Coluna: Constituição e Democracia / Coordenadores: Alexandre Gustavo Melo Franco de Moraes Bahia, Diogo Bacha e Silva, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira
O Supremo Tribunal Federal, por 6 votos favoráveis e 5 contrários, julgou procedente as ADC`s 43,44 e 54 e declarou a constitucionalidade do art. 283 do CPP que estabelece como hipóteses possíveis de prisão por ordem da autoridade judiciária: a decorrente de sentença penal condenatória transitada em julgado e apenas em virtude de prisão temporária e preventiva, no curso de investigação ou processo penal. O resultado do julgamento realizou um verdadeiro overruling na decisão proferida em controle difuso de constitucionalidade no HC 126.292/SP e do tema 925 da tese da repercussão geral do Supremo Tribunal Federal editada logo após o julgamento do referido habeas corpus.
Apenas para relembrar, no dia 04/04/2018 a então Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministra Carmen Lúcia, sabendo de antemão o voto favorável da Min. Rosa Weber pela impossibilidade da prisão em 2ª instância, decide, com base em seu poder de agenda, contrariando as opiniões dentro do tribunal, pautar o HC 152.752 em que se discutia a possibilidade da prisão de Lula. Mesmo com as ADC`s liberadas para julgamento pelo relator, a Ministra Carmen Lúcia realizou uma manobra regimental para que a discussão jurídica em tese se transformasse em uma disputa que envolviam paixões para ambos os lados.[1]
Vale mencionar, pois, que a decisão proferida em controle difuso de constitucionalidade, exceto quando submetida ao crivo do Senado Federal (art. 52, inc. X), não é dotada de eficácia erga omnes e somente poderá ser dotada de efeito vinculante quando, após reiteradas decisões e cumpridos os requisitos formais, houver a aprovação de enunciado de súmula vinculante.[2] Há, aqui, toda uma discussão que remonta ao julgamento da Rcl 4.335/AC na qual o Min. Gilmar Mendes em seu voto discutiu a possibilidade de se conferir uma mutação constitucional ao art. 52, inc. X da CF/88, dotando as decisões do Supremo Tribunal Federal de efeitos erga omnes, ainda que proferidas em controle difuso de constitucionalidade, transformando o Senado Federal em órgão que conferiria publicidade às decisões do Supremo Tribunal Federal.[3]Entretanto, veja-se que o voto vencedor do Min. Teori Zavascki rechaça a tese da mutação constitucional, adotando o que o relator denomina de “eficácia expansiva”, e mantém hígida a participação do Senado Federal no controle de constitucionalidade.[4]
Daí que, embora tenha um efeito persuasivo para as cortes, a decisão proferida no HC 126.292/SP não determinou - e nem poderia - que juízes e tribunais obrigatoriamente procedessem a prisão do réu após a condenação pelo órgão colegiado em 2ª instância. Na prática, porém, juízes e tribunais, após a decisão colegiada, passaram a determinar o imediato cumprimento da pena, independentemente das circunstâncias do caso concreto, como se a decisão proferida em controle difuso fosse dotada de caráter vinculante e erga omnes.
Assim, o Supremo Tribunal Federal julgando nas Ações Declaratórias de Constitucionalidade, agora sim com efeito vinculante e erga omnes, a constitucionalidade do art. 283 do CPP impossibilitou que juízes e tribunais procedessem a execução provisória da pena, exceto no caso de prisão provisória, preventiva ou temporária, determinada à luz dos requisitos da cautelaridade processual penal.
Em obter dicta, o Min. Dias Toffoli, em voto que formou a maioria pela procedência das ADC`S, sinalizou que o dispositivo do art. 283 do CPP fora resultado da opção do legislador no exercício de uma conformação legislativa, podendo sofrer alteração, caso fosse da vontade política, permitindo-se a prisão após a condenação em 2ª instância e o cumprimento antecipado da pena.
Tão logo o resultado das ADC`s foi proclamado, Senadores e Deputados se movimentaram para discutir a possibilidade de realizar um override à decisão do STF, buscando aplainar os anseios punitivistas de parcela da população.[5] Segundo a concepção de tais senadores e deputados, a reação legislativa deveria ser realizada através de uma reforma constitucional, com o objetivo de garantir maior segurança jurídica.
Na Câmara dos Deputados, então, ressuscitaram a PEC 410/2018 de autoria do Deputado Alex Manente que busca de forma frontal modificar a redação do art. 5º, inc. LVII da Constituição passando ao seguinte texto: “ninguém será considerado culpado até a confirmação de sentença penal condenatória em grau de recurso”.[6] No Senado Federal, tramita também a PEC 5/2019 que acrescenta o inc. XVI ao art. 93 fazendo constar a seguinte redação: “a decisão condenatória proferida por órgãos colegiados deve ser executada imediatamente, independentemente do cabimento de eventuais recursos”. Há, ainda, proposta no âmbito da Câmara dos Deputados no sentido de modificar a competência do Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça para transformá-las em cortes revisionais, ressuscitando a proposta de Cezar Peluso. Ainda, o Senado Federal parece consentir que a modificação legislativa seria mais factível, bastando a mudança na redação do Código de Processo Penal, por meio do PLS 166/2018, para incluir, no texto do art. 283 do CPP, a prisão decorrente de autoridade judiciária a partir de juízo de culpabilidade formado a partir da condenação em segundo grau.[7]
A primeira PEC acima mencionada é de uma inconstitucionalidade gritante. A tentativa de modificação no art. 5º, inc. LVII é um atentado direto aos limites impostos pelo poder constituinte originário no art. 60, §4º, inc. IV da Constituição, não em função do fato de que a literalidade do texto constitucional do rol constante no art. 5º não possa ser modificada, mas sim em virtude de que as cláusulas pétreas implicam em um limite substantivo ao poder reformador. Isto é, a previsão dos direitos individuais no art. 5º somente podem ser modificados para ampliar o seu âmbito de proteção, nunca para restringi-lo.
Explicamo-nos: há alguns atores jurídicos e políticos que defendem que a limitação imposta no supramencionado texto constitucional estar-se-ia referindo à abolição do direito e garantia individual, sendo legítimo a modificação do conteúdo do direito fundamental, desde que se garanta a integridade do núcleo essencial. Assim, a modificação da redação proposta pelas PEC`s estariam resguardando o núcleo essencial da presunção de inocência que na opinião desses atoressignificaria apenas a possibilidade de ter a sentença condenatória reanalisada por um órgão colegiado. Neste passo, não haveria ofensa à intangibilidade das cláusulas pétreas.
É preciso extrair o significado constitucionalmente adequado das cláusulas pétreas. A expressão “abolir” prevista na redação do art. 60, §4º da CF/88 depende de uma hermenêutica da Constituição como um foro de princípio. Vale dizer, uma interpretação literal do art. 60, §4º seria aquilo que Dworkin denomina de uma hermenêutica convencionalista, ou seja, um respeito às decisões políticas tomadas no passado, contrariando uma postura hermenêutica de integridade do texto constitucional que, enquanto vela moral da sociedade, deve ser considerado como a mais alta expressão de nossa comunidade de princípios de membros livres e iguais, cuja responsabilidade que recai sobre o interprete do direito é resguardar a integridade e coerência da Constituição e dos direitos individuais.[8]
Neste caso, a presunção de inocência não decorre apenas do art. 5º, inc. LVII, mas das garantias do contraditório e ampla defesa, da adoção de um sistema acusatório, que implica considerar que a estrutura da garantia constitucional da presunção de inocência ou da culpabilidade possibilita que o acusado possa se valer de todos os meios de prova, todos os recursos possíveis até que seja considerado culpado em definitivo, após a indiscutibilidade material da sentença condenatória que, frise-se, só ocorre com o trânsito em julgado. Lida em conjunto, portanto, com a garantia inscrita no art. 5º, inc. LXI, veda-se a possibilidade de prisão automática após o julgamento da 2ª instância.
Portanto, a modificação na redação do art. 5º, LVII da Constituição visando restringir o âmbito de proteção desse direito individual atinge diretamente o significado constitucionalmente adequado da vedação da abolição de direito individual, no caso o direito da não culpabilidade ou da presunção de inocência, eis que pulveriza toda a estrutura acusatória e de garantia processual do acusado no âmbito processual penal.
Cabe ressaltar que se trata de um tema de Direitos Humanos, implicando na observância da vedação de retrocesso, ou seja, atendido um determinado nível de proteção dos direitos humanos, não podem os Estados retroceder na proteção alcançada de determinados direitos. Nesse sentido, a vedação ao retrocesso dos Direitos Humanos é costume internacional (art. 38.1.b ECIJ), princípio geral de Direito Internacional (art. 38.1.c ECIJ) e, ainda, está regulamentado na Convenção Americana de Direitos Humanos, em seu artigo 29, b.
Resta claro, então, que qualquer forma de interpretação de direitos humanos e fundamentais, isto é, seja estabelecido em tratado internacional ou norma interna, que reduza o núcleo de direitos já garantidos nos Estados, é indiscutivelmente proibida e irá trazer a responsabilização do Estado no sistema regional de proteção de Direitos Humanos.
A PEC 5/2019, entretanto, sem pretender agredir textualmente o rol do art.5, busca acrescentar dispositivo no art. 93 da Constituição, o inc. LVII, criando uma antinomia dentro da Constituição. De novo, aqui se tem, portanto, uma modificação que em nada acrescenta ao debate. É que, criando uma antinomia no sistema constitucional, a exigência de que, em caso de conflito entre normas constitucionais, o interprete é obrigado a realizar um exercício hermenêutico de unidade e harmonia constitucional. Assim, tal dispositivo valeria para todas as sentenças condenatórias proferidas em causas trabalhistas e cíveis em geral, mas pela estrutura principiológica da Constituição, não valeria para as ações penais.[9] Ora, vedar-se-ia, por exemplo, a exigência de garantia no cumprimento provisório de sentença no processo civil.
À PEC 410/2018, portanto, foi apensada a PEC 411/2018 do então Deputado Onyx Lorenzoni. Sua proposta, dessa forma, modifica também a redação do art. 5º, inc. LVII tentando driblar a estrutura acusatória e o ônus acusatório após a segunda instância: “LVII – ninguém será considerado culpado até o esgotamento da jurisdição perante o Tribunal de segunda instância; a) a condenação de primeiro grau, mantida em apelação perante o segundo grau de jurisdição, inverte a presunção de inocência; b) encerrada a jurisdição do Tribunal de segundo grau, o réu deverá iniciar imediatamente o cumprimento da/ pena determinada, sem prejuízo dos recursos cabíveis à superior instância”.
As mesmas considerações devem ser feitas: há violação ao limite imposto no art. 60, §4º, inc. IV, de vedação de abolição de direito individual. Corroborando a limitação ao poder reformador, o Supremo Tribunal Federal em julgamento antigo, reafirmado recentemente, que são cláusulas pétreas, como emanações de direito individual do cidadão-contribuinte (art. 60, §4º, inc. IV), a anterioridade tributária (art. 150, inc. III, b da CF/88).[10] Em outra ocasião, o Supremo Tribunal Federal também considerou que a garantia do cidadão-eleitor da anualidade eleitoral prevista no art. 16 da CF/88 também seria direito individual imune a supressão pelo poder constituinte derivado.[11]
Se as referidas garantias acima citadas são consideradas cláusulas pétreas pela jurisprudência do STF, o que não dizer do direito à presunção de inocência ou não culpabilidade? Não só a inconstitucionalidade material poderia ser reconhecidas após a aprovação pelo Supremo Tribunal Federal, como é possível a Corte realizar o controle de constitucionalidade material do devido processo legislativo de propostas de emendas constitucionais inconstitucionais.[12]
Na justificativa da proposta de Onyx Lorenzoni, portanto, além da defesa de um pragmatismo no sentido de que a proposta visaria a um melhor funcionamento do sistema de justiça, já que os Tribunais Superiores estão assoberbados e que os processos penais ali se arrastam por anos.
Conforme entendimento da Comissão Interamericana, no Caso Dayra María Levoyer Jiménez vs. Equador, a garantia da presunção da inocência implica não somente a observância se a privação de liberdade sem condenação está justificada a luz de critérios pertinentes e suficientes, mas também se as autoridades procederam com especial diligência na instrução do processo judicial.[13]Ou seja, não só a prisão deve ser justificada à luz de critérios jurídicos razoáveis, mas é também direito do acusado um processo com tramitação razoável. Não se pode jogar um direito fundamental contra outro. Já que não há uma célere tramitação processual, então se restringe um direito para efetivar outro direito individual. As PEC´s querem criar um paradoxo dos direitos individuais. Para se cumprir um direito individual somente aniquilando outro direito individual.
Ainda em sede da proteção regional dos Direitos Humanos, a Corte Interamericana, acolhendo o entendimento da Comissão no caso Suárez Rosero Vs. Equador, entendeu que a presunção de inocência não decorre apenas de determinação legal acerca da possibilidade ou não da prisão, mas do conjunto das garantias humanistas de existência, quais sejam, liberdade, integridade pessoal, garantias e proteção judicial[14], ressaltando o caráter correlacional e sistemático dos direitos e garantias do acusado no âmbito processual penal.
Nesse sentido, a demora de um processo penal é violação do direito a um julgamento em um prazo razoável, segundo o que estabelece a Convenção em seu artigo 8(1), que, na prática, mantem o processado vinculado a uma situação jurídica, impedindo-o de levar uma vida plena e regular.
Com respeito às alegações de eficiência processual, os mecanismos para assegurar uma célere e razoável duração do processo demandam discussões acerca de gestão processual, aparelhamento institucional, utilização de novas tecnologias pelos tribunais, além de modelos comparticipativos de decisão processual e respeito irrestrito ao contraditório e ampla defesa. Ademais, como já se pôde observar, a experiência da jurisprudência defensiva, adotada principalmente com a EC 45/2004, demonstrou que a restrição ao cabimento dos recursos extraordinários não implica, necessariamente, em redução no acervo processual.
Ainda, sobre a justificativa da impunidade decorrente de eventual prescrição no processo penal, os parlamentares não estão dispostos a discutir melhoras na persecução penal e investigação de crimes. Simplificam o debate agredindo uma garantia individual. Vale lembrar, que o caso Lula tramitou em 3ª instâncias em menos de um ano nos mostrou que, com uma dose de “boa vontade”, os processos podem ser julgados de forma célere. Estariam os parlamentares dispostos a discutir e debater de forma profunda e séria as causas e as malezas da demora processual também nos processos cíveis e trabalhistas? Ou, ao contrário, se trata apenas de uma sanha persecutória dirigida aos determinados indivíduos?
Cabe comentar também que alguns atores jurídicos e políticos julgam encontrar a solução para o impasse: basta modificar o momento do trânsito em julgado. Veja-se que a Constituição utiliza, por exemplo, o conceito do trânsito em julgado para a dissolução de associação por decisão judicial (art. 5º, inc. XIX), perda de mandato de deputado ou senador (art. 55, inc. IV), perda do cargo de juiz (art. 95, inc. I), de membro do Ministério Público (art. 128, §5º, inc. I). A modificação do conceito para o aspecto processual penal também valeria para tais hipóteses?
Ainda que se admita que uma regra estabeleça um conceito jurídico à fórceps, a gramática profunda do jogo de linguagem do direito não pode ser modificada pelo legislador, sendo inócua uma tentativa de definição do conceito por uma lógica exterior à própria compreensão dos utentes da linguagem jurídica.
É certo que o efeito vinculante em controle concentrado de constitucionalidade não atinge o legislador, máxime pela impossibilidade de fossilizar a Constituição e petrificar o legítimo desenvolvimento da ordem constitucional, podendo até mesmo a edição de lei de conteúdo idêntico à declarada inconstitucional.[15]Tal não significa, no entanto, que o override não encontra limites na nossa ordem constitucional. Os limites são a própria lógica do instituto e a interpretação mais favorável aos direitos fundamentais.
A teoria dos diálogos constitucionais, formulada a partir de uma interação entre defensores da supremacia judicial e supremacia legislativa, pressupõe que nem a Corte Constitucional detém a última palavra sobre o judicial review, nem o Poder Legislativo pode se sobrepor às decisões da Corte que não seja por meio de um escrutínio argumentativo.
Em primeiro lugar, os diálogos constitucionais como mecanismos de solução de controvérsias devem ocorrer sobre o pressuposto de que ambos valorizam e levam a sério os direitos fundamentais e a estrutura constitucional como um todo.[16]Em segundo lugar, os casos de risco de polarização e efeitos sistemáticos, as Cortes são menos propensas a sofrer as consequências de assunção de uma posição e, assim, exercer sua função contramajoritária e, por consequência, interpretar a controvérsia constitucional levando as práticas sociais à sua melhor luz.[17]
Dessa forma, à luz da teoria dos diálogos constitucionais, a depender do caso em discussão, o poder judiciário ainda é o foro adequado para oferecer a interpretação constitucional à sua melhor luz no caso de desacordos sobre o significado dos direitos fundamentais.
Embora se reconheça e se incentive os diálogos constitucionais, não é possível override a qualquer preço. Mesmo no caso de constituições com previsão expressa da cláusula “notwithstanding”, tal qual a prevista na Seção 33 da Carta de Direitos do Canadá, elas têm o sentido profundo de uma conversação constitucional contínua e durável por longos anos entre os poderes, assim como a possibilidade de inexecução temporária da constituição, mas sempre em prol da proteção de lei que garanta e efetive os direitos, nunca fazendo um uso preemptivo em torno da interpretação constitucional.[18]
Ademais, seu uso legítimo só poderá ser realizado quando a Corte declarar inconstitucional uma lei promulgada pelo Poder Legislativo, jamais quando a própria Corte declara essa lei inconstitucional. Não há diálogo constitucional entre Poder Legislativo e Poder Judiciário quando o próprio Poder Judiciário realiza uma deferência à decisão tomada pela maioria.
Portanto, apenas no caso de declaração de inconstitucionalidade e eventual reedição de norma com conteúdo idêntico à anteriormente extirpada do ordenamento jurídico é que residiria a possibilidade de override, ainda assim com a incumbência de um escrutínio forte do controle de constitucionalidade, já que a nova lei nasce com a presunção de inconstitucionalidade, cabendo ao legislador o ônus de demonstrar que a decisão do STF foi errônea ou que há necessidade de uma mutação constitucional por via legislativa lançando mão de novos argumentos e prognoses em relação àqueles aos quais foram lançados mão quando da edição da lei anteriormente declarada sua inconstitucionalidade.[19]
Descabe falar em override ou overruling como forma de diálogo quando a decisão que se pretenda superar/modificar realiza uma deferência à vontade do legislador, especialmente quando a interpretação do poder judiciário intensifica e aprofunda a proteção de direito fundamental.
Assim, as PEC`s acima mencionada não são mais do que uma reação histérica de setores parlamentares que são contrários à solução constitucional dada pelo STF ou, ainda, que realizam uma ação estratégica buscando angariar popularidade para conseguirem votos nas eleições. Em questão, portanto, ofendem a estrutura do Estado Democrático de Direito, seja pela erosão das cláusulas pétreas ou por buscarem atacar a estrutura da separação de poderes ao restringirem a competência do STF.
De um lado, Habermas sussurra em nosso ouvidos que a “garantia” de direito individual não é um aspecto formal-processual, mas está co-implicado na própria substância-essência do Estado Democrático de Direito.[20]De outro, Derrida nos recorda que o Soberano impõe a lei do mais forte às instituições e aos direitos, fazendo-nos crer que não só as Propostas de Emendas Constitucionais, gritantemente inconstitucionais, serão aprovadas e terão aplicação inclusive retroativa, ao arrepio da vontade das Bestas.[21]
Notas e Referências
[1] O caso é bem narrado na obra: WEBER, Luiz, RECONDO, Felipe. Os onze: o STF, seus bastidores e suas crises. São Paulo: Companhia das letras, 2019. p. 317 e ss.
[2] CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição constitucional democrática. 2ª ed. Belo Horizonte: Arraes, 2014. p. 363. Cf também: BACHA E SILVA, Diogo. Ativismo no controle de constitucionalidade: a transcendência dos motivos determinantes e a ilegítima apropriação do discurso de justificação pelo Supremo Tribunal Federal. Belo Horizonte: Arraes, 2013. p. 16.
[3] Para uma crítica à tese da mutação constitucional, ver: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade, STRECK, Lenio Luiz, LIMA, Martonio Mont`Alverne Barreto. A nova perspectiva do Supremo Tribunal Federal sobre o controle difuso: mutação constitucional e limites da legitimidade da jurisdição constitucional. Argumenta Journal Law, n. 7, 2007, p. 45-68.
[4] É bom, então, reafirmar que o voto-vista do ministro relator tem o entendimento de que a eficácia expansiva não permite igualar o controle difuso e concentrado de constitucionalidade, embora tenha o condão de, após reiteradas decisões, se transformar em enunciado de súmula vinculante, impedir o exame de Recurso Extraordinário e até mesmo realizar a modulação temporal. Para uma análise crítica, ver: BACHA E SILVA, Diogo. Eficácia expansiva no controle difuso de constitucionalidade: esse outro desconhecido. Revista de Direito Administrativo, rio de Janeiro, v. 274, p. 113-131, jan./abr. 2017.
[5] Embora parcela da teoria constitucional considere que não há interesse concreto discutido no âmbito do controle concentrado ou “abstrato” de constitucionalidade, como já alertávamos, não há possibilidade de discussão de tese jurídica em abstrato, destituída de um caso concreto. Não restam dúvidas de que a discussão, tanto nas ADC`s quanto na PEC, aqui tem um nome e um rosto, do Lula: CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição constitucional democrática. 2ª ed. Belo Horizonte: Arraes, 2014; BAHIA, Alexandre, BACHA E SILVA, Diogo. Transcendentalização dos precedentes no novo CPC: equívocos acerca do efeito vinculante. Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC, v. 36.2, jul./dez. 2016
[6] Sobre a inconstitucionalidade frontal pela ofensa ao art. 60, §4º, inc. IV, veja-se: CATTONI, Marcelo, STRECK, Lenio. PECs contra a presunção da inocência são fraude à Constituição. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-nov-11/streck-cattoni-pecs-presuncao-inocencia-sao-fraude-constituicao, acesso em 13 de novembro de 2019; também: BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco de Moraes, BACHA E SILVA, Diogo, CATTONI, Marcelo. “Sem presunção de inocência, PEC 410/2018 é inconstitucional”. Disponível em https://www.conjur.com.br/2018-abr-02/opiniao-presuncao-inocencia-pec-410-inconstitucional.
[7] O projeto de lei estabelece a seguinte redação para o art. 283 do CPP: “Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão: I – em flagrante delito; II – por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente; III – em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado; ou IV – no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.
§1º As medidas cautelares previstas neste Título não se aplicam à infração a que não for isolada, cumulativa ou alternativamente cominada pena privativa de liberdade.
§2º A prisão poderá ser efetuada em qualquer dia e a qualquer hora, respeitadas as restrições relativas à inviolabilidade do domicílio.
§3º A prisão por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente decorrente de juízo de culpabilidade poderá ocorrer a partir da condenação em segundo grau, em instância única ou recursal.
§4º Ninguém será tratado como culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.”
[8] DWORKIN, Ronald. Justice for hedgehogs. London: Harvard University Press, 2011.
[9] Observação bem lembrada pelos professores Lenio Streck e Marcelo Cattoni: CATTONI, Marcelo, STRECK, Lenio. PECs contra a presunção da inocência são fraude à Constituição. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-nov-11/streck-cattoni-pecs-presuncao-inocencia-sao-fraude-constituicao, acesso em 13 de novembro de 2019
[10] Assim, o julgamento do leading case: STF, ADI 939/DF, rel. Min. Sydnei Sanches, j. 15/12/1993; mais recente: ADI 5733 / AM, rel. Alexandre de Moraes, j. 20/09/2019
[11] “Enquanto o art. 150, III, b, da CF encerra garantia individual do contribuinte (ADI 939, rel. min. Sydney Sanches, DJ de 18-3-1994), o art. 16 representa garantia individual do cidadão-eleitor, detentor originário do poder exercido pelos representantes eleitos e "a quem assiste o direito de receber, do Estado, o necessário grau de segurança e de certeza jurídicas contra alterações abruptas das regras inerentes à disputa eleitoral" (ADI 3.345, rel. min. Celso de Mello). Além de o referido princípio conter, em si mesmo, elementos que o caracterizam como uma garantia fundamental oponível até mesmo à atividade do legislador constituinte derivado, nos termos dos arts. 5º, § 2º, e 60, § 4º, IV, a burla ao que contido no art. 16 ainda afronta os direitos individuais da segurança jurídica (CF, art. 5º, caput) e do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV)” ([ADI 3.685, rel. min. Ellen Gracie, j. 22-3-2006, P, DJ de 10-8-2006).
[12] STF, MS 24.849, Pleno, Rel. Celso de Mello, DJ 29.9.2006. Sobre o tema, cf. CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Devido processo legislativo: uma justificação democrática do controle de constitucionalidade das leis e do processo legislativo. 3.ª Ed. Belo Horizonte: Fórum, 2016.
[13] CIDH. Relatório Nº 66/01. Caso 11.992. Dayra María Levoyer Jiménez vs. Equador. 14 de junho de 2001.
[14] CORTE. Caso Suárez Rosero Vs. Equador. Sentença de 12 de novembro de 1997.
[15] Neste sentido: EMENTA: INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Lei estadual. Tributo. Taxa de segurança pública. Uso potencial do serviço de extinção de incêndio. Atividade que só pode sustentada pelos impostos. Liminar concedida pelo STF. Edição de lei posterior, de outro Estado, com idêntico conteúdo normativo. Ofensa à autoridade da decisão do STF. Não caracterização. Função legislativa que não é alcançada pela eficácia erga omnes, nem pelo efeito vinculante da decisão cautelar na ação direta. Reclamação indeferida liminarmente. Agravo regimental improvido. Inteligência do art. 102, § 2º, da CF, e do art. 28, § único, da Lei federal nº 9.868/99. A eficácia geral e o efeito vinculante de decisão, proferida pelo Supremo Tribunal Federal, em ação direta de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal, só atingem os demais órgãos do Poder Judiciário e todos os do Poder Executivo, não alcançando o legislador, que pode editar nova lei com idêntico conteúdo normativo, sem ofender a autoridade daquela decisão.(STF, Rcl 2617/MG, rel. Min. Cesar Peluso, j. 23 de fevereiro de 2005).
[16] WALDRON, Jeremy.Contra el gobierno de los jueces. Buenos Aires: Siglo XXI editores, 2018. p. 198.
[17] SUNSTEIN, Cass. A Constitution of many minds. Princeton: Princeton University Press, 2011. p. 182-183.
[18] STEPHANOPOULOS, Nicholas. The case for the legislative override. UCLA Journal International Law, 250 (2005), p. 265.
[19] O STF, em voto da lavra do Min. Luiz Fux, já teve a oportunidade de estabelecer as premissas do diálogo institucional: “[...]3. O desenho institucional erigido pelo constituinte de 1988, mercê de outorgar à Suprema Corte a tarefa da guarda precípua da Lei Fundamental, não erigiu um sistema de supremacia judicial em sentido material (ou definitiva), de maneira que seus pronunciamentos judiciais devem ser compreendidos como última palavra provisória, vinculando formalmente as partes do processo e finalizando uma rodada deliberativa acerca da temática, sem, em consequência, fossilizar o conteúdo constitucional.
4. Os efeitos vinculantes, ínsitos às decisões proferidas em sede de fiscalização abstrata de constitucionalidade, não atingem o Poder Legislativo, ex vi do art. 102, § 2º, e art. 103-A, ambos da Carta da República.
5. Consectariamente, a reversão legislativa da jurisprudência da Corte se revela legítima em linha de princípio, seja pela atuação do constituinte reformador (i.e., promulgação de emendas constitucionais), seja por inovação do legislador infraconstitucional (i.e., edição de leis ordinárias e complementares), circunstância que demanda providências distintas por parte deste Supremo Tribunal Federal.
5.1. A emenda constitucional corretiva da jurisprudência modifica formalmente o texto magno, bem como o fundamento de validade último da legislação ordinária, razão pela qual a sua invalidação deve ocorrer nas hipóteses de descumprimento do art. 60 da CRFB/88 (i.e., limites formais, circunstanciais, temporais e materiais), encampando, neste particular, exegese estrita das cláusulas superconstitucionais.
5.2. A legislação infraconstitucional que colida frontalmente com a jurisprudência (leis in your face) nasce com presunção iuris tantum de inconstitucionalidade, de forma que caberá ao legislador ordinário o ônus de demonstrar, argumentativamente, que a correção do precedente faz-se necessária, ou, ainda, comprovar, lançando mão de novos argumentos, que as premissas fáticas e axiológicas sobre as quais se fundou o posicionamento jurisprudencial não mais subsistem, em exemplo acadêmico de mutação constitucional pela via legislativa. Nesse caso, a novel legislação se submete a um escrutínio de constitucionalidade mais rigoroso, nomeadamente quando o precedente superado amparar-se em cláusulas pétreas.[...]” (STF, ADI 5.105/DF, rel. Min. Luiz Fux, j. 01/10/2015).
[20] HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez. Madrid: Trotta, 1998
[21] É importante deixarmos claro em que ponto Derrida se a-presenta ao debate jurídico. Em Força de lei, o teórico da desconstrução, realiza um esforço para compreender o “fundamento místico” da autoridade/legitimidade do direito construído. Desde Platão e seu logofalotanatocentrismo, portanto, a justiça não é senão a lei do mais forte, constituindo um fundamento e um valor em si mesmo das regras positivas. Esse fundamento permite o encontro paradoxal entre direito e justiça. As regras positivas, apenas pela coação, não geram o dever que só há se o mesmo for justo. A relação é estabelecida, então, pela modificação da violência pura em violência legítima. O direito só se exerce em nome da justiça e essa instala-se no cerne do direito que deve ser aplicado pela força (DERRIDA, Jacques. Força de lei – o “fundamento místico da autoridade”. São Paulo: Martins Fontes, 2007). Tanto positivistas quanto jusnaturalistas, ao fim e ao cabo, remetem sua validade ao direito e à justiça. Nessa obra, portanto, Jacques Derrida desestabiliza essa dualidade. O direito tem camadas interpretáveis e recursivas que acabam por ser seu próprio fundamento místico de autoridade, sendo um ato de força, de violência instauradora e, pois, não tendo qualquer fundamento é o lócus ideal para ser “descontruído”. A justiça excede e suplementa o direito (DERRIDA, Jacques. Força de lei – o “fundamento místico da autoridade”. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 49). É neste ponto que entra a figura da Besta e do Soberano. No entrelaçamento entre soberania e bestialidade é que surge os quase-conceitos da Besta e Soberano. Quem é A besta? Quem é O soberano? Já em Aristóteles a besta e o soberano é entrelaçado na figura do animal político como homem ideal que, ao ser o responsável por fazer a lei e a justiça, está além ou aquém do humano, sendo uma divindade e uma besta. Ao mesmo tempo que O Soberano faz a lei, é um fora da lei. Por isso, a besta e o soberano ou, lida do seguinte modo: a besta é o soberano, essa posição indecidível entre um e outro. DERRIDA, Jacques. A besta e o soberano (seminários), vol I (2001-2002). Rio de Janeiro: Via verita, 2016.
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