Quando dá zebra na hermenêutica jurídica

04/07/2016

Por Alexandre Morais da Rosa e Ana Luísa Schmidt Ramos Morais da Rosa - 04/07/2016

A aprendizagem do sentido da norma jurídica não é ato de descobrimento do verdadeiro sentido escondido por detrás do texto apresentado[1]. Decorre do intrincado processo de atribuição de sentido em que as contingências dos sujeitos (operadores do direito) e seus respectivos mapas mentais comparecem no momento de, em face do caso apresentado, corresponder às recompensas diante das possíveis funções da norma jurídica.

O sentido imaginado ou atribuído sem que o contexto de aplicação seja levado em consideração é imaginário. É no real de um acontecimento que os personagens podem atribuir sentido. Não há sentido universal, já que para tanto se deveria acreditar na possibilidade de as palavras darem conta do Real, pressuposto impossível do ponto de vista realístico, como indicava Lacan[2]. A palavra não é a coisa. Entre o texto normativo, o contexto de aplicação, passa-se pela linguagem e pelos personagens humanos, com diversas formas de apreensão do que se denomina realidade. Daí as possibilidades de dissidência[3]. Ganha protagonismo, assim, a interação humana entre os personagens.

O nexo entre a conclusão – atribuição de sentido – e os materiais textuais e fáticos, todavia, não são dados, porque dependem de um passo antecedente: a capacidade de atribuir sentido dos envolvidos na interação. Por exemplo, não será possível convencer um juiz que não sabe o que significa “imputação objetiva” sobre a aplicabilidade teórica no caso. Dará zebra. É como se estivéssemos falando em um idioma diferente. Por isso, temos pensado a questão desde o ponto de vista da Teoria dos Jogos e das interações (im)possíveis. Não se trata do sentido que desejamos atribuir, mas o que é possível no evento semântico que se verifica no espaço, tempo e variáveis humanas.

Dependeremos sempre dos personagens humanos, das regras do jogo, das recompensas e das táticas/estratégias que forem articuladas. Disso se trata o dispositivo do processo judicial[4].

É a partir da grelha teórica da teoria dos jogos aplicada ao processo penal que poderemos ter a contingência de reforço, expressa na fórmula “se isso”, então, “provavelmente aquilo”[5]. No intermédio do sentido há protagonismo do humano e suas vicissitudes. O desafio, portanto, será evitar o subjetivismo e controlar os limites em que o sentido se protrai.

No ambiente jurisdicional a postura do juiz (resposta) pode obter reforço positivo das “decisões confirmadas” (consequência), especialmente se ele tiver o interesse em agradar o Tribunal e não “pensar” muito, dado o conforto cognitivo decorrente de adotar a postura majoritária. A adição do estímulo reforçador, que é o acórdão confirmatório, aumenta a probabilidade de o juiz emitir o mesmo tipo de resposta no futuro. Pensar e refletir demanda tempo e energia, especialmente em casos “já decididos”, em que a pressão por resultados eficientes – conforme a orientação padrão – demitem o sujeito do ato de enunciar, com a consequente (des)responsabilização.

Especialmente depois da adoção de Súmula Vinculante e IRDR – Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas -, previsto no Novo CPC (art. 976 – ver texto explicativo aqui), o desestímulo à discussão do caso penal – da possibilidade de distinção e/ou superação dos argumentos – a tendência à hermenêutica do conforto (aqui) se mostra presente.

O jogo das recompensas positivas/negativas articula-se em face dos objetivos dos envolvidos na interação. O processo de atribuição de sentido é multideterminado e irrepetível, dado que se opera no tempo e no espaço. No dia ou semana seguinte, as variáveis podem se alterar (um novo livro, uma experiência pessoal, alterações ambiente, pressões midiáticas/familiares, etc.). O repertório em que o mapa mental responde aos estímulos do ambiente jurisdicional, processual e ampliado (social e coletivo), podem gerar alterações no processo de atribuição de sentido. O jogo de recompensas (positivas/negativas) influencia mais nas decisões do que se está acostumado a reconhecer. Opera de modo silencioso, alterando o trajeto do sentido.

Estabelece-se, todavia, o “comportamento jurisdicional” aceitável, muitas vezes, de ressignificação e opressão de sentido, especialmente pela pressão que os estamentos implicam, no caso da magistratura. O que “decide diferente” pode ser compreendido como “desajustado” ao padrão dominante. A lógica do adestramento, a partir de reforços comportamentais, de censura e reprovação, assim, constitui-se como propulsores de uma educação jurisdicional ao bom-mocismo. O comportamento adequado é a subserviência sem reflexão.

O padrão seguido é: “se alguém não se comporta como você quer, castigue-o”.  Sustenta Skinner, a partir da análise comportamental, que a longo prazo, ao contrário do reforço, a punição funciona com desvantagem tanto para o organismo punido quanto para a agência punidora. Isso porque os estímulos aversivos necessários geram emoções, incluindo predisposições para fugir ou retrucar, além de ansiedades perturbadoras[6]. Daí que a extinção do comportamento tido por inadequado é prejudicado. O tempo, o convencimento ou o diálogo são bem mais efetivos. Entretanto, prevalece a lógica da autoridade – imaginária – que pouco auxilia no alinhamento de perspectivas.

O que se pode dizer, aqui, é que o processo de atribuição de sentido é muldimensional e que a singeleza da visão de subsunção é ingênua. E talvez por ser tão ingênua, gera tanta perplexidade e funciona tão bem. O resultado é o paroxismo da tragédia hermenêutica que se vivencia. Não se pode estabelecer o sentido antes do caso, mas se pode estabelecer regras para que ele possa advir. Daí a Teoria dos Jogos aplicada ao Processo Penal servir de mecanismo de antecipação de comportamentos jurisdicionais (des)ajustados.


Notas e Referências:

[1] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. São Paulo: Saraiva, 2012.

[2] ACAN, Jacques. O seminário: de um discurso que não fosse semblante, livro 18. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, p. 13: “Certamente não se trata de que eu me apegue a essas perguntas, mas faço a questão de assinalar que a posição do positivismo lógico é insustentável, ao menos a partir da experiência analítica. (…) A interpretação não é submetida à prova de uma verdade que se decida por sim ou não, mas desencadeia a verdade como tal. Só é verdadeira na medida em que é verdadeiramente seguida”.

[3] MELIM, Claudio. Ensaio sobre a cura do Direito: indícios de uma verdade jurídica possível. Florianópolis: Empório do Direito, 2015.

[4] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Florianópolis: Empório do Direito, 2016.

[5] MOREIRA, Márcio Borges; MEDEIROS, Carlos Augusto. Princípios básicos de análise do comportamento. Porto Alegre: Artmed, 2007.

[6] SKINNER, Burrhus Frederic. Ciência e comportamento humano. Trad. João Carlos Todorov e Rodolfo Azzi. 11 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 199.


Alexandre Morais da Rosa. Alexandre Morais da Rosa é Professor de Processo Penal da UFSC e do Curso de Direito da UNIVALI-SC (mestrado e doutorado). Doutor em Direito (UFPR). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. Juiz de Direito (TJSC). Email: alexandremoraisdarosa@gmail.com / Facebook aqui. .


Ana Luísa Schmidt Ramos Morais da Rosa. . Ana Luísa Schmidt Ramos Morais da Rosa é Juíza de Direito do TJSC, graduanda em Psicologia (UNISUL). . .


Imagem Ilustrativa do Post: Zebra // Foto de: Kristin Wall // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/kwdesigns/6849250997

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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