Quando para o STF “dizer não é fazer”: uma crítica ao julgamento do Agravo Regimental no MS 33.729 – Por Diogo Bacha e Silva, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e Alexandre Gustavo Melo Franco de Moraes Bahia

10/09/2015

Após termos analisado aqui mesmo[1] a decisão liminar do Ministro Luis Barroso no Mandado de Segurança 33729, o Supremo Tribunal Federal teve excelente oportunidade de rever a questão e colocar o trem da Constituição sobre os trilhos da integridade do direito. É que a autoridade coatora (Mesa da Câmara dos Deputados), em suas informações, pediu a reconsideração da decisão liminar, bem como, eventualmente, o recebimento como agravo interno a ser levado para decisão pelo Pleno.

No dia 03/09/2015, o Agravo Interno foi levado a debate e votação pelo plenário do Supremo Tribunal Federal oportunizando a rediscussão da decisão liminar, seu caráter conciliatório e seu consequencialismo que, como dissemos anteriormente, compromete a própria estrutura normativa da Constituição. Em síntese, a Mesa da Câmara dos Deputados impugnou a decisão liminar que, por um lado, reconheceu a competência exclusiva do Congresso Nacional para em sessão conjunta analisar as contas presidenciais e, por outro, em razão da prática institucional em contrário, deixou de conceder a liminar, mantendo assim as deliberações em separado da Câmara dos Deputados; mas que, todavia, “sinalizou” para que no futuro fossem julgadas as contas presidenciais em sessão conjunta e não em separado, como interpretou a Câmara.

Em seu voto no Agravo Interno, o Min. Barroso considera que “o recurso não deve ser conhecido, por ausência de interesse recursal”. Entende o Ministro Barroso, em seu voto, que a decisão liminar agravada enfrentou e considerou presente a plausibilidade jurídica das alegações (fumus bonis iuris), mas considerou ausente o perigo na demora (periculum in mora), aptos a ensejar a decisão concessiva da liminar no Mandado de Segurança. Neste ponto, o voto foi no sentido de considerar prejudicada a análise do recurso de Agravo Regimental por ausência de interesse processual em decisão assim ementada:

DIREITO CONSTITUCIONAL. AGRAVO REGIMENTAL EM MANDADO DE SEGURANÇA. JULGAMENTO DAS CONTAS ANUAIS DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA. MEDIDA LIMINAR INDEFERIDA. AUSÊNCIA DE INTERESSE RECURSAL.

1. Indeferida a medida liminar, por ausência de perigo na demora, a autoridade impetrada não tem interesse recursal. Inteligência do art. 499 do CPC e da jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Federal.

2. Agravo regimental não conhecido.

Em síntese, o Ministro Barroso considerou que, apesar de ter reconhecido a inconstitucionalidade da prática da análise de contas em separado, apenas “sinalizou” e “não determinou” para a Câmara dos Deputados em sua decisão liminar que, no futuro, a prática deveria ser revista.

No fundo, há uma incompreensão do Supremo Tribunal Federal na extensão da garantia do Mandado de Segurança e no próprio pedido de segurança realizado no caso. Impossível se conceber a análise separada dos requisitos fumus bonis iuris e periculum in mora. Não seria a liminar no Mandado de Segurança um efeito necessário da análise, ainda que de cognição sumária, da alegação de lesão ou ameaça de lesão a direito individual da impetrante, cometidas por autoridade pública, comprovadas através de prova documental? Para se chegar à conclusão de que fumus bonis iuris e periculum in mora são duas faces da mesma moeda e que não podem ser cindidas, bastava considerar adequadamente o texto do art. 7º, inc. III da Lei 12.016/09:

Art. 7º. [....] III - "que se suspenda o ato que deu motivo ao pedido, quando houver fundamento relevante e do ato impugnado puder resultar a ineficácia da medida, caso seja finalmente deferida [...]” (grifo nosso)

Assim, a pretensão da liminar no Mandado de Segurança em questão era amparar “direito público subjetivo do parlamentar ao exercício regular do mandato”, uma vez assegurada a competência estabelecida na Constituição, ou seja, o respeito às regras do devido processo legislativo. A negativa de liminar significou, de outro lado, o desamparo desse “direito subjetivo”. Não obstante, haveria a possibilidade do STF rever a liminar no Agravo Interno analisado, mas decidiu por não decidir.

Ora, a manutenção de uma inconstitucionalidade, com o não deferimento da liminar, sob a justificativa de que há uma práxis legislativa anterior em contrário, nega efetivamente proteção não só a direito subjetivo da impetrante, mas também à própria normatividade da Constituição. Reconhecer que a prática institucional do Congresso viola a Constituição, mas, ainda assim, pode ser mantida, ou, pior, apenas “sugerir” a sua mudança, não só não faz sentido como é um “bis in idem” na violação desta.

Vale ressaltar que o pedido feito no MS. n. 33.729 foi de anulação de uma prática inconstitucional da autoridade coatora. A impetração é um pedido de realização prática de uma garantia e, sobretudo, de amparo a um direito lesado. Decisão, ainda que liminar, que não anula e nem garante amparo ao direito lesado infringe a regra processual-democrática de correlação do pedido com o amparo jurisdicional. Decisão que não decide é citra petita, aquém do pedido e, portanto, nula. Se se reconheceu a inconstitucionalidade, a consequência normativa apenas poderia ter sido a anulação das deliberações conjuntas, sob pena de negativa de proteção jurisdição.

Deve-se ter na devida conta que uma decisão jurisdicional implica sempre um sentido performativo[2], a realizar algo no mundo prático. É possível, assim, reduzir o sentido de uma decisão judicial a uma mera consulta? Nunca é demais salientar que o STF não é órgão consultivo, mas de garantia, de amparo dos direitos e de proteção jurisdicional da Constituição. O STF, diferentemente, p. ex., do TSE, não possui entre suas competências a de responder a “consultas”; ele é chamado a decidir e o writ em questão tem pretensão de provimento declaratório e/ou (des) constitutivo – seja em decisão definitiva, seja em liminar –, donde qualquer decisão que não decida é nula/inexistente. No caso havia um pedido, certo e claro, a declaração de nulidade ou, ao menos, a anulação das deliberações em separado da Câmara. A mera “opinião” do Ministro não opera efeito algum para o Legislativo.

No mínimo, a “sinalização” realizada na decisão da liminar do Min. Barroso ou se caracterizaria como modulação dos efeitos da decisão, como, aliás, criticamos no artigo supramencionado, ou, então, como técnica de apelo ao legislador.  O sentido de mera opinião como pretendeu expressar o Min. Barroso implica negativa de jurisdição, em desamparo ao direito subjetivo vindicado no Mandado de Segurança e, por conseguinte, em desamparo ao próprio texto constitucional.

Neste ponto, há o problema da integridade do Direito. Ou o STF deve reconhecer a prática anterior do Legislativo como válida, como intérprete autêntico no sentido kelseniano, e, a partir da decisão, determinar que as deliberações devam dar-se conjuntamente pelas duas casas, sob pena de nulidade, ou então declarar a nulidade das deliberações em razão de lesão ao direito do parlamentar garantido pela Constituição – direito que, na verdade, é um direito público, político, como já adiantado em artigo anterior e, logo, envolve algo maior do que meros interesses privados de uma pessoa, pois, no caso, tratam da própria realização da Constituição.

No primeiro caso, todavia, como conciliar tal tipo de decisão com a garantia do Mandado de Segurança? O direito individual não ficaria sem o devido resguardo pelo Poder Judiciário?

No segundo caso, por outro lado, há a proteção do direito lesado e, por conseguinte, uma correta compreensão do Mandado de Segurança.

É necessário que o STF assuma em definitivo a responsabilidade de ser garante do devido processo legislativo, garante das condições democráticas de formação da vontade política, principalmente em questões que afetam o cerne do sistema de governo, como é o caso do julgamento de contas do Executivo pelo Legislativo.

Assumir tal função implica decidir coerentemente com base na integridade da comunidade de princípios instituída pela Constituição Federal de 1988, significa também assumir que decisões jurisdicionais são realizações práticas dos direitos prefigurados pelo texto constitucional.

Enfim, já tínhamos, portanto, uma decisão que não decidia, mas supostamente apenas “sugeria”; e agora ficamos depois com um Agravo Interno que funcionou como Embargos de Declaração, no qual o STF mantém sua não-decisão e repete seu caráter “opinativo”, face à violação à Constituição que ele mesmo reconhece em sua ratio decidendi.

Contudo, o problema de tudo isso é que há uma questão fundamental do ponto de vista constitucional – e, assim, também político, da polis, do próprio sistema de governo que subjaz à Constituição – que é saber, afinal, como as contas públicas devem ser julgadas. Entretanto, ao fim e ao cabo, aquele que deveria institucionalmente ser o “guardião da Constituição” silencia quanto a isso, não nos oferece uma resposta.


Notas e Referências:

[1] CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade; BAHIA, Alexandre; BACHA E SILVA, Diogo. Integridade do Direito – Contas presidenciais e devido processo legislativo. Disponível em http://emporiododireito.com.br/integridade-do-direito-contas-presidenciais-e-devido-processo-legislativo-por-marcelo-andrade-cattoni-de-oliveira-alexandre-gustavo-melo-franco-bahia-e-diogo-bacha-e-silva/.

[2] AUSTIN, John L. Como hacer cosas con palabras. Barcelona: Paidós, 2014.


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