Processo penal? Pergunta lá no Posto Ipiranga

13/05/2017

Por Fernando Parente – 13/05/2017

Um dia desses, após finalizar uma das minhas aulas, um aluno me fez a seguinte pergunta: “Professor, afinal, o que é processo penal?”. A par da amplitude da pergunta, confesso que cocei a cabeça e silenciei. Fiquei mudo. Não soube o que dizer para aquele estudante que queria sair das trevas da ignorância jurídica neste ponto específico. Um silêncio escandaloso. Inspirado pela lembrança da propaganda de uma famosa rede de combustíveis no Brasil (com a qual não possuo vinculação alguma e dela não recebo qualquer valor), senti vontade de responder: pergunta lá no Posto Ipiranga.

Explico!

É difícil responder à indagação inicialmente aludida nessas linhas quando se tem execução provisória da pena autorizada frente a um princípio constitucional que exige o trânsito em julgado da sentença penal condenatória; quando a delação premiada é proposta ou aceita após longo período de prisão preventiva, que é revogada logo após a assinatura do acordo e sua homologação pelo juiz competente (também ocorre após a condenação, com alteração do regime de cumprimento da pena imposta e/ou sua redução); quando para que algumas nulidades classificadas de absoluta sejam declaradas se exige a prova do prejuízo para a parte que alega tal vício procedimental; quando se exige que uma nulidade classificada como absoluta tenha sido prequestionada pelo acórdão recorrido, sob pena de não conhecimento do recurso especial e/ou extraordinário neste ponto, mesmo sendo matéria cognoscível de ofício e a qualquer tempo; quando a inovação de tese, e não de fato, é vedada em sede de tréplica na sessão plenária do Tribunal do Júri, mesmo diante da possibilidade de a acusação assim proceder na réplica (momento anterior à tréplica, e que por isso daria oportunidade do contraditório à defesa, o que não ocorre quando a novel interpretação dos fatos surge em tréplica, segundo a jurisprudência); quando para se impugnar uma decisão o recorrente deve combater todos os fundamentos que por si só sustentam a decisão recorrida mas o judiciário não está obrigado a responder todos os fundamentos elencados pelas partes em defesa do seu direito; quando se admite a citação de réu de um processo penal em juízo diverso do processante com base apenas em acordo de cooperação entre os Tribunais de Justiça, a partir de aplicação subsidiária do antigo CPC (vigente à época), mesmo diante de regra expressa do CPP (art. 366) exigindo Carta Precatória para tal ato; quando a palavra da vítima, e por vezes da testemunha, é a rainha das provas (mormente em crimes sexuais e de roubo), como ocorria antigamente com a confissão; quando o procedimento da Lei de drogas mantém o sistema presidencialista da audiência e o interrogatório como primeiro ato de prova, antes das oitivas das testemunhas, mesmo ele sendo ato de defesa desde a Lei n.º 10.792/03; quando o juiz destitui o Núcleo de Prática Jurídica da defesa do réu e dos demais feitos patrocinados por este em seu juízo em razão de um dos advogados membros rejeitar fazer audiência para oitiva de testemunhas sem a presença do réu, que, preso, não foi conduzido ao juízo devido à greve dos agentes penitenciários, em nítida desobediência à ordem judicial emanada; quando em sede de audiência de custódia é oferecida e recebida a denúncia, apresentada a resposta à acusação, rejeitada hipótese de absolvição sumária, produzidas as provas e sentenciado o feito, em verdadeiro processo penal fast food; quando vemos propostas de alteração processual penal que ferem de morte a Constituição Federal, que criam um sistema inquisitorial há muito vencido por nosso sistema processual penal e reduzem direito e garantias de todo e qualquer cidadão (de bem ou não) brasileiro, serem propostas e defendidas a ferro e fogo por diversos membros do Ministério Público, tido pela mesma Constituição Federal como fiscal da lei; dentre outros fatos que nos foram contados por Marcelo Feller (10 verdades e nenhuma mentira sobre o nosso sistema de Justiça criminal) e que fazem parte das histórias vivenciadas pelos atores processuais.

Apesar de termos no processo penal nacional autores e professores fantásticos, dentre eles Aury Lopes Jr., Alexandre Morais da Rosa, Luiz Lênio Streck, Nereu Giacomolli, Ada Pelegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho, Antonio Scarance Fernandes, Guilherme de Souza Nucci, Maurício Zanoide, Marcos Zilli, Eugenio Pacelli, Frederico Marques, e tantos outros que aqui não são possíveis de menção, todos eles (re)pensadores e excelentes expositores do processo penal pátrio, é difícil dar uma resposta correta e exata à pergunta do aluno. E isso não se deve à pluralidade de opiniões de tal conjunto de pensadores, mas sim ao que se vê ser praticado como se processo penal fosse, quer pelo judiciário pátrio, quer pela “sabedoria popular” brasileira.

Com feito, não obstante a qualidade dos autores nacionais, que vão além da doutrina pátria e fazem estudos comparados com legislações e autores estrangeiros de sistemas jurídicos iguais e distintos do nosso; o nível altíssimo dos concursos públicos para carreiras jurídicas (técnico judiciário, analista judiciário, promotor/procurador da república, juiz) e de professor de universidade pública; da já habitual exigência de mestrado e doutorado para ser professor em instituições de ensino privadas; de termos atualmente uma sociedade mais estudada e melhor preparada intelectualmente[1]; dentre outros fatos relevantes que merecem ser sopesados, vivenciamos diuturnamente a prática de anomalias processuais penais no judiciário brasileiro e o clamor social por punitivismo, o que faz com que a sociedade e o “cidadão de bem” batam palmas para o atropelo processual penal do judiciário pátrio.

Diante disso à pergunta o que é processo penal, e às suas variações (onde está, quem é, como se desenvolve, quando se desenvolve, por que e para que), dá-se a seguinte resposta: pergunta lá no Posto Ipiranga!

Isso porque parece que, tal qual o “Olho da Providência” - que é aquele que tudo vê – e a propaganda veiculada pela rede de postos de gasolina, o Posto Ipiranga sabe tudo.

A questão agora é outra: quem é o Posto Ipiranga?

Será o “cidadão de bem”? A sociedade? O judiciário atolado de processos? O judiciário acomodado? O judiciário acovardado? A doutrina nacional? Os advogados? Os promotores de justiça e procuradores da república? Os professores? Todos esses graduandos de outrora ou os graduandos de agora? Todos esses? Ou o próprio Posto Ipiranga?

Conforme o sujeito, diferente será a resposta.

É preciso queimar muito combustível (sem trocadilhos) cerebral para se provocar combustão (novamente sem trocadilhos) processual penal e jurídica que capacite responder à indagação que deu causa a essas linhas. Pensar é preciso!


Notas e Referências:

[1] http://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2015-04/data-popular-escolaridade-do-brasileiro-sobe-8-pontos-percentuais-em-dez


Fernando ParenteFernando Parente é Mestre em Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília - UniCEUB, pós graduado em Direito Médico pelo Centro Brasileiro de Pós Graduações - CENBRAP, pós graduado em Direito (lato sensu) pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios - FESMDFT, graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília - UniCEUB. Advogado sócio fundador do escritório Guimarães Parente Advogados, Professor do Centro Universitário de Brasília - UniCEUB. Advogado criminalista.


Imagem Ilustrativa do Post: Questioned Proposal // Foto de: Ethan Lofton // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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