PROCESSO PENAL GARANTISTA NÃO É SINÔNIMO DE SÍNDROME DE ESTOCOLMO - Parte 2

09/12/2019

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A bem da verdade é que todos nós estamos vivendo sob o estado psicológico da Síndrome de Estocolmo, a grande questão é que alguns reconhecem, já outros não. Alguns lutam para ser servos e outros preferem ser indivíduos críticos, revolucionários, revoltados (no melhor estilo do homem revoltado de Albert Camus) e neuróticos (no sentido freudiano) [1]. Como diz Lacan[2], na Sociedade de Consumo, o escravo antigo é substituído por homens reduzidos ao estado de produtos. Portanto, negociáveis e tratados como mercadoria, desprovidos, então, da faculdade de julgar, conforme ensina Kant, preocupados apenas em consumir e reproduzir acriticamente o que lhes for determinado[3]. Nesse sentido, é imperioso destacar a seguinte reflexão de Jessé Souza[4]:

Como nunca refletimos sobre essa ideia-força e suas consequências, ela se presta como nenhuma outra a separar e hierarquizar o mundo de modo prático e muito diferente da regra jurídica da igualdade formal. Ela é, inclusive e por conta disso, muito mais eficaz que todos os códigos jurídicos juntos. Não só a separação entre povos e países, mas também entre as classes sociais, entre os gêneros e entre as "raças", é construída e passa a ter extraordinária eficácia prática precisamente por seu conteúdo aparentemente óbvio e nunca refletido.

Essa ideia-força (ideologia marxiana) nos conduz a não querermos abrir mão das fitas vermelhas, que representam nossa servidão ao Sr. Jones, na locução de Owell[5], nos tornando excelentes subservientes, dispondo de nossa liberdade e ao mesmo tempo forçando os outros a abrirem mão dela também. Neste sentido, em um contexto criminológico, explica Alessandro Baratta[6]:

[...] podemos entender ainda melhor certas teses surpreendentes de Marx sobre a relação entre violência e justiça punitiva, e perceber que durante as grandes transformações sociais, como aquelas que aconteceram no início da história da sociedade capitalista, não foram os "criminosos" que produziram a violência, mas, sobretudo, os poderosos que "criaram" a criminalidade.

Porém, hoje, na sociedade pós-moderna do desempenho, em lugar da alteridade  entra em cena a diferença, a diferença pós-imunológica[7]. Neste contexto, surge o sujeito do desempenho pós-moderno, regido pela Ditadura do Eu e orientado pelo Divino Mercado[8], o sujeito que "Em vez de "caminhar consigo mesmo até a morte", ele permanece "parado em si mesmo dentro da morte". Ele não ousa caminhar rumo à morte, e assim torna-se escravo e trabalha[9]". Dito isto, ao estarmos dominados (por nós mesmos) não refletimos sobre a verdadeira causalidade da opressão e da violência.

O que há de fato atualmente, na Ditadura da positividade, é uma ausência total do eros[10], pois a atopia do outro desapareceu[11]. Não há alteridade na sociedade da transparência, pois, segundo Byung Chul-Han[12], a alteridade foi reduzida a diferenças consumíveis. O eros foi reduzido à cupidez, à sexualidade, a sexo[13]. E sexo, por exemplo, transformou-se em mero desempenho e produtividade, em uma sociedade marcada pela superficialidade e pelo individualismo. Perdeu-se a negatividade do outro, visto que existem apenas desmedidas positividades[14]. Como diz Márcia Tiburi[15]: "Essa operação se dá no apagamento da função oblativa (a função do outro). A atmosfera niilista evidente no espírito de nossos dias relaciona-se à solidão do pensamento". Nesse contexto, afirma Byung Chul-Han[16]:

O sujeito de hoje, voltado narcisicamente ao desempenho, está à busca de sucesso. Sucesso e bons resultados trazem consigo uma confirmação de um pelo outro. Ali, o outro, que é privado de sua alteridade, degrada-se em espelho do um, que confirma a esse em seu ego. Essa lógica de reconhecimento enreda o sujeito narcisista do desempenho de forma ainda mais profunda em seu ego. Com isso, vai se criando uma depressão do sucesso. O sujeito do desempenho depressivo mergulha e se afoga em si mesmo.

O sujeito do desempenho, o qual, segundo Byung Chul-Han[17], é vivo demais para morrer e morto demais para viver, traduz a dialética hegeliana do senhor e escravo na mesma pessoa[18]. Ou seja, o sujeito pós-moderno, empreendedor de si mesmo, não é senhor nem tampouco escravo, ele é senhor e escravo de si mesmo (ao mesmo tempo)[19]. Há apenas a aparência de liberdade, mas o que existe de fato é um sujeito empresário de si mesmo, mergulhado no narcisismo profundo, "o sujeito da autoexploração"[20]. Nessa perspectiva, como bem sintetiza Byung Chul-Han[21]: “A crise atual da arte e também da literatura pode ser reduzida à crise da fantasia, ao desaparecimento do outro, ou seja, à agonia do eros”.

Não há empatia, pois a atopia do outro foi substituída pelo narciso pós-moderno. Há muito ego, mas pouquíssimo alter. Nessa perspectiva, Byung Chul-Han[22] explica que, se o inconsciente estivesse necessariamente ligado à negatividade da negação e da repressão, então, o sujeito de desempenho pós-moderno não teria mais um inconsciente, seria um ego pós-freudiano, pois "O sujeito de desempenho pós-moderno é pobre em negação, é um sujeito de afirmação[23]".

Nessa esteira de raciocínio, o eu é um "lugar de medo" [24]; ele tem medo do grande outro[25]. E hoje, no mundo do excesso de ego, visto que o ego (pós-freudiano) absorveu até o inconsciente, o grande outro vem desaparecendo gradativamente. Nesse contexto, por conseguinte, fortalece-se a violência da negatividade[26], cujo fundamento é a separação maniqueísta e simplória entre "cidadãos do bem" e "cidadãos do mal" [27],  em uma concepção bem schimittiana  de amigo/inimigo (que embasou o nazismo alemão, vale ressaltar).

Porém, além dessa dicotomia infantil, baseada na violência da negatividade, aflora-se hoje, na pós-modernidade globalizada, a violência da positividade, afinal tudo é positivo, ou melhor, consumível, desde a dor até o amor. Perde espaço, então, o paradigma imunológico da divisão entre bem e mal (porém, continua se perpetuando), e entra em voga a Ditadura do consumo, baseada no exagero da positividade. Há uma mudança paradigmática, pois "O paradigma imunológico não se coaduna com o processo de globalização[28]". Nessa perspectiva, o assim chamado "imigrante", hoje em dia, já não é mais imunologicamente um outro; não é um estrangeiro, em sentido enfático, visto que imigrantes são vistos mais como um peso do que como uma ameaça[29].

Até a estranheza se transforma em uma fórmula de consumo. Pois, como diz Byung Chul-Han[30], o estranho cede lugar ao exótico e o tourist viaja para visitá-lo. "O turista ou o consumidor já não é mais um sujeito imunológico[31]". Recentemente, houve um exemplo claro disso em Cuiabá/MT, na "Passarela da adoção" [32], onde crianças "maquiadas e produzidas" (com idade a partir de 4 anos) foram expostas para adoção em um shopping.

Nessa perspectiva, o limite ético (remetendo-se ao interdito da Lei da Psicanálise) deixa de ser o outro e passa a ser o capital[33]. Logo, o outro é apagado do processo de linguagem, não havendo espaço, então, para o saber lacaniano, visto que, como disse certa vez Lacan[34], o saber é o gozo do outro. Por isso, quem, na sociedade pós-moderna do desempenho, defende um processo penal justo e democrático, para qualquer outro ser humano, é tido como "bandidólatra" ou defensor intransigente dos "criminosos".

 

Notas e Referências

[1] Nesse sentido: "Dany-Robert Dufour percebeu que o sujeito crítico kantiano, o sujeito neurótico freudiano e o sujeito revolucionário marxiano não mais dão conta de explicar o sujeito que tem sido chamado de pós-moderno (DUFOUR, Dany-Robert. A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Rio de Janeiro:Campanha de Freud, 2005)". In: CASARA, Rubens R R. Prefácio: In dubio pro hell: profanando o sistema penal / MORAIS DA ROSA, Alexandre; KHALED JR, Salah H. 3. ed. rev. e ampl. Florianópolis: Emais, 2018, p. 14.

[2] LACAN, Jacques. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise, 1969-1970; texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; [versão brasileira de Ary Roitman, consultor, Antonio Quinet]. – Rio de Janeiro: Zahar, 1992, p. 33.

[3] CASARA, Rubens R R. In: Apresentação: O direito penal e o processo penal no estado de direito: análise de casos / TAVARES, Juarez; PRADO, Geraldo. 1 ª Ed. - Florianópolis, Empório do Direito, 2016, p. 8.

[4] SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017, p. 21.

[5] ORWELL, George. A revolução dos bichos: um conto de fadas; tradução Heitor Aquino Ferreira; posfácio Christopher Hitchens. – São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 19-20: "E ainda vou poder usar laço de fita na crina?", perguntou Mimosa".

"Camarada", explicou Bola-de-Neve,"essas fitas que você tanto estima são o distintivo da servidão. Não vê que a liberdade vale mais que laços de fita?".

[6] BARATTA, Alessandro. In: Prefácio: Difíceis ganhos fáceis - drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro / BATISTA, Vera Malaguti. - Rio de Janeiro: Revan, 2003, 1ª reimpressão, dezembro de 2013, p. 32.

[7] HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço; (trad. Enio Paulo Giachini). - Petrópolis, RJ: Vozes, 2017, p. 10: "[...] Caracteriza-se pelo desaparecimento da alteridade e da estranheza. A alteridade é a categoria fundamental da imunologia. Toda e qualquer reação imunológica é uma reação à alteridade. Mas hoje em dia, em lugar da alteridade entra em cena a diferença, que não provoca nenhuma reação imunológica. A diferença pós-imunológica, sim, a diferença pós-moderna já não faz adoecer".

[8] PEREIRA, André Luiz Bermudez. A investigação criminal orientada pela teoria dos jogos. _ Florianópolis: Emais, 2018, p. 84: "Dany Robert Dufour ao analisar o liberalismo de Adam Smith, de maneira crítica e irônica, apresenta o Mercado como um Deus a regular as relações individuais".

[9] HAN, Byung-Chul. A agonia do eros; (trad. Enio Paulo Giachini). - Petrópolis, RJ: Vozes, 2017, p. 41.   

[10] HAN, Byung-Chul. A agonia do eros; (trad. Enio Paulo Giachini). - Petrópolis, RJ: Vozes, 2017, p. 74.

[11] Ibdem, pp. 7-8:"[...] a erosão do Outro, que por ora ocorre em todos âmbitos da vida e caminha cada vez mais de mãos dadas com a narcisificação do si-mesmo".

[12] Ibdem, p. 9.

[13] Ibdem pp.76-77.

[14] Ibdem, p. 31: "Nesse mundo da positividade só são admitidas coisas que são consumídas. A própria dor precisa ser consumível".

[15] TIBURI, Marcia. Como conversar com um fascista. 11ª ed. – Rio de Janeiro: Record, 2017, p. 26.

[16] HAN, Byung-Chul. A agonia do eros, pp. 10-11.

[17] Ibdem, p. 52.

[18] Ibdem, p. 43: ”Trata-se de uma unidade danosa, que Hegel não pensou em sua dialética de senhor e escravo".

[19] Idem.

[20] Idem.

[21] Ibdem, p. 74.

[22] HAN, Byung-Chul. Topologia da violência; (trad. Enio Paulo Giachini). - Petrópolis, RJ: Vozes, 2017, p. 58.

[23] Idem.

[24] FREUD, Sigmund apud HAN, Byung-Chul. Topologia da violência; (trad. Enio Paulo Giachini). - Petrópolis, RJ: Vozes, 2017, p. 58.

[25] HAN, Byung-Chul. Topologia da violência, p. 58.

[26] Ibdem, p. 8: "A topologia da violência volta-se de imediato àquelas manifestações macrofísicas da violência que aparecem na forma de negatividade, i. e., que se desdobram em relações de tensões bipolares: ego e alter, dentro e fora, amigo e inimigo".

[27] Nesse sentido: "Aqui vale a metáfora do vírus, o “paradigma imunológico” afirmado por Byung-Chul Han, no qual a seleção do controle recorre a binarismos como amigo e inimigo, cidadão e estrangeiro ou saudável e doente". In: CASARA, Rubens R R. . CASARA, Rubens R R.  Estado pós-democrático: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis . 1ª ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017, p. 54.

[28] HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço, p. 13.

[29] Ibdem, p. 12.

[30] Ibdem, p. 11.

[31] Idem.

[32] Disponível em: <https://www.pragmatismopolitico.com.br/2019/05/desfile-crianca-adocao-pantanal-shopping.html>. Acessado em 28/10/2019.

[33] HAN, Byung-Chul. A agonia do eros, p. 74.

[34] LACAN, Jacques. Op. Cit. p. 12.

 

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