QUANDO O MINISTÉRIO PÚBLICO RECUSA PROPOR O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL - A POSIÇÃO DO STF

15/05/2021

No julgamento do Habeas Corpus nº. 194677, a 2ª. Turma do STF decidiu que o caso de uma venezuelana condenada por tráfico internacional de drogas deve ser remetido à Câmara de Revisão do MPF, para avaliar a possibilidade de oferecimento do acordo de não persecução penal. No caso julgado, o Juiz de primeira instância aplicou a pena de quatro anos e dez meses de prisão. O Procurador da República recusou propor o acordo e, em seguida, o Juiz não permitiu que o processo fosse remetido ao órgão superior do MPF para reavaliar a questão.

Segundo o relator do HC, Ministro Gilmar Mendes, não cabia ao Juiz impedir que o caso seja analisado pela Câmara Recursal do MPF; pelo contrário, esse deveria ser um ato automático, após pedido da defesa.

Segundo ele, no caso de recusa em propor o acordo, o indiciado pode requerer a remessa dos autos da investigação ao órgão colegiado do MPF, na forma do art. 28 do CPP: “A defesa tinha direito ao reexame da negativa apresentada pelo representante do MP em primeiro grau, sendo ilegítima a recusa do julgador que impediu a remessa”, escreveu o relator. Assim, a ordem foi concedida em parte, uma vez que, inicialmente, a defesa pedia o reconhecimento judicial do direito ao acordo. Esse pedido foi negado, com base na jurisprudência de que não cabe ao Poder Judiciário impor ao MP a obrigação de propor um acordo penal. O voto do relator foi acompanhado pelos Ministros Nunes Marques e Edson Fachin e pela Ministra Cármen Lúcia. O Ministro Ricardo Lewandowski também votou pela concessão da ordem, mas em extensão mais ampla. Para ele, a sentença deveria ser anulada, com a determinação ao magistrado de origem de que se abstenha de proferir nova sentença até a manifestação formal do órgão do MPF.[1]

Como se sabe, com a promulgação da Lei nº. 13.964/19, que acrescentou ao CPP o art. 28-A, passamos a ter possibilidade de um acordo de não persecução penal, a ser realizado entre o Ministério Público e o investigado. Este acordo só poderá ocorrer se não for o caso de arquivamento do procedimento investigatório, pois se não houver justa causa ou faltarem os pressupostos processuais ou as condições para o exercício da ação penal, deve ser promovido o arquivamento, nos termos do art. 28, CPP.[2] A iniciativa do acordo, segundo a lei, será sempre do MP. O acordo pode ser feito com qualquer investigado em um procedimento formal de natureza investigatória/criminal[3], seja instaurado na Polícia (federal, militar ou civil) ou no próprio Ministério Público; a propósito, observa-se que a palavra utilizada no texto legal é sempre “investigado”, e não “indiciado”.

O pressuposto para a formalização do acordo é que se trate da investigação de uma infração penal (portanto, crime ou contravenção) praticada sem violência ou grave ameaça, cuja pena mínima seja inferior a 4 anos. Logo, não se admite tais acordos quando se trate de crime cuja pena mínima seja igual ou superior a 4 anos, ou, ainda que não o seja, tenha sido praticada com violência ou grave ameaça: eis o pressuposto.

Vejamos os requisitos. Como primeiro requisito, a lei exige que haja a confissão do investigado, e que esta confissão seja feita formalmente, ou seja, que esteja expressamente esclarecida nas cláusulas do acordo, que deve ser feito por escrito e na presença do Defensor e do Ministério Público. A lei condiciona a homologação do acordo à realização de uma audiência (que deverá ser, por óbvio, pública e oral) na qual o Juiz das Garantias deverá verificar a voluntariedade da aceitação do acordo, devendo, para isso, ser ouvido o investigado, na presença do seu Defensor; nesta mesma audiência, o Magistrado verificará a sua legalidade, isto é, se está presente o pressuposto, se estão preenchidos os requisitos legais e, finalmente, se as condições acordadas estão conforme a lei. Esta confissão deve ser feita também circunstancialmente, ou seja, devem estar detalhados todos os fatos, de maneira pormenorizada e sem margem para quaisquer dúvidas, atentando-se sempre para que tenha sido feita sem coação de nenhuma natureza, conforme exige o art. 8º., 3, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica).

Um segundo requisito exigido pela lei é que o acordo seja “necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime.” Como se vê, trata-se de uma repetição, ipsis litteris, da última parte do que contém o art. 59 do Código Penal que estabelece os parâmetros para a determinação da sanção aplicável em caso de uma condenação (ao lado do art. 68, Código Penal). O que seria mesmo um acordo necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime? Esta é uma matéria extremamente delicada, pois toca a questão das finalidades da pena, razão pela qual é absolutamente imprópria para constar como requisito para um acordo penal, ainda mais em uma fase em que nem sequer houve uma acusação formal contra alguém.

Por fim, são também requisitos para o acordo de não persecução:

a) não ser cabível transação penal de competência dos Juizados Especiais Criminais;

b) não ser o investigado reincidente;

c) não existirem elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas;

d) ter sido o agente beneficiado nos 5 anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo;

e) não ter sido o crime (não contravenção) praticado no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor (não agressora).

Observa-se, então, não ser possível o acordo no âmbito dos Juizados Especiais Criminais. Na Justiça Militar sim, por força do art. 90-A da Lei nº. 9.099/95, e também na Justiça Eleitoral. Já em relação aos crimes da competência do Tribunal do Júri, a situação é diversa, em razão do disposto no art. 5º., XXXVIII, “d”, da Constituição Federal. Eis os requisitos.

Vejamos, então, as condições exigidas pela lei para a formalização do acordo, que devem ser “ajustadas cumulativa e alternativamente”:

a) reparação do dano ou a restituição da coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo;

b) renúncia voluntária a bens e direitos indicados pelo Ministério Público, como instrumentos, produto ou proveito do crime; neste caso, ressalvada a legislação especial, o destinatário será o Fundo Nacional de Segurança Pública (art. 3º., VI, da Lei nº. 13.756/18); aqui, a questão é que há um verdadeiro confisco de bens sem que tenha havido uma sentença penal condenatória definitiva, como exige o art. 91, II, Código Penal;

c) prestação de serviço à comunidade ou a entidades públicas, por período correspondente à pena mínima cominada ao delito, diminuída de 1/3 a 2/3, em local a ser indicado pelo Juízo da Vara de Execuções Penais (art. 46 Código Penal);

d) pagamento de prestação pecuniária a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo Juízo da Vara de Execuções Penais, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; observa-se que, ao contrário do que permite o art. 45 do Código Penal, neste caso, a prestação pecuniária não pode ter como beneficiária a vítima ou os seus dependentes;

e) ou, alternativamente, outra condição indicada pelo Ministério Público, a ser cumprida em prazo determinado, e desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada; o caso concreto dirá qual a condição melhor para ser acertada, cuidando-se para que condições draconianas e impraticáveis não sejam propostas, inviabilizando o acordo.

Pela redação legal, deve-se considerar como obrigatórias, aplicadas “cumulativamente”, as quatro primeiras condições, salvo a impossibilidade de adimplemento como, por exemplo, a falta de recursos do investigado para reparar o dano ou para pagar a prestação pecuniária, ou a inexistência de instrumentos, produto ou proveito do crime. “Alternativamente”, poderá ser também estabelecida a quinta condição, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada: eis as condições.

Vejamos, em seguida, os demais aspectos do novo procedimento. Segundo a lei, “caso Juiz considere inadequadas, insuficientes ou abusivas as condições dispostas no acordo de não persecução penal, devolverá os autos ao Ministério Público para que seja reformulada a proposta de acordo, com concordância do investigado e seu defensor.”

Neste aspecto, deu-se ao Juiz uma possibilidade de “fiscalizar” os termos do acordo, algo incompatível com um processo penal de estrutura acusatória (art. 3º.-A, Código de Processo Penal). Imiscuir-se o Juiz nesta fase procedimental, “sugerindo” ao Ministério Público a reformulação da proposta, não está conforme um processo de modelo acusatório; assim, apresentado o acordo, das duas uma: homologa-se ou não se homologa!

O Juiz não deverá homologar o acordo no qual não foram observados os requisitos legais; recusada a homologação, o Juiz devolverá os autos ao Ministério Público para a análise da necessidade de complementação das investigações ou o oferecimento da denúncia. Da mesma maneira, se as condições estabelecidas não estejam em conformidade com a lei, o Juiz também deve recusar a homologação, consignando expressamente os motivos pelos quais a homologação foi rejeitada. Caberá ao Ministério Público, então, ajustar os termos do acordo, apresentando uma nova proposta ao investigado (que aceitará ou não).

Caso o MP entenda que a proposta atende os parâmetros legais (não sendo o caso de “ajustes”) poderá interpor um recurso em sentido estrito (art. 581, XXV, Código de Processo Penal). Este recurso também poderá ser utilizado pelo investigado, claramente prejudicado pela não homologação.

Em caso de interposição do recurso, sendo ele julgado procedente, e transitada em julgado a decisão, o acordo deverá ser obrigatoriamente homologado pelo Juiz; julgando-se-lhe improcedente, surge uma questão: estará o Ministério Público obrigado a oferecer denúncia, já que o Tribunal entendeu pela rejeição da proposta? A resposta é positiva, pois o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública ainda vige no Brasil.

E no caso de recusa por parte do Ministério Público em propor o acordo? O novo dispositivo legal possibilita que o investigado recorra para o órgão colegiado do MP, aquele mesmo que tem atribuições para homologar (ou não) a promoção de arquivamento, na forma do art. 28 do CPP. O prazo para este recurso administrativo será de 30 dias, contados da data da intimação (art. 28-A, § 14, c/c art. 28, § 1º., CPP).

Assim, sempre que, em tese, seja cabível o acordo e o MP, ao contrário, optar pelo oferecimento da denúncia, deve, em separado, expor as razões pelas quais não foi feita a proposta, intimando-se o investigado. Este pronunciamento deve ser fundamentado, conforme exige a CF (arts. 129, caput, VIII, in fine, c/c arts. 129, § 4º. e 93, IX).

Não deve ser cogitada a aplicação, por analogia, da Súmula 696 do STF, primeiro porque de analogia não se trata mesmo, e, segundo, em razão da estrutura acusatória que deve ter o nosso processo penal, por força da CF e do CPP (art. 3º.-A).

Se houver o oferecimento da peça acusatória, nada obstante ser caso de acordo, restará ao Juiz, em obediência ao art. 129, I, CF, receber a denúncia (se não for inepta, se houver justa causa e se estiverem presentes os pressupostos processuais e as condições da ação); neste caso, o réu poderá interpor um HC para trancar o processo, afinal, trata-se de exercício abusivo do dever de acusar.

Finalmente, estando o acordo em conformidade com o pressuposto legal, presentes os seus requisitos e estabelecidas as condições, o Juiz deverá homologá-lo por sentença, devolvendo-se os autos ao MP para que, junto à VEP, providencie o início da execução. Como dito acima, a recusa em homologar trata-se de uma decisão recorrível (art. 581, XXV,CPP).

Entendo, nada obstante a lei não estabelecer expressamente, que a sentença homologatória do acordo penal é apelável, nos termos do art. 593, II (segunda parte), do CPP, tal como se dá com a sentença homologatória da transação penal (art. 76, § 5º., da Lei nº. 9.099/95) e do sursis processual, conforme entendimento majoritário da jurisprudência e da doutrina.

A vítima deverá ser intimada da homologação do acordo e de seu eventual descumprimento, nada obstante não ter legitimidade para se insurgir (administrativamente) contra o oferecimento do acordo, já que se trata de uma atribuição do órgão de execução do MP; tampouco para apelar da sentença homologatório. Igualmente, incabível será o oferecimento de queixa subsidiária (ação penal de iniciativa privada subsidiária da pública), pois não houve inércia do MP.[4]

Como já referido, a sentença homologatória deverá ser enviada ao membro do MP junto à VEP para que inicie a sua execução. A iniciativa será do MP, não do Juiz, como se dá com as sentenças condenatórias, devendo ser observadas as disposições contidas na Lei nº. 7.210/84. Aqui, descumpridas quaisquer das condições estipuladas no acordo, o MP deverá comunicar ao juízo, para fins de sua rescisão e posterior oferecimento de denúncia. Segundo a lei, o descumprimento também poderá ser utilizado pelo MP como justificativa para o eventual não oferecimento da suspensão condicional do processo; assim, temos um novo requisito negativo para a suspensão condicional do processo prevista no art. 89 da Lei nº. 9.099/95: o descumprimento do acordo anterior de não persecução penal.

A celebração e o cumprimento do acordo não constarão de certidão de antecedentes criminais, exceto para impedir um novo acordo, conforme acima indicado. Cumprido integralmente, o Juízo da VEP declarará extinta a punibilidade, observando-se que o prazo prescricional fica suspenso enquanto não cumprido ou não rescindido o acordo (art. 116, IV, do CP).

Para concluir, observa-se que este novo art. 28-A não encerra no Brasil, muito pelo contrário, o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, aliás, decorrente do princípio da legalidade. O que houve, e já o havia, foi uma sua relativização, perfeitamente possível em um processo penal de feição acusatória.[5]

 

Notas e Referências

[1] Disponível em: http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=465731&tip=UN. Acesso em 13 de maio de 2021.

[2] Sobre o novo procedimento para o arquivamento de peças de informação, veja-se, por todos, o artigo de Aury Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa (https://www.conjur.com.br/2020-jan-10/limite-penal-procede-arquivamento-modelo, acessado em 11 de janeiro de 2020).

[3] A nova lei também passou a permitir a celebração de acordo de não persecução cível (art. 17, § 1º., da Lei nº. 8.429/92).

[4] MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal, Volume I. Campinas: Bookseller, 1998, p. 325.

[5] Veja-se o caso da transação penal (art. 76 da Lei nº. 9.099/95), da delação premiada (art. 4º., § 4º., da Lei nº. 12.850/13) e do acordo de leniência (arts. 86 e 87 da Lei nº. 12.529/11).

 

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