Réu preso intimado em duas oportunidades para interposição de Apelo criminal: a tempestividade recursal deve ser aferida a partir da primeira ou da segunda intimação?

16/03/2017

Por G. Couto de Novaes – 16/03/2017

INTRODUÇÃO

Eis mais uma singela reflexão nascida do contato com a prática da advocacia criminal. Caso onde réu (preso) fora intimado da sentença penal condenatória em duas oportunidades. Discute-se em torno da possível dúvida no atinente a qual das intimações deve ser considerada a fim de análise da tempestividade de interposição de recurso de Apelação. Nesses casos, que é mais compatível com os postulados constitucionais, devendo, pois, prevalecer: o in dubio pro societate? Ou o in dubio pro reo?

Na espécie, o réu restou intimando, pessoalmente, por duas vezes do advento da sentença penal condenatória: a primeira delas em 28 de julho de 2015 e a segunda em 25 de setembro daquele mesmo ano.

Assim sendo, diante do fato de o réu ter sido intimado em “duplicidade” - e das consequentes implicações de tal acontecimento num contexto de Estado Democrático de Direito -, e, notadamente por consequência da conjuntura concreta, a defesa técnica (contratada com o propósito de reverter a suposta intempestividade recursal) inferiu como mais benéfica ao réu a consideração da segunda intimação, para efeitos de início da contagem do prazo para interposição do recurso de Apelação Criminal.

Isto é, na esteira da leitura sustentada pela Defesa, tal prazo não havia precluído, dado que apenas tinha se iniciado (considerando-se a existência da segunda intimação) em 28/09/2015 e, nesse passo, o último dia para recorrer apenas dar-se-ia em 02/10/2015. Portanto, entendeu a defesa do réu como tempestiva a petição de interposição de recurso de apelação criminal protocolada no dia 30/09/2015.

Como se verá ao longo dessas modestas linhas, ao fim e ao cabo, o Juízo da causa passou a sustentar o mesmo entendimento dos advogados do réu, passando, pois, a considerar, em decisão felicíssima, frise-se, a segunda e última intimação como aquela hábil a projetar o dias a quo do prazo para interposição recursal.

2. O PRINCÍPIO DO FAVOR REI. E A NECESSIDADE DO PRONUNCIAMENTO JUDICIAL PENDER PARA A INTERPRETAÇÃO/SOLUÇÃO MAIS BENIGNA AO RÉU.

É cediço que o princípio do favor rei orienta as regras de interpretação, inclusive, e, sobretudo, devendo dita norma orientar a interpretação de acontecimentos endoprocessuais que tem o condão de redundar em decisões cruciais e sensíveis no bojo do processo penal.

Nessa senda, a doutrina ensina que o princípio favor rei determina que, na seara do processo penal, qualquer dúvida ou interpretação deve ser guiada na direção mais benéfica ao réu (CAPEZ, 2003, p. 39).

Trata-se, o aludido princípio basilar, de corolário do Estado Democrático de Direito, sendo considerado uma das formas mais eficazes de evitar a arbitrariedade do Estado. Assim, em situações como a que ora se discute, o princípio do favor rei constitui uma regra fundamental para a interpretação das normas processuais e do próprio escopo do ordenamento processual penal pátrio. Outra não é a lição de mais um abalizado magistério:

“É de recordar-se, outrossim, que o favor rei também funciona como princípio inspirador da interpretação, em razão de que a decisão judicial deverá pender para a solução mais benigna sempre que o julgador não lograr identificar, com certeza, a vontade da lei.” (CRUZ, 2002. P. 102).

Dessa maneira, no processo, diante da comprovada existência de duas comunicações (intimações) ao réu, deve-se considerar como válida - em homenagem ao ainda também chamado princípio do favor inocentiae, ou princípio favor libertatis, ou ainda princípio in dubio pro reo -, deve-se considerar válida aquela intimação que se apresenta mais favorável a ele – o réu, indubitavelmente, a parte vulnerável no seio do processo penal, diante da força persecutória e punitiva do Estado.

Nesse sentir, para os propósitos de decisões em consonância com a Constituição Federal, e com os postulados garantistas e humanistas do sistema penal acusatório, nada importa saber por quais motivos ou modos houve a duplicidade de intimações. O que se afigura, imperativo, ao revés, é considerar como válida a intimação que produza efeitos mais benéficos ao réu.

E, in casu, é de clareza solar que considerar a segunda intimação como sendo a válida significa possibilitar ao sujeito passivo processual a manutenção da presunção do seu estado de inocência, permitindo-lhe recorrer, salvaguardando-se, assim, o sagrado acesso ao Segundo Grau de Jurisdição.

Pois, diversamente, se descartada a segunda intimação e considerada a primeira como a válida, fulminar-se-ia todo o sentido do sistema processual penal Acusatório Democrático e de Direito. E por que? Porque se passaria a esquecer que no processo penal o réu é sempre a parte hipossuficiente. Porquanto, significaria decidir “na dúvida, pelo Estado”, opção que se revelaria lamentável e traumática.

E aí é de sublinhar-se que quando se decide “na dúvida pelo Estado Acusador”, desrespeita-se, o princípio do favor rei, como visto supra, um dos pilares mais importantes do Sistema Penal Democrático e Civilizado.

E tal decisão, certamente, estaria promovendo incoerência e injustiça, levantando, ainda que involuntariamente, a medieval bandeira do in dúbio pro societatis, para não dizer corroborando, ainda que não deliberadamente, com a atual moda nacional de antecipação de cumprimento de pena!

Assim é que nessa conjuntura há de predominar a presunção de inocência do réu, significando aqui que, diante da intimação de sentença penal condenatória realizada em duas ocasiões, andará melhor a jurisdição quando considerar, sim, a segunda (derradeira, no caso!) intimação como a válida e apta para determinar o dias a quo da contagem do prazo recursal de apelação.

Ocorreu que, uma vez provocado, o Douto Juízo da Comarca de Maracás/Bahia, onde tramitou o processo na etapa de primeira instância, considerou tempestiva a petição de interposição de apelação criminal protocolada em 30/09/2015. E assim, assegurou- se que o réu gozasse da sua garantia constitucional de acessar a fase recursal de segundo grau. Respeitou-se o princípio do favor rei, e ademais o princípio da presunção da não culpabilidade. Vejamos os termos do judicioso pronunciamento, in verbis:

“Compulsando os autos, percebo que o apelante fora intimado da sentença em duas oportunidades, a primeira delas em 28 de julho de 2015 e a segunda em 25 de setembro de 2015, consoante se extrai das certidões de fls. 240, verso, e 235, anverso. O recurso de apelação de fls. 224/225, por sua vez, foi aviado em 30 de setembro de 2015. A despeito da certidão de fl. 242, entendo que, na hipótese, há dúvida quanto à tempestividade do apelo e que esta deve ser dirimida em favor de quem interpôs o recurso, em homenagem aos princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. Assim, presentes os demais pressupostos de admissibilidade recursal, RECEBO o recurso de apelação de fl. 224/225. Outrossim, tendo em vista que o réu interpôs recurso de Apelação com base no art. 600, § 4°, do CPP, que lhe faculta apresentar suas razões na Instância Superior, determino a remessa dos autos, in continenti, ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado da Bahia com as cautelas de praxe e homenagens de estilo. Maracás, 12 de novembro de 2015. ANDREA NEVES CERQUEIRA Juíza de Direito”.

Certamente o Egrégio Juízo reconheceu, para fazer justiça, que a presunção do estado de inocência do réu havia, in casu, de prevalecer, pois interpretação diversa poderia ter o condão de “apressar” o direito de punir do Estado.

Na dúvida, atentou-se para o que diz o Arcabouço Constitucional pátrio, no sentido de que devem prevalecer incólumes as garantias fundamentais do réu, mesmo quando o suposto delito praticado e processado é compreendido como crime grave.

3. CONCLUSÕES

Em concreto, ponderou-se não se poder simplesmente ignorar o indigitado fenômeno endoprocessual (a existência da segunda intimação), afinal, ele ocorreu “no mundo do processo”, e, teleologicamente considerando-se tal acontecimento, de igual sorte não se poderá ignorar os efeitos dele advindos, qual seja, a observância da incidência inevitável do multicitado princípio favor rei.

Afigurou-se, pois, de clareza solar que o Sistema Processual Acusatório não pode prescindir do pleno respeito ao princípio do favor rei, sob pena de produzir grave incoerência no ordenamento da justiça criminal, capaz, inclusive, frise-se, de fazer retornar o sistema às amarguras inquisitórias de outrora.

Noutro giro, como bem apontou a magistrada dos fólios em comento, decisão que acaso considerasse a primeira intimação feita ao réu (justamente aquela que o prejudica!) como a válida, no caso concreto, desprestigiaria e desautorizaria a uma só vez o Devido Processo legal (art. 5º, LIV, CF), a Ampla Defesa e o Contraditório (art. 5º, LV, CF) e o Princípio da Não Culpabilidade (art. 5º, LVII, CF).

Eis que, felizmente, “ainda há juízes em Berlim!”, e ao admitir-se a incidência e relevância de princípios reitores como do princípio favor rei, estamos construindo a confirmação paulatina de que já nos afastamos daqueles tempos (nada saudosos!), em que o réu não era sujeito, mas, contrário senso, objeto [no] e [do] processo. Hoje, graças a Deus e a luta de muitos homens e mulheres corajosos no cumprimento da Constituição Cidadã e das leis, o réu é sujeito no processo penal pátrio.


Notas e Referências:

Ação Penal – Procedimento Ordinário – Latrocínio nº 0000479-95.2014.8.05.0160, da Vara Criminal da Comarca de Maracás/Bahia.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.

BRASIL. Decreto-Lei nº 3.689, de 03 de Outubro de 1941. Institui o código de processo

penal. Rio de Janeiro, DF, 03 de Outubro de 1941. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689Compilado.htm > Acesso em: 10/10/2014.

CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 10 ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Saraiva, 2003.

CRUZ, Rogério Schiett M. Garantias Processuais nos Recursos Criminais. São Paulo: Atlas, 2002.


G. Couto de Novaes. . G. Couto de Novaes é Advogado, sócio no Pereira & Couto Advocacia, em Salvador. Bacharel em Direito pela UNIFACS. hcoutodenovaes@gmail.com . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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