão relativamente superficial (como ser um "fã" ou "gostar" de alguém ou de algo divulgado nas mídias ou redes sociais) pode suscitar preocupações relacionadas à necessária imparcialidade judicial.

Todas estas preocupações que podem num primeiro momento parecer exageradas visam resguardar o respeito e a confiança num sistema judicial imparcial, devendo ainda ser observada maior cautela e atenção quando se tratarem de manifestações escritas identificadas e relacionadas com o próprio posicionamento oficial da autoridade judicial ou com o respectivo Tribunal. Como observa Virginia Kendall: “These concerns are greater when the write is identified with the Court.[12]

Ademais, “blogging” sobre temas que sejam politicamente sensíveis, controversos, controvertidos ou que possam ser debatidos futuramente nos Tribunais, podem levar a questionamentos sobre a imparcialidade do julgador (Cânone 1) ou prejudicar a própria credibilidade da Justiça (Cânone 2).

Neste particular, quando se analisa a credibilidade do Poder Judiciário (integridade e confiança), a confidencialidade de muitos atos administrativos e judiciais praticados por magistrados e servidores judiciais é medida que se impõe. Kendall sugere padrões de condutas por parte de juízes e outros servidores com o objetivo de preservar a necessária confidencialidade (Cânone 2) inerente aos cargos, tais como:

a) Não divulgar oficiosamente informações recebidas durante o curso dos processos ou aquelas recebidas em razão do desempenho dos deveres funcionais;

b) Não fazer comentários, referências ou manifestações públicas sobre litígios pendentes ou em curso nos fóruns ou nos Tribunais;

c) Não usar dados ou informações recebidas durante o exercício das funções oficiais em benefício particular, próprio ou de terceiros;

d) Não realizar quaisquer comentários públicos, na imprensa, nas redes sociais etc; sobre questões legais e jurídicas que possam ser levadas futuramente aos Tribunais, antecipando indevidamente o posicionamento decisório; e

e) Não possuir qualquer relação ou vínculo, ainda que através de participações nas redes sociais, com organizações que litiguem frequentemente nos Tribunais.

Kendal também aborda as implicações provenientes do segundo cânone: “ser íntegro e profissional”, destacando:

a) Sempre procure identificar possíveis conflitos de interesse para manter a integridade do Tribunal preservada;

b) O dever de recusa (suspeição ou impedimento) para atuação em causas pode ser adequado, dependendo do grau de envolvimento com as partes;

c) A análise das situações de recusa vai além dos conflitos econômicos e requer uma análise completa da interação e comunicação entre o Tribunal (servidor ou magistrado) e os representantes legais das partes; e

d) Mesmo os funcionários judiciais fora de atividade (aposentados ou afastados), devem evitar práticas aparentemente impróprias, evitando conflitos com as funções oficiais que desempenharam, cumprindo igualmente os requisitos de divulgação e de transparência em relação aos seus atos. 

Kendall resume as atitudes esperadas pelos magistrados através de uma indagação chave que deve acompanhar as autoridades judiciais em todos os momentos de suas vidas: “What would Judge do?” ou, em português, “O que faria o Juiz?”.

Mas nem tudo é vedado ou representa uma reclusão por parte dos magistrados. Cautelas e cuidados que devem ser observados, existem atividades que são permitidas e até aconselháveis. Kendall indica as “permissible activities” em três exemplos com as respectivas ressalvas:

a) Participar (redigir, ensinar, colaborar etc.) em organizações e conselhos de direito de organizações sem fins lucrativos, observando as necessárias restrições dentro dessas atividades;

b) Realizar trabalhos sem fins lucrativos e atendimento em entidades de caridade, porém com as restrições inerentes a este tipo de função; e

c) Desenvolver atividades religiosas, nas igrejas ou outros locais de congregação, incluindo trabalho missionário, de diácono ou de presidente.

Em relação ao magistério, a exemplo da possibilidade de seu desempenho no Brasil, também nos Estados Unidos o exercício é permitido, entretanto como exceção. Kendal indica as “Exceptions to Teaching”:

a) Normalmente não pode receber honorários por um discurso;

b) Pode receber honorários para uma "série" de palestras ou artigos científicos, desde que não estejam relacionados com a função judicial exercida no Tribunal, conforme regulamentos da JNet (consult the regulations on Jnet);

c) Pode também receber compensação financeira pelo ensino de um curso ou outro emprego externo, mas dentro dos limites estabelecidos pelo Tribunal;

d) Pode receber o reembolso de viagens e hospedagens quando convidado para discursar (veja também o Regulamento Gilf no JNet); e

e) Não pode assumir posição pública em aulas, conferências ou palestras sobre uma questão judicial controversa posta nos Tribunais.

Kendal também aborda as exceções para a participação em conselhos, “Exceptions to Serving on a Board”:

a) Os funcionários judiciais podem fazer algum levantamento de fundos nos conselhos que participem, mas dentro das limitações estabelecidas na Cânone 2 (ser íntegro e profissional);

b) Determinados serviços em conselhos podem suscitar preocupações com a ética, incluindo organizações que possam vir a litigar perante o Tribunal, motivo pelo qual se deve obrigatoriamente consultar previamente o juiz ou o Tribunal sobre as respectivas atividades;

c) Não pode receber compensação financeira pelos serviços desempenhados nos conselhos;

d) É vedado no conselho fazer manifestações públicas sobre opiniões pessoais relativas a assuntos controversos que possam ser debatidos nos Tribunais; e

e) Deve evitar “compromissos de governo” (governmental appointments) em razão das preocupações relacionadas com a independência judicial. Vide Cânone 1 (ser imparcial).

Participar em um conselho ou comissão implica mais do que simplesmente a presença de servidor judicial, motivo pelo qual se requer uma contribuição discreta e limitada. Como os membros do conselho podem eventualmente influenciar as políticas públicas e os regulamentos estatais, é importante que os servidores judiciais não se envolvam em temas polêmicos que possam vir a ser discutidos nos Tribunais. Com as exceções decorrentes da responsabilidade junto aos Tribunais em que atuam, os servidores judiciais (magistrados e funcionários) membros de conselhos e de comissões estarão sujeitos às leis de conflito de interesses e ética do respectivo Estado.

Por fim, Kendal aponta as exceções que permitem a participação em serviços e atividades beneficentes, “Exceptions to Charitable Service”:

a) É possível receber um prêmio de uma instituição de caridade pelos serviços prestados, mas evitando “emprestar” o prestígio do Tribunal à organização ou permitir que a organização explore seu vínculo com o Tribunal;

b) Devem ser evitadas determinadas condutas pessoais que possam dar margem à exploração do vínculo do magistrado ou servidor com o Tribunal, como, por exemplo, um jantar oferecido pela instituição de caridade ao juiz e sua equipe; e

c) É proibida a identificação do magistrado, de sua equipe ou de outros servidores judiciais quando da participação de eventos para a angariação de fundos destinados à instituição de caridade.

Kendal finaliza sua abordagem com mais uma provocação: “How to protect the integrity of the Judiciary?” (Como proteger a integridade do Judiciário?). Ao expor uma imagem dos três macacos[13] que são conhecidos mundialmente no ocidente como a identificação utilizada para fazer referência àqueles que agem incorretamente por fazer vistas grossas em relação a uma situação ou acontecimento (não ouço, não vejo e não falo), Kendal observa que mesmo que o magistrado não se manifeste frequentemente na imprensa ou não seja um usuário das redes sociais, deve estar atento e não ficar indiferente à participação de sua equipe nas mídias e redes sociais.

Evidentemente, em que pese as cautelas e restrições a que magistrados estejam sujeitos, como ensina Herval Sampaio, não perde ele a condição de ser humano e cidadão. Numa concepção atraente de Estado Democrático de Direito, com a ideia de uma justiça imparcial e acessível a todos, “o exercício da magistratura não impede o juiz de exercer sua cidadania, de expressar suas vontades, posições e crenças de modo abstrato (…)”[14], entretanto com a atenção e os cuidados necessários para que os relacionamentos institucionais não se transformem em trocas de favores pessoais entre confrades, muitas vezes traduzidos em comportamentos poucos republicanos revestidos de parcialidade, arbitrariedade, estupidez e apoderamento sem limites. Não pode e não deve o magistrado deixar-se contaminar pelo “absolutismo” de suas condutas, através de uma simbiose entre interesses públicos e privados com um resultado desastroso e fatal para Democracia e para a própria credibilidade da Justiça.

Em resumo, a reflexão primária que desponta da consideração das normas de condutas previstas nos 4 (quatro) cânones abordados pela juíza Virginia Kendal, com os filtros, alterações e adaptações necessárias ao direito pátrio, não fossem os conteúdos inseridos expressamente na Constituição Federal (art. 95, parágrafo único, inciso III) e na Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman) – inclusive os quais estão sujeitos os ministros do Supremo Tribunal Federal –, importa conceber um Poder Judiciário público a serviço de todos os cidadãos, atuando com visível credibilidade, imparcialidade, eficiência, efetividade e resultados práticos. Mais do que nunca vale o aprendizado vindo do estrangeiro: Cabe ao verdadeiro magistrado ser imparcial; íntegro e profissional; um servidor público de qualidade; sempre avesso às atividades político-partidárias.


Notas e Referências:

[1] As ideias, reflexões e conclusões decorrentes dos ensinamentos da Juíza americana Virginia Kendal, quando da conferência “What happens after I go home?”, assim como as comparações com a justiça brasileira, são de inteira responsabilidade do autor do presente artigo.

[2] “Gilmar Mendes acha certo vazar delação contra Lula e PT e quer anular delação contra PSDB/PMDB por vazamento”. Disponível em: https://falandoverdades.com.br/2017/03/24/gilmar-mendes-acha-certo-vazar-delacao-contra-lula-e-pt-e-quer-anular-delacao-contra-psdbpmdb-por-vazamento/

[3] “Gilmar Mendes critica vazamento de investigações sigilosas e cita PGR”, Breno Pires e Rafael Moraes Moura, Jornal O Estado de São.Paulo, em 21/03/17. Disponível em: http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,gilmar-mendes-faz-criticas-a-vazamentos-de-conteudos-de-investigacoes-sigilosas,70001708494

[4] Site O Globo, Ao sabor do vento, Lauro Jardim, em 04/07/17. Disponível em: http://blogs.oglobo.globo.com/lauro-jardim/post/ao-sabor-do-vento.html

[5] “Para juristas, amizade entre Temer e Gilmar levanta dúvidas sobre imparcialidade de ministro no TSE”. Site BBC Brasil, Mariana Schreiber, em 03/04/17. Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/brasil-39483586

[6] “Pedido de impedimento de Gilmar é o 1º feito pela PGR para um ministro do STF. Ao todo, o ministro do Supremo já sofreu sete arguições de impedimentos”. Site Em.com.br, em 09/05/17. Disponível em: http://www.em.com.br/app/noticia/politica/2017/05/09/interna_politica,867801/pedido-de-impedimento-de-gilmar-e-o-1-feito-pela-pgr-para-um-ministro.shtml

[7] “Temer teve encontro fora da agenda à noite na casa de Gilmar Mendes”. Site G1, Andréia Sadi, em 28/06/17. Disponível em: http://g1.globo.com/politica/blog/andreia-sadi/post/temer-teve-encontro-fora-da-agenda-noite-na-casa-de-gilmar.html

[8] “Ligações telefônicas de Aécio com Gilmar Mendes e diretor da PF foram grampeadas. Grampos foram autorizados pelo relator da Lava-Jato, Edson Fachin”. Site O Globo, Eduardo Bresciani e Manoel Ventura, em 19/05/17. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/ligacoes-telefonicas-de-aecio-com-gilmar-mendes-diretor-da-pf-foram-grampeadas-21366504#ixzz4loFWBWY6

[9] “What happens after I go home?” by Judge Virginia Kendal, U.S. District Judge, Northern District of Illinois, Court Web, Host Brenda Baldwin-White, Sr. Judicial Education Attorney, Federal Judicial Center, Washington D.C., USA, February 8, 2017.

[10] “À mulher de César não basta ser honesta, tem que parecer honesta”.

[11] “CNJ confirma punição a juiz do Maranhão por atividades políticas.” Site O Globo, Carolina Brígido, em 05/03/13. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/cnj-confirma-punicao-juiz-do-maranhao-por-atividades-politicas-7747428#ixzz4loJmO3wf

[12] “What happens after I go home?” by Judge Virginia Kendal, U.S. District Judge, Northern District of Illinois, Court Web, Host Brenda Baldwin-White, Sr. Judicial Education Attorney, Federal Judicial Center, Washington D.C., USA, February 8, 2017.

[13] Os Três Macacos Sábios ilustram a porta do Santuário Toshogu, na cidade de Nikkô no Japão. Diferentemente do mundo ocidental sua origem é baseada num provérbio que significa: não ouça o mal, não fale o mal e não veja o mal, estando relacionada com o pensamento positivo de bem-estar, falas e ações.

[14] “O Juiz perde a qualidade de cidadão pelo exercício do cargo?”, Site Instituto Novo Eleitoral, Herval Sampaio, em 03/06/17. Acessível em: http://novoeleitoral.com/index.php/artigos/hervalsampaio/915-ser-juiz-nao-retira-cidadania-direito-de-posicionar-em-abstrato-temas-sociais


affonso-ghizzo-neto. . Affonso Ghizzo Neto é Promotor de Justiça. Doutorando pela USAL. Mestre pela UFSC. Idealizador do Projeto “O que você tem a ver com a corrupção?”. aghizzo@gmail.com / aghizzo@usal.es. .


Imagem Ilustrativa do Post: Plenário do Senado // Foto de: Senado Federal // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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