Quando a lenda é maior que o fato

05/07/2016

Por Luiz Ferri de Barros – 05/07/2016

Em O Homem que Matou o Facínora, western de 1962, John Ford discorre sobre o poder da lenda. 

A lei e a ordem, quando não a ética, são temas de todos os filmes de faroeste. Xerifes são personagens frequentes de tal gênero de cinema, e muita vez também juízes, não faltando em muitos casos cenas de julgamentos.

Mas em O Homem que Matou o Facinora, de forma rara, o protagonista é um advogado, Ranson Stoddard, vivido por James Stewart, amigo, e rival pelo amor de uma mulher, do vaqueiro Tom Doniphon (John Wayne).

A película, rodada em branco e preto, o que acentua sua dramaticidade, é a adaptação cinematográfica de um conto de Dorothy M. Johnson, autora cuja obra mais conhecida, e também levada às telas, é Um Homem Chamado Cavalo. Johnson é uma escritora representativa de uma fase moderna do faroeste, em que os valores do velho oeste, após a Segunda Guerra, passam por transformações no imaginário americano.

Se, a partir de sua obra Um Homem Chamado Cavalo, os índios inicialmente descritos na literatura e no cinema como selvagens desprezíveis passaram a receber tratamento diferente, em O Homem que Matou o Facínora, Dorothy M. Johnson retratou de forma a um tempo lírica e irônica a transição da lei do mais forte, ou do mais rápido no gatilho, ao tempo das liberdades cívicas conferidas pela civilização e pela democracia a todos os cidadãos.

Esse momento, em que o território em que se passa a ação alça-se à condição de estado, exige representação política, que será exercida por homens letrados e não por cowboys, hora em que, dentre todos, o mais habilitado é o advogado.

As mudanças sociais e históricas subjacentes à narrativa são determinadas pela chegada da ferrovia e, com ela, das cidades, encerrando-se o tempo dos grandes ranchos de criação de gado, sem cercas e sem limites, em defesa dos quais, a soldo dos rancheiros, reinava na região Liberty Valance (Lee Marvin), um pistoleiro implacável e temido por todos, menos pelo vaqueiro Tom Doniphon e pelo advogado Ranson Stoddard.

John Ford, ele mesmo um mito insuperável do cinema de faroeste, reuniu três artistas mitológicos no gênero: os mocinhos John Wayne e James Stewart como protagonistas, e Lee Marvin, que se alinha entre os maiores bandoleiros do cinema, como antagonista.

Desde sua chegado ao oeste, o advogado defende que todos os problemas devem ser resolvidos pacificamente pela lei, enquanto o vaqueiro e os demais somente acreditam na força dos revolveres.

O lirismo do filme é dado pela forma discreta e cavalheiresca com que o cowboy interpretado por John Wayne cede a fama pelo enfrentamento do vilão ao advogado vivido por James Stewart, assim conscientemente perdendo também a disputa pelo coração da mocinha.

A ironia aparece em múltiplas formas, a mais forte sendo o fato de que exatamente ao advogado pacifista é conferida a glória de ter matado o vilão, assim granjeando, de maneira inversa a seus credos, a fama que o levou a ser governador do estado e senador.

Essa ironia é redobrada quando a narrativa em flash-back desnuda diferente verdade: fora o cowboy que o defendera, atirando e abatendo na penumbra o facínora, quando este em duelo desigual mataria o advogado.

No fim da vida, tendo voltado à cidadezinha onde a história se passou, para o enterro do velho amigo cowboy cuja história ninguém mais conhecia, o advogado e senador acaba por concordar em dar uma entrevista ao jornal local em que, pela primeira vez, desvenda o segredo que o atormentava: não fora ele quem matara o facínora.

Debalde. Ao fim da história, o editor do jornal simplesmente rasga os seus apontamentos, e, interpelado pelo senador se então nada seria publicado sobre a verdade, ouve talvez a mais famosa frase do cinema de John Ford: “Aqui é o Oeste, senhor. Quando a lenda é maior que o fato, publique-se a lenda”.


Originalmente publicado na Revista da OAB/CAASP. Ano 5. Nº 23. São Paulo, junho de 2016.


Luiz Ferri de Barros é Mestre e Doutor em Filosofia da Educação pela USP, Administrador de Empresas pela FGV, escritor e jornalista.

Publica coluna semanal no Empório do Direito às terças-feiras.

E-mail para contato: barros@velhosguerreiros.com.br.


Imagem Ilustrativa do Post: The Man Who Shot LIberty Valance // Foto de: 7th Street Theatre Hoquiam, WA // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/7thstreettheatre/26515864415

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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