Reclamação constitucional e efeito vinculante da ratio decidendi das decisões proferidas em controle concentrado de constitucionalidade: uma interpretação a partir dos arts. 927, I e 988, III, §4º, do Novo Código de Processo Civil - Por Fernando Filgueira

05/03/2017

Discussão antiga diz respeito à possibilidade de utilização da reclamação constitucional nas hipóteses em que, a despeito de não ter sido desrespeitado o próprio dispositivo da decisão proferida (coisa julgada material) em controle concentrado de constitucionalidade - com eficácia erga omnes e efeito vinculante, portanto - restem inobservados os fundamentos daquela decisão.

O tema foi abordado pela doutrina que, de forma majoritária, sustentou a possibilidade de que a ratio decidendi, e não apenas a coisa julgada material, tivesse efeito vinculante nas ações de controle concentrado de constitucionalidade, teoria intitulada de transcendência dos fundamentos determinantes.

A teoria, todavia, não prosperou na jurisprudência do STF, v.g., Rcl 3.014; Rcl 11477[1].

Pois bem, com o advento da Lei n. 13.105/15, Novo Código de Processo Civil, o instituto da reclamação passou a ser regulado pelo códex, introduzindo-se nova sistemática que, a nosso juízo, ampliou o alcance da ação ao prever, como hipótese de cabimento, a aplicação indevida da “tese jurídica” oriunda das decisões do STF em sede de controle concentrado de constitucionalidade. É o que se extrai do art. 988, III, §4:

“Art. 988. Caberá reclamação da parte interessada ou do Ministério Público para:

...

III – garantir a observância de decisão do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;

...

§ 4º As hipóteses dos incisos III e IV compreendem a aplicação indevida da tese jurídica e sua não aplicação aos casos que a ela correspondam”.

O NCPC, destarte, é expresso ao afirmar como hipótese de cabimento da reclamação não apenas o desrespeito ao dispositivo da decisão proferida em sede de controle concentrado (art. 988, inciso III). O NCPC vai além e inclui, dentre as hipóteses de cabimento da reclamação constitucional, a não aplicação da “tese jurídica” firmada no precedente vinculante aos casos cujo processo decisório exija a observância da mesma ratio decidendi.

Esta compreensão é esposada por Cássio Scarpinella Bueno[2], in verbis:

“O art. 988 trata das hipóteses de cabimento, que são mais amplas que as previstas na Lei n. 8.038/90, justificando-se diante do sistema proposto pelo novo CPC, inclusive no que diz respeito ao cumprimento da 'teoria dos precedentes à brasileira', com a importante diretriz veiculada no § 4º do dispositivo aqui anotado, no sentido de as hipóteses relacionadas ao controle concentrado de constitucionalidade (inciso III), aos enunciados de Súmulas vinculantes e ao que for julgado em sede de casos repetitivos (inciso IV) compreenderem não só a aplicação indevida da tese jurídica, mas também a sua não aplicação aos casos que a ela correspondam. O § 1º do art. 988 evidencia que a reclamação pode ser proposta perante qualquer Tribunal (não apenas nos Tribunais Superiores, objeto de disciplina da precitada Lei n. 8.038/90), sendo sua competência a do órgão cuja decisão justifica a medida.”. 

A conclusão acima foi adotada também pelo Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC), conforme se infere do enunciado 168:

Enunciado n. º 168 do FPPC: Os fundamentos determinantes do julgamento de ação de controle concentrado de constitucionalidade realizado pelo STF caracterizam a ratio decidendi do precedente e possuem efeito vinculante para todos os órgãos jurisdicionais. 

Na mesma linha, não se pode perder de vista o disposto no artigo 927, I, do NCPC, que previu que os juízes e tribunais observarão as decisões proferidas pelo STF em controle concentrado de constitucionalidade.

Sobre o dispositivo referido acima leciona José Miguel Garcia Medina[3] que o artigo 927 alcança a ratio decidendi dos precedentes judiciais, não se limitando à coisa julgada material:

Ao dispor sobre a produção jurisprudencial a ser observada pelos juízes e pelos tribunais, o CPC/2015 arrolou, no artigo 927, caput, figuras bastante díspares entre si. Há algo que as une, a nosso ver, e que consiste naquilo que, realmente, deve ser “observado” pelo julgador, ao proferir a decisão em respeito a precedente, súmula e jurisprudência dominante, e que (...) reunimos sob a expressão ratio decidendi, que vem a ser, como afirmamos em outro estudo, os argumentos principais sem os quais a decisão não teria o mesmo resultado, ou seja, os argumentos que podem ser considerados imprescindíveis. 

Quer nos parecer, assim, que a leitura que o STF fazia dos dispositivos constitucional e legal[4] que tratam do efeito vinculante deverá ser superada em futuro próximo.

Com efeito, considerando-se que o instituto da decisão judicial e seus contornos (efeito vinculante, v.g.) são matérias que o legislador constituinte remeteu para definição pela legislação infraconstitucional, as alterações promovidas pelo NCPC deverão repercutir no entendimento anteriormente sedimentado no STF.

De fato, conquanto os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença, não façam coisa julgada (art. 504, I, NPC), produzem efeito vinculante quando constituírem fundamento central e imprescindível da decisão proferida em controle concentrado de constitucionalidade.

Para finalizar e, corroborando o quanto acima dito, destaca-se recente manifestação do Ministro Roberto Barroso, no julgamento das ADIs 4.697 e 4.762, ocasião em que a teoria da transcendência dos fundamentos determinantes voltou a ser debatida pela Corte Suprema, agora já sob a égide do NCPC:

Vossa Excelência [ministro Gilmar] foi um dos que defendeu a eficácia transcendente. O Supremo chegou a aderir essa posição, depois retrocedeu com relação a essa posição, mas, agora, o novo Código recoloca a discussão, porque o artigo 988 diz que cabe reclamação e uma das hipóteses é a de acórdãos proferidos em ação direta de inconstitucionalidade, aí vem, Ministro Gilmar, o parágrafo quarto e diz que as hipóteses dos incisos tal e tal, de cabimento de reclamação pela não-observância da decisão em ADI compreende a aplicação indevida da tese jurídica e sua não-aplicação às hipóteses que a correspondam, portanto, o que produz a vinculação é a tese jurídica ... 

Parafraseando o Ministro Gilmar Mendes, a Suprema Corte tem um encontro marcado com o tema, que se espera seja abordado superando-se a jurisprudência anterior, haja vista a nova disciplina da ação reclamatória no NCPC.

Com a palavra, a Suprema Corte.


Notas e Referências:

[1] RECLAMAÇÃO. A reclamação pressupõe a usurpação da competência do Supremo ou o desrespeito a decisão proferida. Descabe emprestar-lhe contornos próprios ao incidente de uniformização, o que ocorreria caso admitida a teoria da transcendência dos motivos determinantes. Precedentes: Reclamação nº 3.014/SP, Pleno, relator ministro Ayres Britto, acórdão publicado no Diário da Justiça eletrônico de 21 de maio de 2010. (Rcl 11477 AgR, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 29/05/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-171 DIVULG 29-08-2012 PUBLIC 30-08-2012)

[2] Novo Código de Processo Civil anotado. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 634

[3] Novo Código de Processo Civil Comentado com remissões e notas comparativas ao CPC/1973. São Paulo: RT, 2016, p. 1.325.

[4] CF/88, art. 102, § 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

Lei 9.868/99, art. 28, Parágrafo único. A declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal.


 

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