Projeto da Hidrovia Araguaia-Tocantins: divergências entre desenvolvimento e justiça ambiental na Amazônia

12/06/2024

Notas introdutórias

A hidrovia Araguaia-Tocantins é um projeto antigo de governo, cujo objetivo é ampliar a integração do país pelas águas. A ideia principal por trás da empreitada é o favorecimento de uma via navegável pelo rio para otimizar e ampliar o fluxo de grandes embarcações transportadoras de commodities. Entretanto isso implica na derrocagem de uma área denominada Pedral do Lourenço, fragmento essencial para a viabilização dos modos de vida das populações locais e da pesca na região.

A bacia hidrográfica do Araguaia-Tocantins tem uma importância estratégica para o Brasil. Conforme estudos de Pereira et al. (2022), isso se dá em razão de sua extensão geográfica, de caráter inter-regional, ligando o centro-oeste com a Amazônia. Além disso, há grande influência de integração em decorrência da sua navegabilidade e papel estratégico na articulação dos centros produtores de commodities e os mercados internacionais (Pereira et al. 2022, p. 180).

O ponto principal de atenção nesse debate implica dizer que essa grande operação traz impactos socioambientais irreversíveis para o ecossistema, como a degradação da fauna, e a drástica alteração dos modos de vida tradicionais de comunidades ribeirinhas moradoras da região (extrativistas, quilombolas, agricultores familiares), que têm como principal fonte de subsistência o extrativismo pesqueiro.

Conforme dados apontados pelo Ministério Público Federal (MPF), apenas em 2018 o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto Ambiental (Rima) foram apresentados integralmente ao órgão licenciador. E, desde que chegou ao Ibama, pelo menos quatro pareceres técnicos foram produzidos pelos fiscais, indicando insuficiência, erros e lacunas no documento que deveria conter exímio rigor técnico. Em decorrência dessas circunstâncias, o MPF e o IBAMA têm afirmado reiteradas conclusões de que os estudos continuam insuficientes[1].

Diante do contexto narrado, este estudo se concentra na análise crítica do Relatório do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) da hidrovia Araguaia-Tocantins e seu principal objetivo é pontuar questionamentos sobre os impactos socioambientais e econômicos trazidos pelo projeto, bem como o conceito de desenvolvimento que molda seu bojo de operação, analisando, ainda, as influências nos espaços de tomadas de decisões e o contexto de violações de direitos humanos sofridas pelas populações atingidas direta e indiretamente pelo projeto.

A seguir serão respondidas algumas perguntas que dialogam com esta análise para traçar um panorama geral sobre o EIA e seus desdobramentos no contexto do projeto.

 

Amazônia e "desenvolvimento" sob a perspectiva do EIA

Ao falarmos de concepções de desenvolvimento tratadas no Estudo de Impacto Ambiental analisado, nos atentamos ao que ensina Malheiro et al. (2021), orientando que há uma expressiva “geografia do colapso”, literalmente desaguando em profundos impactos socioambientais e territoriais de populações tradicionais que historicamente já carregam marcas de destruição oriundas de projetos semelhantes, como, por exemplo, o caso da hidrelétrica de Tucuruí.

Nos moldes da hidrovia, o conceito de desenvolvimento seria a expansão das rotas de abastecimento do agronegócio. Resta questionar, então, para quem serve esse modelo? Seu rastro de destruição apenas enxerga o Rio Tocantins sob o aspecto de sua monofuncionalidade enquanto corredor de exportação para mercados nacionais e internacionais. Temos em seu escopo, portanto, um conceito de desenvolvimento explicitamente mercantil.

Sobre isso, o instrumento de EIA do projeto diz que a necessidade de Planos de Desenvolvimento Regional mais consistentes aponta para uma integração de um novo tipo, a auto-sustentação, sob o princípio da capacidade de suporte do conjunto do ecossistema em tela, e constitui-se em uma nova era onde se reconhece e se pratica a utilidade dos recursos hidroviários locais, levando a questões como: (a) o ritmo do crescimento demográfico do conjunto da área de influência do sistema global onde se insere a hidrovia Tocantins-Araguaia;

(b) o intercâmbio de novo tipo pela fixação de novos capitais e populações extra região promovendo uma integração intra e inter-regional sustentada e, por fim (c) a tendência favorável para o desenvolvimento e a consolidação da integração do Brasil Central, a Amazônia Legal, a Pan-Amazônica e sua influência indireta à nordeste e sudeste através de vetores voltados para o mercado internacional[2].

Para traçar uma linha lógica do conceito de desenvolvimento, é necessário entender suas escalas e como essas obras são caracterizadas. Sobre este ponto, para Ribeiro (2014, p. 51) a importância da escala dos projetos é percebida em designações tais como “grandes obras”, “macrodesenvolvimento” e “macroengenharia”. Estudos do pesquisador reforçam, ainda, a ideia do “gigantismo” e como esse aporte é percebido com facilidade, por exemplo, nas grandes construções hidrelétricas, caracterizadas por represas imponentes que, em muitos casos, se desdobram ao longo de vários quilômetros. Nesse sentido, o indivíduo se torna “apequenado” diante dos grandes empreendimentos em razão da estrutura.

Segue essa mesma linha o pensamento dos estudos de Pereira et al. (2022) ao corroborar com a ideia a respeito dos moldes dos grandes projetos, estando a hidrovia Araguaia-Tocantins, estabelecida dentro desse debate. Sua magnitude é estrutural, mas não comporta um modelo de desenvolvimento includente.

Na concepção de Gudynas (2015, p. 400), na cultura latino-americana, o desenvolvimento se encontra essencialmente enraizado pelo extrativismo e por valores coloniais e antropocêntricos subordinadores de grupos étnico-raciais não brancos e da natureza. Esse é um modelo de apropriação do espaço reiteradamente experimentados quando da conceituação de desenvolvimento do ponto de vista apenas do capital, com vistas a gerar lucro.

É sobre essa configuração de lógica impositiva que Rodrigues e Lima (2020) destacam essa evidência no processo de formação socioeconômica da Amazônia brasileira. Historicamente, houve na região a imposição de modelos espoliativos dos recursos naturais renováveis e não renováveis, intitulados de grandes projetos e incorporados como rodovias, ferrovias, hidrovias, hidrelétricas, dentre outros empreendimentos de elevado porte.

Esse modelo segue sendo alimentado por agentes econômicos que exercem grande influência no planejamento de políticas públicas capitaneadas pelo Estado brasileiro, seguindo essa mesma lógica de desenvolvimento excludente de suas populações e modos de vida.

Finalmente, para entender o conceito de desenvolvimento por trás da estrutura do projeto de hidrovia Araguaia-Tocantins é necessário resgatar o contexto de propositura desses “grandes projetos”, tema aprofundado nas próximas seções.

O que se configura nos bastidores dessa empreitada é uma cadeia concatenada de violações de direitos humanos e direitos socioambientais, descortinando a ideia de um progresso que não agrega direitos humanos, mas os suprime por meio da “desterritorializaçao” dos sujeitos amazônicos alvos das operações (Almeida e Marin, 2010, p.141).

Em síntese, o instrumento analisado traz em seu bojo uma concepção de desenvolvimento ainda com heranças colonialistas, onde os interesses coletivos não são considerados devido às manobras de aceleração da tomada dos territórios.

 

Agentes, espaços e etapas do projeto da hidrovia Araguaia-Tocantins

A interação entre o desenvolvimento de infraestrutura e a gestão de recursos financeiros provenientes da exploração na Amazônia é um tema complexo e heterogêneo. O Estudo de Impacto Ambiental (EIA) da Hidrovia Tocantins-Araguaia, elaborado pela Fundação de Amparo e Desenvolvimento da Pesquisa (FADESP), apresenta uma análise dos aspectos jurídicos, programas setoriais, descrição do empreendimento, diagnóstico ambiental e avaliação de impactos[3]. Este documento é fundamental para entender as implicações ambientais, sociais e econômicas do projeto e para planejar medidas que minimizem os impactos negativos.

Em termos gerais, as obras da Hidrovia Araguaia-Tocantins, se dividem em 03 etapas, sendo a 1ª etapa: execução de obras de dragagem do rio ao longo de 52 km entre os municípios de Marabá e Itupiranga, 2ª etapa: realização do derrocamento, que é a explosão das rochas que compõem o leito do rio em cerca de 35 km da região, entre a Ilha do Bogéa e a localidade de Santa Terezinha, no Lago de Tucuruí e 3ª etapa: as águas deverão ser dragadas em um trecho de 125 km entre os municípios de Tucuruí e Baião.

No tocante ao projeto da hidrovia que se iniciou na década de 70, e após anos, ainda se discute as diversas incongruências do EIA. A dragagem e derrocamento da via navegável do rio Tocantins, é uma obra de intervenção que impacta o território paraense. Dentre os locais afetados pela obra, o Pedral do Lourenço é considerado um dos locais fundamentais para a instalação da hidrovia Araguaia-Tocantins.

Desde a década de 90, já foram emitidas três licenças prévias de autorização do Ibama, sendo a mais recente de outubro de 2022. Após a última licença a obra foi concedida a DTA Engenharia, sendo o custo previsto de R$1,1 bilhão aos cofres públicos. Entretanto, existem algumas condicionantes que deverão ser cumpridas, o que inclui a elaboração do Plano de Gestão Ambiental (PGA), a aprovação do projeto básico e a elaboração do projeto executivo.

Em continuidade, segundo matéria publicada no site da CNN Brasil em 06/08/2023, que exemplificou o cronograma de obras no pedral, traz o seguinte: em junho de 2016, foi emitida a ordem de serviço; julho de 2017, levantamento de dados do projeto; dezembro de 2017, elaboração do projeto básico; julho de 2018, projeto executivo; setembro de 2018, estudo de impacto ambiental; novembro de 2022, emissão de licença prévia.

A expectativa do Ministério de Portos e Aeroportos, era que em dezembro de 2023, tivesse sido expedida a emissão de licença de instalação e em janeiro de 2024, iniciasse as obras[4]. Contudo, em matéria veiculado no site G1 da editora globo.com, em 17 de janeiro de 2024, demonstra que a emissão da licença de instalação, ainda não foi emitida, pois existem etapas a serem cumpridas, tais como audiências públicas que estão sendo realizadas pelo MPF, tendo como nova previsão de início das obras para março de 2024[5].

Ao longo deste contexto, pode-se destacar, que os principais agentes envolvidos no projeto, seriam o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), Confederação Nacional dos Transportes (CNT), Ministério dos Portos e Aeroportos, comunidades locais e organizações não-governamentais e recentemente, a empresa vencedora da licitação, a DTA Engenharia.

Por fim, os agentes envolvidos nos espaços de tomada de decisão, incluem órgãos ambientais como o Ibama, assembleias legislativas, ministério público estadual e federal, câmaras municipais e fóruns de discussão com a sociedade civil. Sendo que, são nesses espaços que se debate a viabilidade dos projetos, os impactos previstos e as compensações necessárias são discutidos, entretanto, várias denúncias relatam a falta de consulta prévia às comunidades atingidas, o que torna o processo de tomada de decisão complexo e conflituoso.

 

Participação popular: entre silenciamento e prejuízos às populações

A falta de participação das populações atingidas nas fases de elaboração desses projetos destinados à Amazônia, como o da Hidrovia Araguaia-Tocantins, é uma preocupação legítima. A ausência de consulta prévia, livre e informada viola os direitos das populações tradicionais que vivem nessas áreas impactadas pelos projetos.

Em referência a entrevista concedida ao Infoamazonia por Edir Augusto Dias, o geógrafo da Universidade Federal do Pará ressalta sobre a falta de adequação do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) em relação aos aspectos sociais e econômicos da dragagem do rio. Segundo ele, é essencial analisar como essa intervenção pode afetar setores como a pesca, agricultura e turismo local, levando em consideração as comunidades ribeirinhas que dependem do rio para sua subsistência. Essa análise mais abrangente seria fundamental para evitar impactos negativos nessas comunidades e garantir a sustentabilidade da região.

Importante destacar que, conforme Marés (2019), a partir do reconhecimento pela Constituição Brasileira de que os povos tradicionais têm o direito de existir enquanto povo, devem também ter o direito à autodeterminação, o que conduz a necessidade de que seja atendida a necessária consulta prévia, livre, bem informada e de boa-fé atendendo a Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário.

No entanto, o que se percebe do presente instrumento é a falta de transparência durante o processo de licenciamento ambiental, uma vez que a população local não teve oportunidade de participar das discussões e apresentar suas preocupações e sugestões, de modo que a obrigação convencional da consulta não restou atendida durante todo o processo.

Apesar da magnitude do projeto, os povos tradicionais têm sido excluídos dos estudos, inviabilizando sua participação. Além disso, a ausência de consulta prévia aos moradores das comunidades quilombolas e aos pescadores dos municípios afetados pela hidrovia levanta preocupações sobre possíveis impactos socioambientais da obra. A falta de diálogo com os grupos que serão diretamente afetados pela hidrovia pode resultar em violações de direitos, como a perda de terras e recursos naturais, a degradação do ambiente e a interferência nas atividades econômicas dessas comunidades, além de afetar diretamente os modos de vida dessas populações.

A falta de inclusão desses grupos nos estudos também levanta questões sobre a legitimidade e a transparência do processo de licenciamento ambiental da obra. A consulta prévia é um princípio fundamental para o reconhecimento e a garantia dos direitos das comunidades tradicionais assegurada constitucional e convencionalmente na Convenção 169 da OIT.

É imprescindível que o Governo Federal ouça e inclua todas as comunidades tradicionais afetadas pelos planos da hidrovia nos estudos ambientais da obra de maneira adequada, pois o consentimento das comunidades deve ser obtido de forma livre, prévia e informada. Isso significa que as comunidades devem ter a oportunidade de entender reiteradamente os impactos da hidrovia e suas alternativas, e ter o direito de aceitar ou rejeitar a proposta, devendo ser observado o seguinte:

A obrigação da consulta deriva da necessidade de os Estados nacionais preservarem os direitos dos povos — ou, dito de forma inversa, a incolumidade dos direitos dos povos tradicionais gera aos Estados a obrigação de consultar. É claro que a consulta deve ser feita pelas instituições representativas de cada povo. É neste exato ponto de inflexão que reside a possibilidade do rompimento com as práticas de subordinação ou das instituições representativas. (Marés, 2019, p. 30 e 31)

A não realização de consulta prévia, a exclusão de grupos afetados e a não observância de procedimentos efetivamente inclusivos a partir das perspectivas desses povos atingidos pela hidrovia vai contra as diretrizes do desenvolvimento sustentável, que preconizam a participação social, a igualdade e a justiça ambiental. Ao envolver as comunidades afetadas pelo projeto da Hidrovia Araguaia-Tocantins, que contemplará o Programa Aceleração do Crescimento (PAC), o Estado Brasileiro garanta a proteção dos direitos às populações tradicionais afetadas, conforme estabelecido na legislação brasileira, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Essa convenção reconhece e protege os direitos das comunidades indígenas e tradicionais, incluindo o direito à participação em decisões que afetam seus territórios.

Ignorar essas comunidades é um grave equívoco, que pode resultar em danos irreversíveis ao meio ambiente e às populações locais. É fundamental que o Governo Federal revise sua abordagem e inclua todas as comunidades afetadas nos estudos ambientais da obra.

Além disso, é importante ressaltar que essas comunidades tradicionais possuem um profundo conhecimento e conexão com o ambiente em que vivem. Suas experiências e saberes são fundamentais para a análise e mitigação dos impactos ambientais da hidrovia.

 

Direitos humanos em discussão no EIA: promoção ou exclusão?

Em primeiro momento, a discussão em torno dos direitos humanos das populações atingidas passa pelo reconhecimento dessas populações como atingidas pelo empreendimento, como aduz Vainer (2008). O projeto da Hidrovia possui semelhanças com outros projetos implantados no Estado, resguardando algumas especificidades. Por se tratar de uma intervenção que não desloca diretamente famílias (a população pode ser deslocada ao longo do projeto por fatores econômicos e sociais, mas sua sua construção não necessita de desapropriações), essa característica pode pressupor para alguns que os impactos são menores, e, portanto, os direitos humanos violados correm o risco não serem contabilizados corretamente, em toda sua dimensão.

Os estudos apresentados para a construção da Hidrovia falam em mitigação dos efeitos negativos, feitos através de programas voltados principalmente para a recuperação ambiental, no entanto, não reconhece como potencial os danos causados e não propõe grandes medidas para enfrentar os impactos financeiros da população, entre outros impactos. Eles reconhecem a pesca como sendo um fator importante econômica e culturalmente, mas não consideram os impactos da obra como um fator que inviabilize essa atividade.

Assim, embora se considere a existência de potencial interferência do empreendimento sobre a pesca local, inicialmente não se verifica que tal fato acarretará prejuízos aos pescadores, inviabilidade da permanência dessa atividade e tampouco comprometimento dos meios de subsistência dessas comunidades pesqueiras que possa ser considerado como deslocamento econômico passível de ações e investimentos compensatórios. Conforme análise contida na avaliação de impactos, o impacto “Diminuição da atividade produtiva pesqueira” foi previsto como de baixa relevância na região. (EIA, 2018, p. 2717)

Os efeitos negativos para a população durante e após a conclusão da obra são subnotificados, inclusive a respeito dos impactos na pesca, fato que levou o Ministério Público Federal a emitir a recomendação N° 02/2021/GAB I/PRM-MAB/PA, recomendando novos estudos devido a irregularidades no que tange a ictiofauna e a realização de consultas prévias prevista na Convenção 169 da OIT. As comunidades da Área de Influência Direta não foram devidamente consultadas como prevê a legislação, o que reduz a dimensão dos impactos. Há também reivindicações de comunidades ribeirinhas do baixo-tocantins, região muito dependente da pesca no Rio Tocantins, para serem incluídas nos estudos de impacto, que até o momento não foram.

Não há previsão de indenizações ou reparação para os pescadores que terão sua fonte de renda perdida, os quais segundo o próprio RIMA, contabilizam em torno de 12.000 pescadores só na Área de Influência Direta - AID (Marabá, Itupiranga, Nova Ipixuna, Breu Branco, Tucuruí e Baião). Os programas propostos pelo EIA não são capazes de minimizar os impactos para esses milhares de pescadores, principalmente no cenário de mudanças climáticas, onde os rios da Amazônia têm sofrido fortes secas.

A perspectiva de reparação/indenização também não é suficiente, tendo em vista que os impactos sobre essas populações se dão em lugares físicos, espirituais e simbólicos que não há como reparar. Lacerda (2021) ao falar sobre os impactos aos atingidos da Hidrelétrica de Belo Monte, pontua que essas transformações se dão em âmbito da subjetividade, se expressam na construção de novos desejos, expectativas e na adesão a novos projetos de vida. Há que se considerar que, principalmente os povos tradicionais, mas não só, possuem condições de vida que muito lhe agrada, convivendo em harmonia com a natureza e mantendo seus costumes. As transformações que podem ocorrer são impostas a esse povo, visto que na tomada de decisão sobre a construção do empreendimento elas não foram consultadas, como não estão sendo utilizadas no licenciamento da obra. Ademais, as mudanças no Rio comprometem todos os aspectos da vida das pessoas.

 

Impactos e danos socioambientais da implementação do projeto

Para que seja possível compreender os possíveis/reais impactos/danos gerados pelo projeto da Hidrovia Araguaia-Tocantins, é necessário compreender que o projeto tem como objetivo criar uma via fluvial industrial de transporte de cargas, primordialmente, para atender a exportação de grãos para o mercado externo, e pretende acelerar a expansão da fronteira agrícola nos cerrados, o que envolve 4 bacias hidrográficas pelo país – Araguaia, Marajó, Pará e Tocantins - entre as regiões norte e centro-oeste, 5 estados brasileiros (Pará, Mato Grosso, Tocantins, Maranhão e Goiás) e 300 municípios em toda a sua extensão (Brasil, 2021).

Merece destaque a informação de que o projeto parte de uma perspectiva de atender a uma demanda de transporte de cargas que ainda não existe, portanto, está fundada em uma expectativa futura e imprevisível que pode não se confirmar e frustrar o caráter econômico do empreendimento.

Neste trabalho, não se pretende e acredita-se que nem se conseguiria esgotar todos os impactos advindos do projeto analisado, tendo em vista que se trata de um empreendimento complexo por sua extensão, magnitude e pelos diversos sujeitos e interesses impactados e envolvidos na implementação do projeto, no entanto, serão tratados alguns dos impactos diretos e indiretos sociais e econômicos para a qualidade de vida da população da região afetada, de geração de emprego e renda, sobre o desenvolvimento humano sustentável que deve beneficiar a população da região como os povos indígenas, as comunidades ribeirinhas e povos tradicionais.

Em que pese o objetivo seja tratar dos impactos/danos sociais em maior escala, alguns dos impactos físicos que seriam experimentados pela população da região derivam da ação direta da implantação do projeto sobre a natureza, especificamente sobre a dinâmica fluvial dos afluentes através da dragagem de rios, alargamento e aprofundamento de leitos e de remoção de diques rochosos naturais, derrocamentos, o que, conforme apontado, ainda que de modo superficial no EIA do projeto, exercerá influência direta sobre os modos de vida e a subsistência das populações indígenas e ribeirinhas no curso da região, produzindo uma ampla reorganização dos sistemas fluviais envolvidos.

Também merecem destaque os impactos para a biodiversidade (fauna e flora), pois, com as modificações geradas pela necessidade de dragagem de rios e derrocamento de locais rochosos que são conhecidos por serem verdadeiros berçários de espécies de peixes que só se reproduzem e estão presentes naquela região e em ambientes com as características desses rios, fica severamente ameaçada a perpetuação dessas espécies, de modo que a base da alimentação e o sustento das populações ribeirinhas e indígenas são comprometidas com tais modificações pelo desaparecimento ou redução dessas espécies, bem como a alteração de todo ecossistema de que fazem parte (Relatório do Painel de Especialistas Independentes, 2000).

São cerca de 30 áreas indígenas que englobam 11 etnias distintas na área de influência do projeto e que dependem diretamente dos peixes da região para sobrevivência, o que coloca em risco a existência de povos inteiros nesse cenário, além das populações ribeirinhas que não foram apontadas pelo EIA, mas que dependem da pesca na região e também das pequenas plantações às margens dos rios e que, diante das modificações no espaço, poderão ser indiretamente afetadas (Relatório do Painel de Especialistas Independentes, 2000).

Quanto ao incentivo a produção de grãos em larga escala na região, que é o objetivo do projeto, entende-se que o estímulo à monocultura traz consigo um rastro de desemprego rural, já que a mão de obra empregada nessa atividade é mínima diante das tecnologias empregadas e acessíveis apenas a grandes proprietários e para uso em grandes propriedades, logo, pequenos produtores rurais não terão como competir com os grandes produtores e poderão ceder à pressão de vender suas propriedades diante da insustentabilidade de seus negócios em comparação aos grandes produtores.

Portanto, a partir do cenário de concentração fundiária, há um processo de êxodo rural dessas populações pressionadas pelo grupo detentor de maior poder político, econômico e tecnológico para os centros urbanos, nos quais o cenário de miséria, desemprego, relações de trabalho precarizadas e ausência de garantia de direitos básicos impera e ficará a cargo do Estado absorver para converter serviços de saúde, educação, saneamento para essas populações que irão sobrecarregar as cidades e ocupar as periferias locais. Esse é o já conhecido cenário apontado pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (2013) ao descrever esses e outros impactos na vida de mulheres atingidas por grandes empreendimentos, que acabam acumulando uma série de violências além dos impactos diretos dos empreendimentos.

Além disso, como impactos/danos indiretos, as obras para a implantação do projeto importarão em um grande fluxo migratório de pessoas de outras regiões para trabalhar na região e em busca de supostas oportunidades melhores, o que reflete em pressões sociais sobre a rede de infraestrutura dos núcleos urbanos que atendem esses locais como a necessidade de escolas, creches, hospitais, atendimentos em segurança pública, rede de amparo social, entre outras, questões essas que não foram apontadas pelo EIA como problemas a serem sanados, mitigados ou reparados pelos beneficiários do projeto, mas sim, pelo Estado, iniciativa privada e mercado local, de modo que os danos experimentados não são compatíveis com os benefícios apontados pelo projeto.

Sob outro prisma, retomando a ideia de que a hidrovia visa estimular a expansão agropecuária de grãos exportáveis, os danos relacionados com a concentração fundiária, o desemprego rural e o êxodo rural já tratados, o empobrecimento do solo advindo do estímulo a monocultura pode levar a comprometimento dos recursos hídricos pelo desmatamento, irrigação sem controle, assoreamento dos cursos d’água, poluição e ameaças à saúde humana pelo uso desregrado de agrotóxicos e fertilizantes, e acentuadas perdas de biodiversidade, entre outros problemas, portanto, é necessário reavaliar o projeto como um todo, diante dos elevados custos para as populações locais e para o ecossistema, afetando o modo de ser e existir dos povos tradicionais e a preservação do planeta.

 

Sugestões e recomendações de revisão, aperfeiçoamento e mudança do projeto da Hidrovia Araguaia-Tocantins

A partir dos estudos realizados, conclui-se que são necessárias medidas para revisar, aperfeiçoar e mudar o empreendimento visando a proteção dos direitos humanos, da democracia e da sustentabilidade na Amazônia a partir do plano de hidrovia que destruirá 35 km de santuário de peixes e afetará comunidades quilombolas no Pará, nas quais se incluem:

  1. Avaliação de impacto ambiental abrangente: realizar uma avaliação rigorosa dos impactos ambientais, sociais e culturais do empreendimento proposto, levando em consideração os efeitos no santuário de peixes e nas comunidades indígenas, ribeirinhas, quilombolas e de Essa avaliação deve ser conduzida por especialistas independentes e deve considerar as opiniões e perspectivas das comunidades afetadas com base na Convenção 169 da OIT.
  2. Proteção do santuário de peixes: implementar medidas efetivas para proteger o santuário de peixes durante as obras da hidrovia e em seu funcionamento posterior. Isso pode incluir a criação de reservas ou áreas de preservação específicas, restrições na atividade pesqueira durante as obras e a implementação de sistemas de monitoramento ambiental para garantir sua preservação.
  3. Respeito aos direitos das comunidades indígenas, ribeirinhas, quilombolas e de : garantir que os direitos dessas comunidades afetadas sejam respeitados e protegidos durante todo o processo. Isso inclui o reconhecimento e a titulação de suas terras, a consulta prévia, livre, informada e de boa-fé nessas decisões e a implementação de medidas para mitigar e compensar quaisquer impactos negativos que possam ocorrer em suas comunidades.
  4. Transparência e participação social/popular: envolver a sociedade civil, comunidades locais e especialistas independentes em todas as fases do processo de tomada de decisão sobre o empreendimento. Isso inclui disponibilizar informações claras e acessíveis sobre o projeto, realizar consultas públicas significativas, garantir o acesso à justiça ambiental, permitir a participação efetiva das partes interessadas afetadas em linguagem simples, utilizando os idiomas dos povos tradicionais e seus saberes e visão a respeito de território, sendo de comunidade, senso coletivo, cultura e conhecimentos sobre a biodiversidade da região.
  5. Alternativas sustentáveis: explorar e promover alternativas sustentáveis ao empreendimento proposto, que possam alcançar os mesmos objetivos de desenvolvimento econômico, mas minimizando os danos ambientais e sociais. Isso pode incluir a adoção de tecnologias menos invasivas, o fortalecimento de cadeias produtivas sustentáveis existentes na região e a busca de soluções que beneficiem tanto a economia local quanto a conservação ambiental, além de fortalecer o transporte através das embarcações que já navegam pela região, com um custo socioambiental bem menor do que o projeto aqui tratado.
  6. Monitoramento e fiscalização: implementar mecanismos efetivos de monitoramento e fiscalização para garantir a conformidade do empreendimento com as regulamentações ambientais e os compromissos Isso pode incluir a criação de equipes de fiscalização, a implementação de tecnologias de monitoramento ambiental e a aplicação de sanções adequadas em caso de violações.
  7. Abranger a área de impacto indireto nos estudos de impacto, compreendendo que, em que pese as águas sejam compreendidas como pertencentes à União, alterar o fluxo e as dinâmicas fluviais refletem impactos diretos e indiretos as populações que vivem às margens dos rios e que precisam ver reconhecido sua condição de atingidos, para que sejam também, reparados/indenizados adequadamente pelos danos que tiverem sofrido durante todo o processo de implementação do

Essas propostas visam garantir a proteção dos direitos humanos, da democracia e da sustentabilidade na região amazônica, buscando o equilíbrio entre o desenvolvimento econômico e a conservação ambiental.

 

Notas e referências  

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[1] Processo administrativo IBAMA: SEI 02001.000809/2013-80

[2] FUNDAÇÃO DE AMPARO E DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA (FADESP). Estudos de Impacto Ambiental da Hidrovia Tocantins-Araguaia: texto principal 1. Belém: FADESP, 2018. Disponível em: <http://emdefesadosterritorios.org/wp-content/uploads/2023/01/NT_08_PA_CFEM-1.pdf>. Acesso em: 10/12/2023.

[3] FUNDAÇÃO DE AMPARO E DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA (FADESP). Estudos de Impacto Ambiental da Hidrovia Tocantins-Araguaia: texto principal 1. Belém: FADESP, 2018. Disponível em: <http://emdefesadosterritorios.org/wp-content/uploads/2023/01/NT_08_PA_CFEM-1.pdf>. Acesso em: 10/12/2023.

[4] BARIFOUSE, Rafael. Ampliação da hidrovia Araguaia-Tocantins se arrasta por mais de 50 anos. CNN Brasil, Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/ampliacao-da-hidrovia-araguaia-tocantins-se- arrasta-por-mais-de-50-anos/. Acesso em: 18 dez. 2023.

[5] G1. MPF realiza audiências públicas sobre impactos da hidrovia Tocantins-Araguaia no Pará. Belém: Globo.com, 17 jan. 2024. Disponível em: https://g1.globo.com/pa/para/noticia/2024/01/17/mpf-realiza- audiencias-publicas-sobre-impactos-da-hidrovia-tocantins-araguaia-no-para.ghtml. Acesso em: 25 jan. 2024.

 

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