Qualificação do Bem Jurídico no Crime de Branqueamento de Capitais (Parte 1)

15/09/2016

Por Liliana Santo de Azevedo Rodrigues - 15/09/2016

Existe muita controvérsia em torno do bem jurídico protegido pelo crime de branqueamento de capitais.[1] Uns autores defendem que é tutelada a segurança geral da comunidade ou a proteção da saúde pública no sentido que esta potencia a prática dos crimes primários, acabando assim por tutelar todos os bens jurídicos defendidos pelas proibições dos crimes precedentes. Outros defendem que o crime de branqueamento de capitais tutela a ordem sócio econômica, na medida em que lesa a livre concorrência e a credibilidade e confiança nas instituições financeiras. Por fim, grande parte da doutrina considera que o bem jurídico tutelado é a administração da justiça. Analisaremos cada uma das opções para concluir pela nossa fundamentação.

1. Bem jurídico: ordem socioeconômica

Para quem defende que o bem jurídico tutelado é a ordem socioeconômica,[2] na medida em que lesa a livre concorrência e a credibilidade e confiança nas instituições financeiras, entende que o branqueamento de capitais ofende um bem jurídico coletivo ou supra-individual porque tutela a pretensão estadual ao confisco das vantagens do crime.

Nas palavras de José de Faria Costa,[3]

“as grandes organizações criminais, ligadas aos mais diferentes sectores da actividade ilícita, designadamente o tráfico de drogas, são detentoras de uma tal disponibilidade de bens e de dinheiro que o reinvestimento de tais somas, provenientes de actividades criminosas e onde impera uma total liquidez, faz nascer desvios e condicionalismos no mercado financeiro, na medida em que pode levar ao controlo de um inteiro sector ou segmento da economia.”

Comecemos por referir o bem jurídico que protege a livre concorrência. Os capitais para branqueamento não se movimentam segundo uma lógica de mercado, mas antes em função dos países com mais facilidade para dar entrada do capital, iludindo os controlos existentes. Uma vez que estes capitais são potenciados a um custo muito baixo, aquelas empresas que seriam beneficiadas teriam uma vantagem considerável relativamente às empresas com o financiamento a custos de mercado. Falamos em montantes consideráveis envolvidos nas operações de branqueamento que vão originar informação errada aos decisores econômicos e distorções no mercado, subvertendo as regras do jogo, nomeadamente pelo reflexo nas taxas de câmbio e de juros e pondo em causa o próprio desenvolvimento económico. Resumidamente, o dano em causa estaria na aplicação que seria feita pelo capital branqueado.

No seguimento deste raciocínio, todo e qualquer montante proveniente de um fato ilícito precedente, seria gerador de distorção nos mercados, nomeadamente na livre concorrência. Não nos parece admissível que se possa considerar que montantes de pequena importância possam desvirtuar a concorrência, até porque as regras econômicas têm aplicação uniforme, qualquer que seja a proveniência dos fundos.[4]

É apontado ainda, no âmbito da ordem socioeconômica, a credibilidade e confiança nas instituições financeiras, como bem jurídico no crime de branqueamento de capitais, considerando a reputação ou o bom nome do sistema financeiro. As instituições usadas para a realização de operações de branqueamento de capitais seriam susceptíveis de prejudicar a reputação das mesmas pela sua associação ao mundo da criminalidade. Por sua vez, os investidores honestos que prezam a transparência e o respeito pelas regras e códigos de conduta definidos inevitavelmente iriam afastar-se. Tudo se reconduziria a uma mera questão de imagem das instituições financeiras, gerando uma cultura de corrupção vinda de dentro que iria impedir o desenvolvimento econômico-social. [5]

Entendemos, porém, que o bem jurídico no crime de branqueamento não deverá ser a reputação do sistema financeiro, uma vez que as medidas impostas às instituições financeiras são para o seu próprio interesse. Além disso, o branqueamento de capitais pode servir-se de qualquer circuito econômico para prosseguir o seu fim, nomeadamente através de sistemas bancários paralelos ou empresas comerciais não sujeitas a qualquer supervisão. Em contrapartida, nem todos os capitais de origem ilícita pressupõe operações de branqueamento.

Poderíamos entender a ordem socioeconômica como o bem jurídico protegido na mera utilização de capitais de origem ilícita mas nunca na base do crime de branqueamento de capitais. Este crime pode ser praticado e o dinheiro “branqueado” ser reintroduzido na atividade ilícita procedente, sem que com isso haja qualquer alteração do mercado.

A existência de controlo de determinadas operações econômicas, bem como de esquemas apertados impostos às instituições financeiras com sanções apertadas no caso da sua violação, em nada se revela com a tutela da economia. Esta importa não como objeto direto de proteção, mas apenas para evitar que as operações referenciadas não sirvam de meio para a ofensa de outros bens jurídicos, não sejam um instrumento do crime, como sucede com o branqueamento.[6]


Notas e Referências:

[1] Posição peculiar tem STRATENWERTH, Günter, A Luta contra o Branqueamento de Capitais por meio do Direito Penal: o exemplo da Suíça, Lusíada, n.º 3 Direito, Universidade Lusíada, 2005, pp. 87 ss., na medida que entende que o branqueamento de capitais não visa a proteção de nenhum bem jurídico. Este crime dirige-se especialmente à criminalidade perigosa, através da organização de associações criminosas, contra a tentativa de encobrir valores obtidos de forma ilícita que vão limitar a intervenção das autoridades de investigação. Nesta sequência, entende o autor que o direito penal poderá ser aplicado em três hipóteses: quando estão em jogo valores patrimoniais provenientes de uma organização criminosa, quando estes valores provêm de crimes ou quando podiam ser objeto de apreensão pelos órgãos de investigação criminal.

[2] GONÇALVES, Manuel, As Especificidades do Crime Económico, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 22, n.º 3, julho-setembro, 2012, Coimbra Editora, pp. 418 ss. defende “o branqueamento de capitais (…) visando a sua punição garantir a protecção de interesses económicos e financeiros, dos quais ressalva a sadia concorrência entre empresas e/ou pessoas singulares e evitar a contaminação de instituições financeiras que se querem credíveis e sólidas.”

[3] COSTA, José de Faria, O Branqueamento de Capitais (algumas reflexões à luz do direito penal e da política criminal), in Separata do Boletim da Faculdade de Direito, Vol. LXVIII, Universidade de Coimbra, 1992, pp. 65 ss.

[4] No mesmo sentido, CAEIRO, Pedro, A Decisão-Quadro do Conselho …, op. cit., p. 1084. O autor defende que seria necessário estabelecer limites mínimos ao montante das vantagens branqueadas ou pelo menos que se restringisse o objecto apenas às vantagens provenientes de espécies de crimes presumivelmente geradores de valores elevados para que se pudesse considerar que a concorrência é ofendida, ainda que em termos de perigo abstracto.

[5] BRANDÃO, Nuno, Branqueamento de Capitais: O Sistema Comunitário de Prevenção, Coimbra Editora, 2002, pp. 21 ss. Ver ainda, MARTINS, A. G. Lourenço, Branqueamento de Capitais: Contra-medidas a Nível Internacional e Nacional, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 9, Fasc. 1.º, Janeiro-Março, Coimbra Editora, 1999, pp. 453. O autor entende que “ao crime denominado de branqueamento de capitais subjaz essencialmente a protecção de interesses económicos e financeiros nos quais sobrelevam a preservação de uma sadia concorrência entre empresas e pessoas singulares, que sairia de todo desvirtuadas pela circulação de capitais ilícitos, assim como a não contaminação das instituições financeiras que em qualquer Estado se querem credíveis e sólidas.”

[6] DIAS, JORGE DE FIGUEIREDO, O Direito Penal Económico entre o Passado, o Presente e o Futuro, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 22, n.º 3, jul-set, Coimbra Editora, 2012, pp. 534 ss.


Liliana Santo de Azevedo RodriguesLiliana Santo de Azevedo Rodrigues é Advogada na QBB Advocacia, inscrita na Ordem dos Advogados de Portugal e na Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Rio Grande do Norte (OAB – RN). Possui graduação e mestrado em Ciências Jurídico-Empresariais pela Universidade Portucalense (UPT) e Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Atualmente, cursa o Doutoramento em Ciências Jurídico-Criminais na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (FDUC). Investigadora da Instituto Jurídico Portucalense. Professora na Escola de Gestão e Negócios da Universidade Potiguar (UnP), na graduação em Direito na Faculdade Maurício de Nassau, na Faculdade Estácio de Natal e na Faculdade Natalense de Ensino e Cultura (FANEC)/Universidade Paulista (UNIP). Professora convidada de Pós-Graduação do Centro Universitário do Rio Grande do Norte (UniRN).


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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