Quais as bases para a implantação do sistema acusatório no processo penal brasileiro? Reflexões a partir do III Congresso Mentalidade Inquisitória

19/04/2017

Por Paulo Incott – 19/04/2017

O Brasil é o único país na América Latina que ainda não passou, em sua história recente (últimos 30 anos), por uma reforma processual penal que permitisse a superação definitiva do modelo inquisitório.

Por quê? Quais as bases sobre as quais tal reforma pode ser estruturada? Bastará a alteração do Código de Processo Penal para que essa transformação se efetive?

Com o propósito de responder a estas perguntas, esteve palestrando na sede da OAB/PR o advogado e Professor de Direito Processual Penal da Universidade de Buenos Aires, Dr. Leonel González Postigo. A palestra ocorreu em consonância com o III Congresso Internacional Mentalidade Inquisitória.

O Professor González iniciou sua fala trazendo um breve histórico das reformas ocorridas nos últimos trinta anos por toda a América Latina no tocante aos sistemas processuais penais. Como bem demonstrou o professor, as reformas abrangeram não apenas o código processual penal em si, mas todo o sistema de condução da ação penal, de modo a permitir uma efetiva democratização do processo penal.

Conforme é perceptível num rápido estudo histórico, a América Latina se viu, nas décadas que precederam os anos 90 do século passado, imersas em sistemas de governo ditatoriais. A superação destes ofereceu aos países um enorme desafio no tocante a transformação de seus institutos políticos e jurídicos, com o fim de adequá-los aos moldes de um Estado Democrático de Direito.

Como parte sensível deste desenvolvimento, surgiu a necessidade de uma reforma processual penal ampla, incluindo mudanças nos mecanismos de investigação e a reestruturação do poder jurisdicional, bem como uma nova forma de se enxergar o processo, ou seja, do modo de se articular seus princípios fundantes.

De acordo com os estudos conduzidos pelo Professor González, podem ser percebidas duas grandes lições na reforma dos mecanismos processuais penais dos países latino-americanos nas últimas décadas.

A primeira lição diz respeito a fase inicial da passagem de um processo penal marcado pela mentalidade inquisitória para o modelo acusatório. Trata-se da importância dada a oralidade em todas as fases do processo. Falaremos sobre ela adiante, quando tratarmos da “agenda” sugerida como projeto de transformação do processo penal brasileiro.

Porém, a oralidade não é a única medida necessária para a implantação de um modelo, ou melhor, de uma mentalidade acusatória no processo penal. O exemplo de reforma chileno demonstrou de modo claro a relevância do debate acerca do papel atribuído ao juiz no processo penal. Afinal, que tipo de juiz queremos numa democracia?

Dessa questão se percebeu que a mera alteração nos códigos de processo penal não era medida suficiente, capaz de afastar a sistemática inquisitória, arraigada historicamente na condução das ações penais durante o período das ditaduras.

Um próximo passo sensível no projeto de democratização passou pela reforma geral dos papéis desempenhados por todos os atores do processo. Ministério Público, Defensoria, Advocacia privada e, em especial, Magistratura precisaram ser envolvidos na reformulação. Percebeu-se que os juízes não só precisam ser desconectados da atividade acusatória, como também precisam ser liberados de todo entrave ligado a tarefas administrativas que redundam em perda de tempo.

Partindo da elucidação destas lições e dos resultados obtidos, surge a questão: por que o Brasil não vivenciou ainda esta transformação em seu sistema processual penal?

A resposta pode ser encontrada, segundo o professor González, na formação de nossos juristas, fadados a buscarem seus referenciais em modelos europeus, fundados em códigos formulados num cenário não democrático, como é o caso do nosso código de processo penal. Ainda que diversas reformas menores tenham ocorrido desde a promulgação do nosso CPP, pode-se dizer sem receio que nosso processo penal não passou pela constitucionalização devida após 1988. Mais do que isso (ou menos para ser correto tecnicamente), nossos juristas não têm sido talhados num modelo de mentalidade acusatória.

Feito este diagnóstico realista, parte-se para a derradeira questão: quais os passos necessários para a implementação de um processo penal de viés democrático? Implica dizer: qual a agenda proposta por González para efetivação de um sistema com mentalidade acusatória no Brasil?

O professor argentino elenca cinco eixos, ou bases, sobre as quais entende ser possível a construção de um processo penal com feição democrática. São eles:

1. Oralidade em todas as fases do processo

A importância deste pilar é descrita em duas vertentes: a primeira se vislumbra no fato de que a história de reformas em outros países da América Latina demonstrou que a oralidade foi primordial no “destravamento” do avanço para um modelo acusatório. O fato da oralidade garantir a transparência de todas as decisões tomadas no decurso do processo penal serve de forte freio contra abusos e autoritarismos, operando como alavanca para conquistas subsequentes de garantias processuais.

Um segundo motivo pelo qual a oralidade mostra ser pedra angular na democratização do sistema processual penal é técnico. Apenas num processo em que a oralidade desempenhe um papel central a imparcialidade e o contraditório podem se fazer presentes de modo pleno.

O professor González cita um campo em que a oralidade precisa ainda conquistar espaço, mesmo nos mais avançados estágios de reforma: a fase recursal. Segundo ele essa é uma luta a ser travada em diversas frentes, de modo a garantir que a oralidade se faça presente na totalidade do processo penal.

2. Resgatar o Juiz da degradação funcional e da subordinação

A degradação se dá pelo fato de que ao juiz, no modelo brasileiro atual, se conferem uma série de atribuições distintas daquela que lhe é constitucionalmente designada. Para além da urgente necessidade de criação de um juiz de garantias, apartado do juízo de instrução, é preciso permitir ao magistrado que se concentre naquilo que é sua função democrática precípua, desvinculando o mesmo de tarefas afetas a produção de provas ou questões administrativas. Discutir a competência dos juízes, de modo a fixa-la de modo claro, é passo fundamental na criação de uma mentalidade acusatória.

3. Recuperar a relação constitucional entre MP e Polícia

Que modelo de MP se deseja num Estado Democrático de Direito? O princípio da “obrigatoriedade” é sensato neste modelo de Estado? É real? Não legitima ele uma seletividade a ser operada pelas agências de repressão, com forte tendência a abusos e estigmatizações (seletividade primária – Zaffaroni)?

A tarefa de fiscalização e controle do aparato policial, com destaque para decisões de política-criminal, parece ser o modelo de atuação de um MP (na investigação) que mais coaduna com os primados das Constituições Republicanas.

4. Novo Conceito Processual Penal das Defensorias Públicas

Historicamente a Defensoria tem sido relegada a um papel secundário nas primeiras fases do processo penal.

Uma democratização torna necessária a alteração deste quadro, em dois aspectos principais: um primeiro na atribuição de prerrogativas de condução de investigações próprias, superando o papel estritamente negativo em relação aos produzido na investigação.

Num segundo sentido, através da atribuição da tarefa de controle da atividade do MP, sendo concedido à Defensoria os instrumentos para este controle, fechando assim o circuito do campo de forças atuantes no processo penal.

5. Implantação de uma Política Reducionista de Prisões Preventivas

De que modo esta política seria concretizada?

Primeiramente, através do melhor uso das medidas cautelares alternativas (Lei 12.403/11), com um controle regulado sobre sua aplicação.

Concomitantemente, como um segundo foco, através do progresso no uso e na qualidade da condução das audiências de custódia.

Conforme se manifesta o Professor González, o cenário brasileiro hoje no tocante ao processo penal é bastante lúgubre. Os relatos recentes não fornecem perspectivas realistas de que as medidas colocadas como agenda para transformação democrática se efetivem no curto prazo.

Porém, é nisso que iniciativas como a deste evento, encabeçado pelos pesquisadores liderados pelo Prof. Jacinto Coutinho, mostram sua relevância. A vinda do Professor González a Curitiba, suas percepções e sua fala tem o poder de produzir as reflexões e posteriores ações que permitirão as mudanças necessárias. Como bem concluiu o Professor, citando a lição de Paulo Freire, “estudar não é um ato de consumir idéias, mas de criá-las e recriá-las”.

“Criar” a mentalidade acusatória, que por fim conduzirá o processo penal brasileiro à democratização, deve ser objetivo específico de todos os criminalistas compromissados com a constitucionalização do sistema penal.


paulo-incott. . Paulo Incott é Advogado. Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal. Pós-graduando em Criminologia. Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal. . .


Imagem Ilustrativa do Post: Air Shaft, AKA Skylight // Foto de: Steve Snodgrass // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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