Por Fernanda Pacheco Amorim - 15/03/2016
Esta semana, o apresentador Rodrigo Hilbert no seu programa Tempero de Família da GNT, preparou um prato que tinha como base a carne de ovelha. Não há nada demais nisto, não é? Rodrigo apresenta um programa de culinária, não há nada de excepcional em ele cozinhar durante o programa.
O que causou revolta e polêmica - e teve como conseqüência uma viralização da notícia nas redes sociais - foi o fato do apresentador ter capturado um filhote de ovelha de aproximadamente seis meses, que em seguida foi degolado e teve sua pele retirada. Tudo isto foi apresentado durante o programa (a gravação do processo de abate foi editada, sendo excluídos os gritos do animal)[1].
O consumo de carne é algo diário, comum e está intimamente ligado à cultura patriarcal vigente. Carnivorismo, muitas vezes, é visto como sinônimo de virilidade masculina. Carne é comida de homem, de “macho”! Segundo Carol J. Adams:
"A palavra “vegetal” funciona como sinônimo de passividade feminina porque as mulheres supostamente são como as plantas. Hegel deixa isso claro: “A diferença entre os homens e as mulheres é como a que existe entre os animais e as plantas. Os homens correspondem aos animais, ao passo que as mulheres correspondem às plantas porque seu desenvolvimento é mais plácido. Desse ponto de vista, tanto as mulheres quanto as plantas são consideradas menos desenvolvidas e menos evoluídas do que os homens e os animais. Consequentemente, elas podem comer plantas, já que ambas são plácidas; mas os homens ativos precisam de carne animal[2]."
Mas a principal semelhança entre a questão da carne e o feminismo não é a cultura a qual estão intimamente conectados. A intersecção mais gritante diz respeito ao referente ausente. Carol J Adams ensina:
"Por meio do retalhamento, os animais se tornam referentes ausentes. Os animais com nome e corpo tornam-se ausentes como animais para que a carne exista. A vida dos animais precede e possibilita a existência da carne. Se eles estiverem vivos, não poderão ser carne. Assim, o corpo morto substitui o animal vivo. Sem animais não haveria consumo de carne, mas eles estão ausentes do ato de comer carne, por terem sido transformados em comida[3]."
O retalhamento feito com os animais, de maneira costumeira, é utilizado para descrever situações de “retalhamento” feminino. É comum, durante nossa existência, que nos sintamos como “pedaços de carne”, expostas como a carne num açougue, é banal ouvirmos na rua - de um desconhecido – que ele deseja nos “comer todinhas”. Segundo Adams: “Carne se torna uma palavra para expressar a opressão das mulheres, usada igualmente pelo patriarcado e pelas feministas”.
Adams fez a seguinte descrição:
"Um ser sexual saudável posa ao lado do seu coquetel: usa apenas a peça de baixo do biquíni e deleita-se numa ampla poltrona com a cabeça repousando sedutoramente sobre um elegante forro de renda. A bebida convidativa, com uma fatia de limão, espera na mesa. Seus olhos estão fechados; sua expressão facial irradia prazer, relaxamento, sedução. Ela está tocando sua genitália num ato atento, masturbatório[4]."
A descrição acima é de uma foto de uma porca chamada Ursula Hamdress que foi veiculada pela revista Playboar: a Playboy do criador de porcos. As semelhanças com a descrição de uma possível foto veiculada numa revista masculina são gritantes. Mulheres e animais, dentro da cultura vigente, são vistos, por vezes, como seres disponíveis a atender aquele que é entendido como um ser no sentido mais amplo do termo: o homem.
Nós mulheres, e aqui falo especificamente de cada uma de nós: eu, Fernanda; Joana, Carolina, Maria, Lúcia, etc., somos tratadas como total abstração, somos generalizadas a partir de um conceito de mulher ideal difundido pelos séculos. Tornamo-nos o referente ausente nas relações de gênero.
Eu, Fernanda, – dentro de uma cultura patriarcal - deixo de existir como um ser autônomo e dona da minha vontade para que a “mulher Fernanda” possa existir. Para atender as expectativas da sociedade patriarcal tenho que casar, ter filhos, cuidar da minha família, mantê-la em ordem para que meu marido seja bem visto perante seus semelhantes, enfim, restringir-me ao espaço privado, onde é meu lugar
Nós mulheres, que estamos lutando contra esta cultura patriarcal arraigada na sociedade, que estamos invadindo os espaços públicos, muitas vezes sem pedir licença, tendo que nos auto-afirmar e levantando a bandeira do feminismo, somos, por boa parte da sociedade, vistas com tão maus olhos quanto Rodrigo Hilbert ao expor o abate de uma ovelha.
O que fazemos diariamente é o mesmo que ele fez em seu programa culinário. Escrachamos os referentes ausentes. Mostramos todos os dias que nós mulheres somos sim seres individuais e não uma coletividade programada para atender os anseios sociais. E Rodrigo Hilbert mostrou que para comermos um pedaço de carne é necessário, primeiramente, o abate.
Os referentes ausentes são ausentes, pois é mais fácil de lidar com a situação desta forma. É mais fácil comer a carne se não pensarmos que é o cadáver de um filhote de ovelha. E é mais fácil, enquanto sociedade, aceitar as opressões sofridas pelas mulheres se não conhecermos a individualidade, se não soubermos das vontades, dos sonhos, se a mulher não participar do espaço público e continuarmos acreditando que o sonho coletivo é a maternidade, o casamento e a manutenção da família.
Com este artigo não tenho como objetivo fazer apologia ao veganismo, ao vegetarianismo, nem mesmo ao feminismo. Como disse Sartre, estamos condenados à liberdade, e sermos simpáticos a qualquer um destes movimentos é opção de cada um.
Mas devemos arcar com as consequências das escolhas que fazemos. Se eu escolho ser carnívora, tenho que ter consciência de que o abate é a única forma possível para que a carne chegue à minha mesa. Se eu escolho ser machista, tenho que conviver com a ideia de que o meu posicionamento reforça as opressões de gênero e que posso ser corresponsável, ao menos moralmente, pela morte de mulheres, pelo estupro delas, por agressões sofridas, etc.
O que me alegra nesta situação é ver que ao enxergar o referente, que antes estava ausente, a sociedade se incomoda e se coloca contra a cultura vigente. Espero, sinceramente, que este incômodo se estenda também às questões de gênero e seja cada vez maior e mais constante.
Continuaremos a expor os referentes. Continuaremos a lutar diariamente. Continuaremos a ocupar os espaços públicos. Continuaremos a denunciar nossos algozes. Continuaremos a nos afirmar como seres individuais e autônomos. E espero que Rodrigo Hilbert continue a cozinhar. E se a sociedade não consegue lidar com a exposição dos referentes, antes ausentes, ela precisa mudar, e rápido!
Notas e Referências:
[1] Uma das notícias veiculadas está disponível em: http://f5.folha.uol.com.br/televisao/2016/03/10000921-rodrigo-hilbert-causa-polemica-apos-abater-filhote-de-ovelha-em-programa-culinario.shtml
[2] ADAMS, Carol J. A política sexual da carne: A relação entre o carnivorismo e a dominância masculina. São Paulo: Alaúde Editorial, 2012, p. 73.
[3] ADAMS, Carol J. A política sexual da carne: A relação entre o carnivorismo e a dominância masculina. São Paulo: Alaúde Editorial, 2012, p. 79.
[4] Ibidem, p. 77.
. . Fernanda Pacheco Amorim é formada em Direito, feminista e professora em construção. . . .
Imagem Ilustrativa do Post: Carne // Foto de: Patricio Bustos // Sem alterações
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