Por Débora Costa Ferreira – 23/05/2016
Lendo a sensível análise do Thiago Guimarães (link) sobre a incompletude na linguagem nas relações humanas, arrebatou-me a percepção do inexorável efeito que esse fato traz para o mundo do Direito. Sei que não é tema novo na discussão da filosofia jurídica, por isso apoio-me nos ombros dos gigantes[1] que por ora conheço pra resenhar uma humilde reflexão.
Hebert L. A. Hart, em sua obra escrita em 1961[2], discorrendo sobre a textura aberta das normas jurídicas, chegou a uma das mais brilhantes compreensões sobre o tema (ainda mais quando se nota que advém de um positivista), diante de tamanha apreensão ontológica. Segundo ele, a fluidez da linguagem decorre senão da nossa natureza humana na sua jornada de trágicas escolhas diárias. Em suas palavras:
“a necessidade dessa escolha nos é imposta porque somos homens e não deuses. É típico da conduta humana que labutemos com duas desvantagens interligadas sempre que procuremos regulamentar, antecipadamente e sem ambiguidade alguma esfera de comportamento por meio de um padrão geral que possa ser usado sem orientação oficial posterior em ocasiões específicas”[3] (p. 166).
Os economistas explicariam tudo com os conceitos de trade-off e custo de oportunidade, mas é Luhmann[4] que arremata toda essa imprecisão ao constatar que vivemos em um mundo contingente e complexo, no qual o Direito é um acalanto para toda essa instabilidade, engendrado por meio da generalização de expectativas recíprocas, objetivando-se o alcance de bons resultados seletivos e a estabilidade social.
De todo modo, como ficou bem pontuado até aqui, essas funções estabilizadoras do Direito têm limites na medida da sua abertura semântica, a qual impede que os legisladores estruturem concepções de norma tão detalhadas a ponto de cercear qualquer margem de escolha judicial no futuro. Aliás, se não fosse assim, o legislador não precisaria estar se dando ao trabalho de cumprir tal papel social, uma vez que poderia estar sendo muito mais bem remunerado na função de oráculo.
Esboçado esse quadro, conclui-se: foi dada asa à cobra. A grande frustração dos positivistas foi a sua incapacidade de conter a discricionariedade judicial dentro de certas raias jurídico-positivas. A moldura da norma de Kelsen era uma caixinha bem flexível, na qual o juiz podia esticar suas bordas com saltos twist-carpados hermenêuticos, sob o manto dos postulados lógico-científicos de Von Wright[5]. Mas note-se: qualquer semelhança com os dias de hoje é mera coincidência...
Foi preciso apelar para valores morais para disciplinar o juiz. Mas, me parece que o juiz Hércules de Dworkin[6] – nada presunçoso e arrogante, para não falar o contrário – não estaria muito disposto a receber ordens alheias. Até porque quem mais poderia alcançar tão bem o espírito moral do povo para aplicar o Direito com integridade senão ele próprio?! Quem mais seria capaz de escrever um novo capítulo do “romance em cadeia” tão bem escrito quanto ele, que tinha completo entendimento da coerência que deveria manter com o passado histórico jurídico daquela sociedade?! O legislador? Esse legislador que nem consegue prever o futuro ou regulamentar satisfatoriamente o que sua população clama?! Impossível. Melhor deixar a cargo das Cortes a função de tomar todas as decisões substanciais da nação, para proteger as minorias da força esmagadora das maiorias!
Sim. O ativismo é bom até o ponto em que me favorece, até o ponto em que eu concordo com suas decisões. Já que a textura das normas é aberta, melhor aplicar a técnica do in dubio pro ego. E quando essa cobra voadora começar a ameaçar suas preferências axiológicas? Não adianta se filiar aos céticos e profetizar que todo sistema jurídico não tem jeito mesmo; nem adianta voltar à lógica cartesiana dos positivistas extremos[7] para tentar racionalizar a decisão judicial a ponto de resumi-la a silogismos.
Já chegou ao ponto em que o juiz escolhe até sobre o silêncio do legislador, se ele não falou por querer – o “silêncio eloquente” – ou se falou sem querer – a “lacuna não intencional”. Assim, os cânones da interpretação não são capazes de eliminar essas incertezas, podendo, por vezes, agravá-las.
Mas a existência de escolhas trágicas não implica em um fim igualmente trágico. É justamente por meio livre arbítrio que nos foi dado pelos deuses que o homem é capaz de traçar suas vitórias. O processo de tentativa e erro interpretativo em uma sociedade plural decorre não só da última palavra do juiz, mas da construção social dos significados até que eles se estabilizem, fruto de um consenso temporário, que logo se desfaz novamente, e assim por diante. Daí a importância dos operadores do Direito nessa destruição criativa.
Mas que ingratidão dos juristas maldizer a abertura da linguagem?! É justamente por intermédio de seus artifícios quase esotéricos que eles conseguem encantar o detentor do poder de decisão, dentro de um hipnótico processo dialético, que garante uma reserva de mercado especialmente vantajosa e um poder de influência considerável sobre os rumos sociais. A infinidade de problemas e possibilidades geradas pela relatividade linguística é o que permite que os filósofos e doutrinadores do Direito divaguem à vontade sobre teorias jurídicas, que façam fluir a envolvente e admirável arte das palavras.
Como Fabiano[8] de Vidas Secas[9] mesmo compreendeu, sua incapacidade de manipular a dubiedade e a riqueza da linguagem marginalizava-o da humanidade e aproximava-o dos bichos. Baleia[10] também não conseguia convencer ninguém que a sua interpretação era a correta.
Notas e Referências:
[1] Expressão cunhada por Albert Einstein: “se vi mais longe foi por estar de pé sobre ombros de gigantes”. - If I have seen further it is by standing on the shoulders of Giants.
- Carta de Newton para Robert Hooke, 5 de Fevereiro de 1676; Inspirada numa famosa metáfora (em Latin: nanos Gigantum humeris insidentes) atribuída por John de Salisbury à Bernard de Chartres
[2] HART, H. L. A. O conceito de Direito. Tradução de Antônio de Oliveira Sette-Câmara. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.
[3] Idem, p. 166.
[4] LUHMANN, Nicklas. Sociologia do Direito I. Tradução de Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983.
[5] VON WRIGHT, Georg H. Deontic Logic, 1951.
[6] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos à sério. Tradução Nelson Boeira. 3a ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.
[7] Hart percebe que a história da teoria do direito é, sob esse aspecto, curiosa, pois costuma ou ignorar ou exagerar a indeterminação das normas jurídicas.
[8] Fabiano é o personagem principal de obra Vidas Secas. Fabiano é um homem rude, típico vaqueiro do sertão nordestino. Sem ter frequentado a escola, não é um homem com o dom das palavras, e chega a ver a si próprio como um animal às vezes. Empregado em uma fazenda, pensa na brutalidade com que seu patrão o trata. Fabiano admira o dom que algumas pessoas possuem com a palavra, mas assim como as palavras e as ideias o seduziam, também cansavam-no.
[9] RAMOS, Graciliano Vidas Secas. Record, 74ª edição, 1998.
[10] Baleia era a cadela de estimação de Fabiano, na referida obra.
. Débora Costa Ferreira possui graduação em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (2014) e graduação em Ciências Econômicas pela Universidade de Brasília (2014). Tem especialização na área de Direito, com ênfase em Direito Constitucional (2015). Mestrado em Direito Constitucional em andamento. .
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