REFLEXÕES SOBRE A (RE)FORMA OU (DE)FORMAÇÃO TRIBUTÁRIA: ONDE ESTAMOS E PARA ONDE VAMOS  

13/07/2021

É quase unânime o entendimento de que o sistema tributário brasileiro possui grande complexidade e, em razão disso, necessita de ser reformado. No fundo da tese, há razões de ordem política e econômica, no sentido de que o desarranjo normativo seja uma das principais causas impeditivas do desenvolvimento dos setores produtivos e, consequentemente, da criação de empregos.

Grosso modo, não há como discordar do raciocínio, uma vez que, certamente, um agregado de leis confusas, incoerentes e sem um propósito específico dificulta o legítimo exercício das liberdades individuais. Onde não há limites muito claros, obviamente, torna-se mais temerário a tomada de decisões, porquanto mais arriscadas e imprevisíveis. Sem dúvida alguma, o ambiente dos negócios, intrinsicamente perigoso por si só, fica ainda mais ameaçador.

Ocorre, porém, tenho insistido que os fundamentos sob os quais se apoiam esse esquema de raciocínio ou são superficiais ou, ao menos, epistemologicamente, inconsistentes. Mais do que respostas, exponho fatos e proponho perguntas.

Do ponto de vista histórico, pode-se fazer um recorte sobre a matriz do sistema tributário brasileiro dividindo-a entre 3 grandes períodos: 1822-1934, quando preponderaram os tributos sobre o comércio exterior; 1934-EC n.18/1965, período em que os tributos sobre o consumo passaram a ter destaque, inclusive, dotando os municípios de competência tributária (impostos sobre venda e consignações, por exemplo); e 1966-até os dias atuais, cujo modelo se mantém, com algumas alterações, a mesma estrutura daquela projetada pelo CTN (Lei 5.172/66).

A partir da Constituição de 1988 em diante, o que se viu foi uma profusão de Emendas Constitucionais, muitas na esfera tributária, especialmente no que diz respeito a particularidade das contribuições sociais, sendo a EC n.20/1998 uma das mais relevantes. Sobre o tema da PIS/COFINS, concluí que a mencionada alteração de pouco ou nada surtiu os efeitos almejados de criar um ambiente menos conflituoso, recordando não só que a Lei nº 10.833/03 fora modificada 24 vezes como a proliferação de teses jurídicas litigiosas (ROCHA, 2021a[1]).

Feito esse pequeno escorço da memória legislativa, formulo uma primeira indagação, direcionada aos poderes legiferantes, se a modificação, supressão ou criação de mais textos de lei serão capazes, por si só, provocar uma “reforma tributária”.

Na ponta da aplicação do Direito, passo a apresentar o dramático quadro da litigiosidade nacional, especialmente se comparado com os países que compõem a OCDE e a América Latina.

O relatório anual de fiscalização da Receita Federal do Brasil – RFB de 2019[2] evidencia o reduzido nível de conformidade fiscal, uma vez que apenas 1,71% dos lançamentos foram pagos ou parcelados de imediato, sendo que 74,75% foram impugnados e 22,26% enviados para cobrança administrativa ou judicial. Assim, pode-se dizer que toda a discussão e etapas se repetirão perante o Judiciário.

Segundo dados de 2020 do CNJ[3], o tema direito tributário se destaca entre os mais demandados, sendo apontado como um dos principais fatores da morosidade de todo o Judiciário. Por exemplo, entre os 5 assuntos com maior recorrência, 3 deles são classificações e subclassificações de matérias tributárias, sendo que os processos de execução fiscal representam 39% dos casos pendentes e 70% das execuções pendentes no Poder Judiciário. Para piorar, a taxa de congestionamento, indicador que afere percentual de processos paralisados em relação ao total tramitado no período de um ano, evidencia que as execuções fiscais alcançam um percentual de 86,9%.

Para efeitos de comparação, a OCDE (2017[4]) apresentou um estudo sobre as administrações tributárias de 55 países. Chamou atenção o fato de que 87% das administrações processam revisões dos lançamentos, porém, 2/3 destas exigem que o contribuinte apele à instância administrativa antes de demandar em um órgão externo. Ressaltou-se que as administrações com maiores poderes executórios para cobrança administrativa (powers to assist enforcement of debt), sem a necessidade de intervenção judicial, demonstraram maior eficiência.

Um estudo patrocinado pelo Banco Mundial (BM) aponta, igualmente, um percentual alto entre as jurisdições da América Latina que pressupõem o esgotamento da instância administrativa como requisito de procedibilidade do questionamento judicial. Nesse sentido, alerta que, nas localidades onde o Judiciário possui uma estrutura burocrática e com propensão a decisões heterogêneas, sugerir-se-ia que a implementação de mecanismos administrativos para aumentar precisão, consistência, previsibilidade e efetividade seria vital[5].

No Brasil, além da revisão administrativa no âmbito do próprio órgão responsável pelo lançamento, ainda conta com uma instância independente e de composição paritária. Termos globais, a premissa seria a de permitir que os contribuintes tivessem um processo mais justo, eficiente e econômico, como forma de aumentar o grau de aderência às decisões, reduzindo, assim, os litígios judiciais.

Entretanto, os números indicam que o contencioso administrativo se tornou mera etapa do litígio tributário, uma vez que quase a totalidade dos casos das improcedências dos recursos se convertem em ações judiciais e/ou executivos fiscais, não havendo satisfação da obrigação. Não bastasse isso, grande parte desses processos são levados até as instâncias extraordinárias. Um dado empírico são as estatísticas do STF[6] que registraram impressionantes 18.209 decisões colegiadas no ano de 2020, indicando, ainda, o recebimento de novos 7.301 processos de matéria tributária, sendo que este ramo representa 10,41% do seu acervo total.

Fazendo um comparativo com os EUA – país que serve de “espelho” para muitos brasileiros em matéria de tributação (ROCHA, 2021b[7]) –, observa-se que os altos índices de resolução das controvérsias pela via administrativa se devem aos amplos poderes de investigação e execução concedidos ao Fisco. A contenção também se dá na via judicial, pressupondo-se, em regra, o esgotamento da via administrativa, o depósito prévio (no caso das District Courts) e a punição das chamadas frívolous position (opiniões frívolas) (GODOY, 2004[8]). Outra peculiaridade é que a Supreme Court julga em média apenas 80 casos por ano, sendo poucos deles em matéria tributária, o que se explica tanto pelo reduzido número de cláusulas constitucionais afins quanto pela preservação da estabilidade (GASSEN e VALADÃO, 2020[9]).

Diante desse cenário, fica evidente que as disputas tributárias brasileiras apresentam grandes distorções quando defrontadas com o resto do mundo. Em face de suas peculiaridades, esta “jabuticaba” deve ser deglutida sob diversas camadas.

Pragmaticamente falando, os contribuintes devem pôr em dúvida se as aventuras jurídicas, veiculadas na forma dos famosos “kits de teses”, trazem um real benefício econômico. Considerando os altos custos evolvendo uma ação judicial, é eficiente a alocação de recursos e de tempo? Considerando o perfil da jurisprudência lotérica, vale a pena instaurar uma concorrência na esfera judicial, correndo o risco de tornar a intepretação e aplicação da legislação ainda mais complexa do ponto de vista da sua operacionalidade?

Este mesmo raciocínio se estende à Administração Fazendária, sendo necessário perquirir se a contenciosidade não estaria indicando um “erro de cálculo” na intepretação conferida à legislação da sua parte. Considerando os custos envolvidos empregados para cada ato administrativo, não seria mais eficiente uma abordagem mais preditiva e centrada em mecanismos que reduzam os custos de compliance?

Do ponto de vista da teoria do direito, indago se em tempos de modernidade líquida, vale a pena continuar apostando em um paradigma fundado em abstrações, conceitos fechados e estanques. Em um mundo digitalizado, onde a Inteligência Artificial – IA torna as operações cada vez mais velozes, cuja dinamicidade tende a se multiplicar exponencialmente com a incorporação da Inteligência das Coisas (Intelligence of Things – IoT), obrigando constantes remodelagens no modelo de negócios, faz sentido manter a crença na suficiência da lei, como se ela pudesse abarcar de antemão todas as situações possíveis?

Em razão desse estado de coisas, venho assinalando que a complexidade do sistema tributário não tem uma causa única e, portanto, não pode ser solucionada pelos meios ortodoxos, eis que, também, se mostraram ineficazes. Noutra oportunidade, realcei os componentes morais e éticos de fundo que precisam primeiro ser compreendidos e, após, repensados (ROCHA, 2021c[10]). Uma mudança de ordem cultural não vem da noite para o dia. Há intricados fatores de ordem antropológica, sociológica e econômica que se entrecruzam.  Parcela da problemática se deve em razão do baixo nível de consciência histórica, no sentido de incompreensão acerca da alteração paradigmática deflagrada pelo fenômeno da constitucionalização do Direito. Nesse sentido, sustento que as teorias vigentes se mantêm presas em estruturas anacrônicas, isto é, descontextualizadas com o seu tempo histórico, de maneira que o referido déficit principiológico limita suas possibilidades práticas (ROCHA, 2021d[11]).

Por tudo isso, não dá para tratar de reforma tributária pela lógica simplista da alteração da legislação, e nem pela mera importação de modelos tributários estrangeiros prontos, sem antes entender a diferença entre as realidades em jogo. A complexidade impõe que sejam revisitados conceitos, perspectivas e pontos de vista, estruturas e relações. Todo o entrelaçamento dos elementos do tecido social, bem assim dos agentes que lidam com o “objeto tributário”, merece uma atenção especial e profunda reflexão, sob pena de a (re)forma não alcançar um ideal de (trans)formação, mas de (de)formação.

 

Notas e Referências

[1] Da materialidade da PIS/COFINS no contexto histórico e jurisprudencial: o que subjaz?Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26n. 641725 jan. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/87678.

[2] Relatório Anual da Fiscalização. Disponível em: http://receita.economia.gov.br/dados/resultados/fiscalizacao/arquivos-e-imagens/plano-anual-de-fiscalizacao-resultados-de-2019-e-plano-para-2020.pdf.

[3] Justiça em Números 2020. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/08/WEB-V3-Justi%C3%A7a-em-N%C3%BAmeros-2020-atualizado-em-25-08-2020.pdf.

[4]OECD iLibrary | Tax Administration 2017: Comparative Information on OECD and Other Advanced and Emerging Economies (oecd-ilibrary.org)

[5] The Administrative Review Process for Tax Disputes : Tax Objections and Appeals in Latin America and the Caribbean - A Toolkit (English). Washington, D.C. : World Bank Group. Disponível em: http://documents.worldbank.org/curated/en/197591554404274707/The-Administrative-Review-Process-for-Tax-Disputes-Tax-Objections-and-Appeals-in-Latin-America-and-the-Caribbean-A-Toolkit.

[6] Disponível em: https://portal.stf.jus.br/estatistica/.

[7] O caso Mcculloch v. Maryland e o caso do ICMS na base de cálculo da PIS/COFINS (RE 574.706/PR): o que o Chief Justice Marshall diria?. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/o-caso-mcculloch-v-maryland-e-o-caso-do-icms-na-base-de-calculo-da-pis-cofins-re-574-706-pr-o-que-o-chief-justice-marshall-diria.

[8] GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito Tributário nos Estados Unidos. São Paulo: Lex Editora, 2004, p.47-69.

[9] VALADÃO, Marcos Aurélio Pereira; GASSEN, Valcir. Tributação nos Estados Unidos e no Brasil: estudo comparativo da matriz tributária. São Paulo: Almedina, 2020, p.50.

[10]Precisamos falar sobre simplificação tributária: a saga do gato e o rato.  https://www.conjur.com.br/2021-jun-07/rocha-precisamos-falar-simplificacao-tributaria

[11] (Auto-)nomia do direito e linguagem: uma resposta hermenêutica para a conexão entre direito tributário e contabilidade. Revista do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, v. 33, n. 1, p. 116-129, 30 abr. 2021.

 

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