Por Paulo Incott – 23/08/2017
Estudos de iniciação científica em geral pautam-se pela estratégia de tentar fornecer os instrumentos práticos necessários para que jovens pesquisadores possam produzir conhecimento científico calcado em métodos razoavelmente universais, permitindo um determinado grau de consenso sobre juízos de certeza, falseabilidade e idoneidade das conclusões adquiridas.
Ocorre, porém, que partindo da tentativa de prover a estes jovens estudantes um instrumental pronto, essas estratégias tendem a perpetuar pesquisas e conclusões que geram resultados muitos parecidos ou até mesmo flagrantemente repetitivos, maquiados em alguns dos casos por uma linguagem rebuscada ou por leves alterações conceituais ou de objeto imediato de pesquisa.
A consequência indesejável dessa técnica é que recursos valiosos são desperdiçados. Por “recursos” devem ser entendidos não apenas os relacionados a questões monetárias, mas também tempo, potencial intelectual, condições prévias raras para dedicação acadêmica, etc.
Emerge dessa forma a necessidade de novos métodos de iniciação, pautando-se na seguinte hipótese: a estratégia seria mais eficaz se fornecesse aos estudantes não apenas o ferramental prático de pesquisa, mas investindo tempo necessário para que o aluno adquirisse um conhecimento razoável sobre alguns pressupostos da produção científica, como a compreensão do desenvolvimento histórico de elementos como “razão”, “empiria”, “lógica”, “relações causais”, “complexidade”, “tempo”, aspectos fundamentais sobre a linguagem, o uso social das ciências, entre outros.
É de notar, já de início, que muitos desses elementos, ainda que oriundos da produção de conhecimento interdisciplinar, poderiam ser acoplados como temas de filosofia. Assim, a proposta seria um núcleo de iniciação científica calcado em reflexões a partir da filosofia do conhecimento.
Argumentando a favor da relevância desta proposta, avalie-se um exemplo de conceitos que, se bem compreendidos, podem permitir ao aluno um avanço mais consistente em sua capacidade de produzir conhecimento útil, bem sedimentado e progressivo: as noções de “razão” e “empiria”.
Não é preciso muito esforço para perceber a predileção pelo uso destas expressões em textos acadêmicos. Quer seja pela necessidade de conferir aos escritos um suposto status científico, quer por outros motivos, não raro encontram-se estes significantes sendo utilizados de forma desconectada de seu contexto histórico.
Como se poderia garantir aos estudantes a compreensão suficiente e necessária para que trabalhassem a partir destes conceitos em seu grau de percepção contemporânea?
Partindo das lições de autores fundamentais, é possível afirmar que, atualmente, a discussão em torno das formas de obtenção de conhecimento nos limites da certeza orbita a seguinte definição elementar: os seres humanos possuem estruturas inatas de compreensão, umbilicalmente ligadas a capacidade linguística (CHOMSKY), aliadas a uma bagagem aparentemente biológica de elevados graus de síntese (ELIAS), não exatamente categorias apriorísticas de percepção (KANT), mas uma “competência linguística” que serve de pressuposto para a aprendizagem, complementada pelo que é adquirido através da experiência (empiricamente). O resultado desses processos forma um patrimônio cultural, acumulado e transmitido através das gerações em grau cada vez mais universalizante, à medida que a humanidade vai adquirindo capacidades de interação real e simbólica mais complexos e difusos (MERTON, BOURDIEU).
Obviamente esta é uma descrição extremamente limitada dos aspectos ali descritos. Várias colocações adicionais precisariam ser feitas, colocando a questão da razão como instrumentos que transpassa, se alimenta e devolve influências aos elementos citados. Ainda assim, pretendeu-se com a delineação exposta apenas destacar que, mesmo um entendimento limitado desta estrutura servirá para garantir um ponto de partida para produção científica, assim como para compreensão de suas limitações e da necessidade de métodos claros para sua produção efetiva. Esse “pensar sobre o pensar” parece ser um pressuposto inderrogável para produção teórica de qualidade em ciências sociais.
Ao complementar esses conceitos, agregando importante lições sobre o uso social das ciências e sobre um mínimo ético para produção de conhecimento, torna-se possível a formação de pesquisadores capacitados a produzir pesquisas de elevado valor qualitativo e voltados a busca de objetivos genuinamente funcionais à humanidade.
Se tentarmos agora aplicar esses conceitos para o estudo de um objeto complexo, veremos o quanto o alicerce mínimo aqui mencionado é relevante para fundamentar a pesquisa. Pense-se no “tempo”.
Como o objetivo derradeiro deste texto é trazer suas conclusões para pesquisas em criminologia, peguemos como exemplo o caso de um aluno que decidisse estudar “os efeitos do tempo encarcerado sobre a vida do apenado”.
A depender do grau de compreensão do pesquisador acerca daqueles elementos basilares sobre a capacidade humana de compreensão, se alterará grandemente a profundidade dos resultados obtidos. Senão, vejamos.
Partindo de um alicerce superficial, o aluno que decida estudar a questão mencionada se utilizará de uma concepção de tempo oriunda do senso comum ou mesmo de categorias socioeconômicas repisadas. Preocupações com o “ócio”, “tempo de vida”, “tempo de lazer” provavelmente percorrerão os limites do estudo, reproduzindo resultados não muito diferentes dos que já se conhece mesmo antes de iniciada a pesquisa.
Caso partisse de um alicerce mais profundo, seria possível que os resultados produzissem um avanço mais significativo do tema. Por exemplo, se o aluno se perguntasse sobre a obtenção (origens) de nossa compreensão contemporânea e valoração do tempo, procurando diferenciar o que pode ser apreendido pelos seres humanos ao longo das eras através de categorias inatas do que pode ser elucidado apenas empiricamente, como resultado de sínteses complexas, calcadas no acúmulo de conhecimento e organizadas pela razão (com base nas lições, por exemplo, de Norbert Elias sobre o “tempo social”) é provável que as conclusões finais do trabalho ganhassem um colorido prático muito mais significativo.
Partindo desse exemplo, vejamos se esta digressão traz alguma contribuição para os estudos de criminologia.
Ora, não se pode olvidar que a criminologia é, antes de mais nada, uma derivação de estudos da sociologia. Assim, seus métodos e pressupostos não podem ser os mesmos utilizados para o estudo da dogmática penal; erro comumente cometido.
Sendo a criminologia um estudo das determinações (ainda que não determinantes) de processos complexos de criminalização primária e secundária, vê-se que suas pesquisas se pautam em fenômenos dinâmicos e com elevado grau de interconexão de dados.
Com isso, não será produtivo, na plena acepção deste significante, um estudo criminológico que se volte pura e simplesmente para o referencial bibliográfico. Dito de outra forma, será possível produzir resultados muito limitados se apenas forem calcados na revisão bibliográfica.
Apoderando-se dos conceitos elementares acima citados, aventa-se a possibilidade de que o pesquisador vá além, perguntando-se sobre os fenômenos sobre os quais se debruça dentro do estágio de compreensão compartilhada destes fenômenos, sua valoração social através das eras, o modo de formação desta valoração, sua diferenciação de acordo com a bagagem cultural estruturante do indivíduo que opera o juízo da situação, o tipo de síntese histórico-social que permitiu que determinada conduta fosse criminalizada, os efeitos empíricos desta criminalização, além de outros elementos que lhe garantam conclusões para além da submissão a uma corrente teórica ou a mera repetição de enunciados já bem assentados. Ainda que reforçar teorias existentes com dados novos tenha algum sentido e possa contribuir de alguma forma com o desenvolvimento da criminologia, resultados mais ousados poderão ser buscados com um ferramental mais profundo, como se procurou defender aqui.
É cediço que o desafio de formar novos pesquisadores e mesmo de aprimorar nossa própria capacidade de pesquisa num país como o Brasil é muito grande. Poucos se encontram na situação privilegiada de obter uma preparação acadêmica de elevada qualidade. Sobra pouco tempo nos programas de ensino, quer da graduação ou das especializações, para este ensino basilar, ao menos na forma como são administrados por aqui (já que tempo é sempre uma questão de prioridades). No final das contas, há uma percepção negativa das disciplinas voltados a esta formação estrutural. Muitas vezes em virtude da atitude dos próprios professores que assumem a tarefa de ministrar a iniciação.
Ainda assim, espera-se que o comprometimento com a produção de conhecimento científico relevante impulsione estratégias de ensino que possam garantir uma ampliação quantitativa e qualitativa de estudantes brasileiros voltados à criminologia, este ramo tão decisivo para contenção da barbárie.
Notas e Referências:
CHOMSKY, Noam. Linguagem e mente. São Paulo: Editora UNESP, 2009.
BORDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: Editora UNESP, 2004.
ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Zahar, 1998
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. São Paulo: Martin Claret, 2009
MERTON, Robert K. Ensaios de sociologia da ciência. São Paulo: Associação Filosófica Scientiae Studia/Edotira 34, 2013.
. Paulo Incott é Mestrando em Direito pela UNITER. Pós-graduando em Direito Penal e Processual penal pela AbdConst. Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal. Membro do IBCCRIM. Membro da ABRACRIM. Advogado. . .
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