Punibilidade concreta como condição da ação penal: o reconhecimento da prescrição antecipada sob a perspectiva processual

26/01/2016

Por Marlom Formigheri - 26/01/2016

A (in)aplicabilidade da prescrição projetada (também conhecida como antecipada, virtual, hipotética ou em perspectiva) já foi objeto de inúmeros debates tanto na doutrina quanto na jurisprudência. Não obstante, a discussão continua atual e ainda há diversos processos tramitando com a certeza de que, ao final, será reconhecida a extinção da punibilidade do réu pela prescrição.

Não se pretende entrar na discussão acerca dos custos gerados (principalmente tempo e dinheiro) pela tramitação de um processo que, desde o seu nascedouro, já se sabe que não alcançará uma pena - esse tema já foi tratado com precisão por Alexandre Morais da Rosa[1] -, mas de enfrentar técnica e frontalmente os (frágeis) argumentos sustentados pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal, através de outra perspectiva processual, voltada ao princípio da necessidade e às condições da ação penal.

Há tempos o Supremo Tribunal Federal (RE 602527 QO-RG/RS) e o Superior Tribunal de Justiça (Súmula 438 do STJ) rechaçam a possibilidade de reconhecer a prescrição com base na pena em perspectiva, sustentando seu posicionamento em duas premissas: (1ª) ausência de amparo legal à denominada prescrição em perspectiva e (2ª) violação aos princípios da obrigatoriedade da ação penal, da ampla defesa e da presunção de não-culpabilidade.

Muito já se falou sobre o assunto e, com o tempo, surgiram diversas teses jurídicas buscando justificar o reconhecimento da prescrição projetada. Alguns tentaram expandir o conceito de justa causa; Outros buscaram ajuda na teoria geral do processo, partindo da "ausência de interesse de agir"; Teve ainda quem tratou do assunto sob a ótica das condições da ação (adequadas ao processo penal), porém restringindo a ausência de punibilidade concreta apenas às causas de extinção da punibilidade.

A proposta de ampliar o conceito de justa causa vem com boa intenção, mas pensamos não ser a melhor técnica processual, na medida em que justa causa e punibilidade não se confundem. O "Interesse de agir", por sua vez, trata-se de categoria importada do processo civil inaplicável ao processo penal (não precisamos falar sobre a sua completa inadequação). Já aqueles que, de alguma forma, restringem a ausência de punibilidade concreta apenas às causa de extinção da punibilidade (com fundamento no revogado art. 43, inciso II, do CPP), acabam por ir de encontro ao posicionamento do STJ e STF quanto à ausência de previsão legal da extinção da punibilidade pela prescrição projetada, pois, por elementar, a extinção da punibilidade ainda não poderá ser decretada se efetivamente não ocorreu nenhuma das hipóteses elencadas no art. 107 do CP - o que não significa a existência de punibilidade concreta, como explicaremos a seguir.

Entendemos - e aqui está o ponto nevrálgico da questão - que o reconhecimento da prescrição antecipada deve ser visto sob a ótica da exigência de punibilidade concreta, enquanto condição da ação penal diretamente vinculada ao princípio da necessidade (e não somente às causas de extinção da punibilidade).

Como bem pontuado por Aury Lopes Jr., o processo penal é o caminho necessário para a pena. Segundo o autor, existe uma íntima e imprescindível relação entre delito, pena e processo, de modo que são complementares. Não existe delito sem pena, nem pena sem delito e processo, nem processo penal senão para determinar o delito e impor uma pena[2].

A primeira pergunta que fica para o Supremo Tribunal Federal e para o Superior Tribunal e Justiça é: se o processo é o caminho necessário para a pena e não há sentido de existir processo senão para impor uma pena, qual a finalidade de um processo penal contra uma determinada pessoa que certamente terá extinta sua punibilidade após o transito em julgado do processo (na hipótese de sentença penal condenatória)? Elementar que não há lógica nenhuma.

Do princípio da necessidade é que surge a punibilidade concreta (e não somente do revogado art. 43, inciso II, do CPP). O processo como instrumento necessário para aplicação de uma pena (nulla poena sine iudicio) não tem sentido se não há nenhuma possibilidade de punibilidade concreta. Nas palavras de Nereu José Giacomolli (à época Desembargador do TJRS), não há punibilidade concreta quando o processo é utilizado para instrumentalizar o nada, o vazio, o inócuo e para maquiar situações cujo resultado será ineficaz [3]. Desta feita, punibilidade concreta como condição da ação penal possui um sentindo mais amplo, sendo sua ausência caracterizada por qualquer causa que impossibilite a aplicação de uma pena ao final do processo, ainda que na hipótese de sentença penal condenatória transitada em julgado.

A punibilidade concreta está para o processo, assim como o periculum libertatis está para a prisão preventiva. Sem perigo de liberdade, não há fundamento para a prisão cautelar. Sem punibilidade concreta, não há fundamento para o processo penal.

Para dar efetividade ao princípio da necessidade, é imprescindível que não limitemos a ausência de punibilidade concreta apenas às causas de extinção da punibilidade. Não estar extinta a punibilidade não significa automaticamente que há punibilidade concreta, pois há inúmeros outros fatores que, de antemão, já se sabe que poderão impedir a aplicação de uma pena ao final do processo, ainda que na hipótese de sentença penal condenatória transitada em julgado.

Um exemplo de ausência de punibilidade concreta que não se trata de causa de extinção da punibilidade são as chamadas imunidades penais absolutas ou escusas absolutórias (art. 181 do Código Penal). Note-se que o art. 181 do Código Penal fala em isenção de pena, não em exclusão da ilicitude do fato ou culpabilidade do agente, ou seja, o crime, em tese, existe, porém está afastada a possibilidade de aplicação de pena. Não é caso de rejeição pelo inciso I do art. 395 do CPP, pois não se trata de inépcia; não é caso de rejeição da denúncia pelo inciso III do art. 395 do CPP, pois isenção de pena não se confunde com ausência de indícios de autoria e materialidade delitiva (lembre-se que o crime existe); também não é causa de absolvição sumária (art. 397 do CPP), pois não se trata de nenhuma excludente da ilicitude do fato ou culpabilidade do agente, tampouco causa de extinção da punibilidade. O reconhecimento da isenção de pena somente está previsto expressamente no art. 386, inciso VI, do CPP, ou seja, quando da sentença.

Façamos, então, a segunda pergunta ao STF e ao STJ: Se o acusado é isento de pena, há necessidade de processo? Devemos seguir todo o curso do processo para absolver o réu somente em sentença, nos termos do art. 386, inciso VI, do CPP (já que não há amparo legal para seu reconhecimento anterior)?

Elementar que não. A exigência de punibilidade concreta enquanto condição da ação impede o exercício da ação penal (seja ela pública ou privada) nos casos (i.) em que já se operou a extinção da punibilidade, (ii.) nas hipóteses em que já se tenha certeza, de antemão, da futura ocorrência da extinção da punibilidade (exemplo da prescrição antecipada), bem como (iii.) nos casos de isenção pena. Em todos esses casos existe certeza, desde o início, que o processo não alcançará uma pena.

O que se propõe em relação a prescrição projetada, portanto, não é a extinção da punibilidade pela prescrição, pois, de fato, ela ainda não ocorreu, mas apenas a rejeição da denúncia por ausência de punibilidade concreta (enquanto condição da ação), nos termos do art. 395, inciso II, do CPP, tendo em vista que já se sabe, de antemão, que não haverá nenhuma possibilidade de aplicação de uma pena ao final do processo.

Trata-se de um evento futuro certo que retira por completo a eficácia do processo penal. É como marcar uma viagem para visitar os parques da Disney já sabendo que eles vão estar fechados, ou seja, não adianta ir até lá para nada[4]. Quem sabe aproveitemos as "Outlets"! Quem sabe, no processo, "aproveitemos" a prisão preventiva para "não perder a viagem".

É importante que fique bem claro e este é o ponto crucial: punibilidade concreta é uma coisa, extinção da punibilidade é outra. É perfeitamente possível rejeitar a denúncia por ausência de punibilidade concreta (art. 395, inciso II, do CPP) sem que tenha ocorrido, necessariamente, a extinção da punibilidade.

Outro exemplo: uma pessoa com doença crônico-degenerativa, em caso terminal, mantida viva somente por meios artificiais (prática conhecida como distanásia), deve ser processada por um crime cometido antes de se encontrar nesse estado? Há necessidade de processo? Note-se que, embora ainda não possa ser reconhecida, a extinção da punibilidade será certa: pela morte do indivíduo ou pelo indulto humanitário. Mas será que devemos instaurar um processo - com todo seu custo - para que, ao final, o réu seja (i.) absolvido, ou (ii.) condenado, porém extinta a punibilidade pela morte, ou, ainda, (iii.) condenado, porém extinta a punibilidade pelo indulto? Para que um processo? Para "garantir a obrigatoriedade da ação penal, da ampla defesa e da presunção de não-culpabilidade"?  Ora, trata-se de um absurdo. Nesse caso, não haveria sequer possibilidade de defesa (autodefesa), além do que um processo criminal se traduziria em verdadeira violação à dignidade da pessoa humana.

Não há como reconhecer a extinção da punibilidade de um paciente com doença crônico-degenerativa, em caso terminal, mantido vivo somente por meios artificiais, pois ainda não há morte ou condenação para concessão do indulto; Não há como reconhecer a extinção da punibilidade pela prescrição da pena em concreto (nos casos de prescrição projetada), pois ainda não há trânsito em julgado da sentença penal condenatória; Não há como absolver o acusado em razão da isenção da pena já no início do processo, pois não há como aplicar o art. 386, inciso VI, do CPP antes de existir uma sentença. Perfeito, essas conclusões são corretas! Contudo, todos esses casos esbarram no que se entende por punibilidade concreta e não há como iniciar um processo, pois falta uma indispensável condição da ação. Daí porque há sim previsão legal para o reconhecimento da prescrição projetada (entendida como a prescrição que irá acontecer) e está no art. 395, inciso II, do CPP (ausência de condição da ação, qual seja, punibilidade concreta), ainda que não seja possível extinguir a punibilidade.

A fórmula é simples: a extinção da punibilidade pela prescrição, embora não tenha ocorrido, será certa, não haverá possibilidade de cumprimento de pena, não há punibilidade concreta, não há necessidade de processo; a extinção da punibilidade pela morte ou pelo indulto, embora não tenha ocorrido, será certa, não haverá possibilidade de cumprimento de pena, não há punibilidade concreta, não há necessidade de processo; Nos casos de isenção de pena não poderá o agente cumprir pena, ainda que se reconheça a autoria e materialidade delitiva, sendo certa sua absolvição nos termos do art. 386, inciso VI, não existindo punibilidade concreta, não há necessidade de processo. Este raciocínio é aplicável para qualquer caso que já se tenha conhecimento, de antemão, que não será possível a aplicação de uma pena ao final do processo.

Quanto à obrigatoriedade da ação penal, trata-se de argumento extremamente frágil e facilmente impugnável. Elementar que, se falta condição para o exercício da ação penal, não há falar em obrigatoriedade, muito menos em presunção de inocência (nem vamos falar que não cumpre ao réu provar sua inocência no processo penal) e ampla defesa, já que não haverá processo nem acusação formal. Só falta também ser obrigatória a ação penal nas hipóteses em que não há justa causa.

Já concluindo, em tempos onde o acúmulo de processos é crescente e a deficiência estrutural do estado é patente, precisamos refletir melhor sobre os fundamentos do processo penal, de modo que a exigência de punibilidade concreta se mostra não apenas como uma condição para o exercício da ação penal, mas como um instrumento apto a garantir maior eficiência na prestação jurisdicional, excluindo da análise do Poder Judiciário processos absolutamente ineficazes.


Notas e Referências:

[1] Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-set-26/limite-penal-nao-reconhecer-prescricao-antecipada-crime-jogar-nosso-dinheiro-fora

[2] LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 33.

[3] Habeas Corpus nº 70017025438, Sétima Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Nereu José Giacomolli, Julgado em 26/10/2006.

[4] Evidente que não se pretende comparar um parque de diversões com pena, são absolutamente opostos. O exemplo é apenas para demonstrar a "esquizofrenia" que seria seguir um caminho que já se sabe que não alcançará sua finalidade.


Marlom Formigheri. . Marlom Formigheri é Especialista em Ciências Penais pela PUCRS, Advogado Criminalista. www.defesacrime.com.br . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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