Que tal pensar em soluções para os problemas do novo CPC pela via legislativa?

04/05/2016

Por Débora Costa Ferreira - 04/05/2016

Os problemas práticos envolvidos na implementação do novo Código de Processo Civil após o início da sua vigência trazem mais uma vez ao centro da reflexão as questões que envolvem a construção das normas jurídicas em uma sociedade democrática e a participação judicial nesse processo. As inúmeras dúvidas quanto à sua aplicação e os prejuízos práticos decorrentes de consequências não antecipadas pelo legislador do novo código corroem gradualmente sua força normativa[1], gerando perturbações no sistema ainda maiores do que as que se pretendiam corrigir. A pergunta que ressoa nos ambientes jurídicos é aquela já bem conhecida dos brasileiros: “será que o novo CPC vai pegar?”.

Nesse contexto, a função do Direito de estabilização de expectativas comportamentais normativas por meio de sua generalização congruente, teorizada por Nicklas Luhmann (LUHMANN, 1983), parece sofrer abalos, sobretudo em tempos em que se observa a falta de homogeneidade da atuação judicial e o desprestígio da legislação emitida pelas vias democráticas ordinárias. Se, por um lado, as leis postas pelo sistema jurídico acabam frequentemente relativizadas em seu conteúdo por meio de inúmeras interpretações judiciais – por vezes, conflitantes entre si –; por outro, a produção legislativa atual carece da racionalidade e do sentimento de representatividade capazes de lhe conferir a legitimidade e institucionalização que necessita para estabilizar expectativas.

Em interessante análise do processo de decadência da lei, Luis Prieto Sanchís (SANCHÍS, 1998) propõe como solução à exacerbada discricionariedade judicial, propiciada em grande medida por ideais pós-positivistas, o investimento em uma teoria da legislação mais robusta, retomando-se a preocupação com a qualidade e a racionalidade das leis vigentes no sistema jurídico, de sorte a restabelecer o papel da lei como critério relevante para resolução de controvérsias. Com leis de melhor qualidade, nas quais os destinatários das normas reconheçam racionalidade capaz de justificar a normatização de seu comportamento e a imposição de limitações aos seus atos, a necessidade de correção normativa por parte do Judiciário se restringe, diminuindo assim a insegurança jurídica que se vê, gerada pela incoerência sistêmica decorrente de divergências jurisprudenciais na aplicação da lei.

De todo modo, a teoria da legislação não pode evoluir de tal modo que elimine as margens de discricionariedade do juiz, e, por consequência, a adaptabilidade das normas a mudanças fáticas e sociais. Isso porque, não há como o legislador antecipar todas as possibilidades e consequências futuras das normas (HART, 2012, p.166-167). Até porque ele não é dotado da expertise jurídica para lidar com normas após a sua vigência como os magistrados, os quais possuem um acervo privilegiado de informações e soluções quanto à conciliação de problemas práticos da lei (BRANDÃO, 2012, p. 203).

Assim, a saída contra a instabilidade jurídico-social ínsita às democracias constitucionais não se encontra no detalhamento da lei de tal modo a não deixar espaço para escolhas dos juízes, mas pode estar na participação desses na produção legislativa – principalmente no caso de normas que atinjam diretamente sua atuação – contribuindo com suas capacidades institucionais para construir normas de melhor qualidade, no sentido de minorar os seus efeitos deletérios e a insegurança jurídica, além de atenuar a heteronomia da norma.

Essa constatação fica clara ao se analisar o contexto de produção e implementação do novo CPC. Durante toda sua tramitação, não houve participação suficiente dos magistrados no âmbito legislativo para discutir pontos delicados de reforma das normas processuais. Inclusive, muitos magistrados estão tendo seu primeiro contato com essas normas após o começo de sua vigência. Esse fato não decorre somente do mero desinteresse da “classe”, mas também da estrutura institucional na qual se encontram – envoltos em metas quantitativas de produtividade, sobrecarga de trabalho e escassez de espaços de substancial organização de objetivos – que levam à sua desmobilização[2], sobretudo frente a outros grupos de interesse corporativistas; ou talvez da tímida cultura de participação política frente à sua posição de insulamento.

Como remediar a situação pela via judicial-interpretativa é o que mais se discute atualmente[3], mas pouco se chama a atenção para a via legislativa, arena democrática permanentemente aberta e mais propícia a gerar a estabilização que se espera do Direito. A capacidade de mobilização dos magistrados existe – se não, não passariam tantos projetos que concedem benefícios financeiros e não financeiros a eles –, a questão é reunir a atenção de seus membros para questões que não envolvem benefícios diretos a eles. Ocorre que, nesse caso, a sua desmobilização no passado parece estar-lhes gerando expressivos problemas, diretamente na sua esfera de atuação, o que pode constituir um incentivo para a mobilização, caso não se opte exclusivamente pelo tratamento do problema pela via judicial.

Antes de pensar em vinculação de precedentes, como dispõe o novo CPC, é imprescindível que a atividade judicial – sobretudo a das instâncias superiores – seja realizada de forma consistente e bem fundamentada e que a legislação possua uma racionalidade interna que prescinda de excessivas correções jurisprudenciais. Em momentos em que grande parte da população deposita no Poder Judiciário sua fé e expectativas ao mesmo tempo que desacredita a atuação do Poder Legislativo, é desejável que se busquem soluções dialógicas dentro do contexto democrático, somando capacidades institucionais de modo a produzir normas de melhor qualidade, consenso e legitimidade.


Notas e Referências:

[1] Pouco tempo após o início de sua vigência – e até antes dela – já haviam inúmeras teorias doutrinárias e posicionamentos jurisprudenciais sobre uma infinidade de questões do novo Código. Uniformização de regras de transição foram feitas às pressas sem a devida discussão.

[2] Todos estão ocupados demais para participar das decisões políticas, como observou Bruce Ackerman ao cunhar o termo perfect privatists (ACKERMAN, 1991)

[3] Com os ferramentais hermenêuticos do neoconstitucionalismo e com o empoderamento do Judiciário pelas constituições contemporâneas, é possível proceder a praticamente qualquer reforma normativa sem necessitar de alteração legislativa.

ACKERMAN, Bruce. We the People: Foundations. Cambridge, Massachusetts: The Belknap Press of Harvard University Press, 1991, pp. 231 e s.

BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia judicial versus diálogos constitucionais: a quem cabe a última palavra sobre o sentido da constituição? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012.

HART, H. L. A. O conceito de direito. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.

LUHMANN, Nicklas. Sociologia do Direito I. Tradução: Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983.

SANCHÍS, Luis Prieto. Ley, princípios, derechos. Madrid: Dykinson, 1998, p. 5-45.


Débora Costa Ferreira. Débora Costa Ferreira possui graduação em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (2014) e graduação em Ciências Econômicas pela Universidade de Brasília (2014). Tem especialização na área de Direito, com ênfase em Direito Constitucional (2015). Mestrado em Direito Constitucional em andamento. .


Imagem Ilustrativa do Post: Berkeley sidewalk 1-30-12 // Foto de: Paul Sullivan // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/pfsullivan_1056/7467458948

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura