Coluna Advocacia Pública e outros temas jurídicos em Debate / Coordenadores Weber Luiz de Oliveira e José Henrique Mouta
Nesta semana, nos dias 23 e 24 de junho, foi julgada a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 357, ajuizada pelo Governador do Distrito Federal com o objetivo de declarar a não recepção, pela Constituição de 1988, dos artigos 187, parágrafo único, do Código Tributário Nacional, e 29, parágrafo único, da Lei de Execuções Fiscais, à luz dos preceitos constitucionais inscritos nos artigos 1° caput, 18, 19, inciso III, e 60, § 4º, inciso I, do texto constitucional.
Os dispositivos impugnados na ADPF estabelecem preferência absoluta da União e suas autarquias em relação a Estados, Municípios e Distrito Federal no recebimento de créditos inscritos em dívida ativa nos casos em que se verifique concurso de entes federados credores de dívidas com o mesmo devedor ou grupo de devedores.
A tese apresentada pelo Governador do Distrito Federal e reforçada pelos Entes da Federação (Estados, Municípios de São Paulo e Porto Alegre, admitidos na condição de amici curiae) tem como ponto de partida a necessidade de observância dos princípios constitucionais que estabelecem ampla igualdade jurídica entre os entes federados e a indispensável implementação de um efetivo federalismo de cooperação.
Com o advento da Constituição Cidadã, superando o regime de superioridade da União e do federalismo formal, não há espaço para distinção e privilégios entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Todos os Entes nacionais são juridicamente iguais e dotados autonomia.
A Constituição vigente de forma expressa estabeleceu novo modelo federativo, em que União, Estados, Distrito Federal e Municípios figuram como entes autônomos, possuindo, cada qual, poderes de auto-organização, autolegislação, autogoverno e autoadministração. Tal arranjo federativo criado pelo Poder Constituinte de 1988 restaurou os pilares da Federação brasileira, resguardando de forma robusta a igualdade jurídica entre os entes políticos.
Nesse novo arranjo político-institucional, o equilíbrio federativo passou a constituir fundamento político central da Carta Magna, sendo os preceitos constitucionais, nesse contexto, a amálgama que mantém hígido o vínculo entre os entes federados.
Diante desse quadro, ao se estabelecer como elemento basilar do Estado Federado o arranjo institucional previsto pela Constituição Federal (regime de competências, divisão de receitas, atribuições etc) é inequívoca a constatação de que somente por meio de disposição constitucional expressa é possível o discrímem entre os entes políticos (preferências, prerrogativas, etc.), sendo regra a garantia de igualdade jurídica entre os entes. Esse é o preceito que consta expressamente do art. 19, inciso III, do texto constitucional:
“Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (...)
III – Criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si.”
O texto Constitucional de 1988 resguardou a autonomia dos entes federados estabelecendo competências e atribuições expressamente delimitadas na Constituição Federal. A divisão de atribuições, responsabilidades e áreas de atuação representam marco jurídico-político para aferir a legitimidade das ações in concreto e das políticas públicas promovidas pelos entes de direito público. A autonomia, assim, se afere nos limites das competências constitucionais (art. 18 da CF), de modo que qualquer intervenção ou usurpação de competência deve ser afastada pela Corte Constitucional.
Assim sendo, ante o imperativo da igualdade jurídica e a autonomia conferida aos entes políticos, afastou-se o paradigma da visão hierarquizada – ou verticalizada – do pacto federativo cristalizado na Súmula 563 do STF, reconhecendo que União, Estados, Distrito Federal e Municípios devem compor um federalismo de equilíbrio, isonômico e cooperativo.
Nas matérias apreciadas, direito tributário e procedimentos em matéria processual, há competência concorrente entre a União e os Estados (CF, art. 24, I e XI). Tratando-se, portanto, de competência concorrente, o exercício da competência legislativa da União para edição de normas gerais não pode se dar em seu próprio favor, editando normas de caráter pessoal.
Norma de caráter geral difere de norma de caráter pessoal!
Se existe no texto da Constituição Federal o reconhecimento de competências legislativas concorrentes, não se pode privilegiar o ente federal em detrimento das iguais competências dos entes estaduais.
Nessa perspectiva, cinco argumentos centrais respaldaram a tese de não recepção dos artigos 187, parágrafo único, do CTN, e 29, parágrafo único, da LEF pela Constituição Federal:
(A) Quebra da isonomia federativa, na medida em que os dispositivos de lei em tela são pautados por uma vetusta concepção verticalizada do pacto federativo (que era própria do regime constitucional anterior) que não mais subsiste diante do modelo de federalismo de equilíbrio e cooperação adotado pela ordem constitucional de 1988;
O legislador ordinário não pode estabelecer distinções ou preferências entre os entes federativos. No cenário atual da federação brasileira não existe hierarquia entre os Estados Federados, a Carta de 1988 conferiu paridade e igualdades às pessoas políticas.
(B) Impossibilidade de erigir a repartição constitucional de receitas tributárias como fator que justifique a discriminação/preferências legais que coloquem a União em posição hierárquica superior aos demais integrantes da Federação no concurso de credores entre os entes públicos. Até porque, grande parcela dos créditos tributários executados pela União decorrem de inadimplemento de contribuições especiais que, é sabido, não são repartidas, como os impostos, para Estados ou Municípios. Observa-se que o artigo 160 da Constituição, como regra consentânea com o espirito de equilíbrio federativo, veda qualquer retenção ou restrição, por parte da União, relativamente à transferência desses recursos aos Estados, Distrito Federal e Municípios.
(C) O regramento das relações entre os entes federados (ex. divisão constitucional de competências e o regime jurídico das receitas necessárias para concretizá-las), por encampar disposições normativas que se situam no cerne do pacto federativo, sensíveis ao equilíbrio entre os entes, não pode ser atribuído ao legislador ordinário, porquanto versa sobre matérias reservadas à deliberação do poder constituinte (originário ou derivado). Isso porque tais regramentos constituem o núcleo duro do equilíbrio federativo, não podendo ser imposto aos demais entes políticos pelo Poder Legislativo Federal.
É certo que, quando o poder constituinte previu hipóteses de discrímen entre os entes federados, o fez expressamente, conforme se depreende – a título de exemplo – do art. 43 da CF/88 (criação de regiões que visem ao desenvolvimento e à redução das desigualdades regionais, com possibilidade de instituição de juros favorecidos, isenções e igualdade de tarifas).
(D) A impossibilidade de se defender, à luz da sistemática constitucional vigente, que a União, do ponto de vista concreto, possui atribuições ou responsabilidades mais amplas e custosas que justifiquem preferências e privilégios legais no recebimento de créditos. Aos Estados e Municípios são atribuídas competências materiais e administrativas na implementação de políticas públicas de saúde, educação e segurança pública com a coparticipação (financiamento) por parte da União em razão da distorção da repartição da arrecadação das receitas tributárias que são concentradas quase que exclusivamente no âmbito federal.
(E) O exercício de competência para edição de normas gerais não pode impor, em dissonância com o texto constitucional, preferências pessoais da União em desfavor dos Estados e Municípios. Note-se que o disciplinamento das competências legislativas nas Constituições anteriores, vigentes à época da edição dos dispositivos legais impugnados, difere do que foi regulamentado na Constituição Federal de 1988, daí que, consectariamente, tal alteração das competências legislativas dos entes federativos não recepcionou os arts. 187, parágrafo único, do Código Tributário Nacional, e 29, parágrafo único, da Lei de Execuções Fiscais.
No voto da Ministra Carmem Lúcia[i], Relatora da ADPF 357, restou consignado, dentre vários fundamentos atinentes ao Federalismo brasileiro:
A autonomia dos entes federados e a isonomia é a tônica central entre eles, respeitando-se a distribuição de competências estabelecidas pela Constituição, alicerce para a manutenção do modelo jurídico-constitucional adotado. Daí porque a repartição de competências é o coração da Federação, na feliz expressão do então Ministro da Justiça do governo provisória, Campos Salles, nos albores federativos.
[...]
Sendo a federação brasileira forma complexa de descentralização política e geográfica do poder do Estado, pauta-se pelo princípio da autonomia dos entes que o formam, sendo suas competências, limitações e distinções aquelas descritas na Constituição e que não podem esvaziar a autonomia dos entes federadas.
[...]
Quer dizer, no plano internacional, o Estado Nacional, representado pela União, é soberana. No plano interno, a União é autônoma e iguala-se aos demais entes federados, sem hierarquia, com competências próprias. Naquele dispositivo se tem a expressão obrigatória da autonomia dos entes federados, indicando-se ausência de hierarquia entre os entes e delimitando-se que suas competências administrativas e legislativas decorram unicamente das previsões constitucionais.
[...]
26. A repartição de competências e atribuições entre os entes federados, no figurino constitucionalmente adotado no Brasil, consagra o federalismo cooperativo, inaugurado na Constituição da República de 1934 e que foi sendo ampliado, especialmente na Constituição de 1988, realçado em inúmeras decisões deste Supremo Tribunal...
[...]
28. No esforço de consolidação federativa, além da ênfase no liame próprio da cooperação, a busca da dinâmica com equilíbrio também é encarecido no sistema da Constituição da República de 1988, pelo que acolhe-se o princípio da simetria, que resulta na principiologia harmonizada das estruturas e das regras que formam o sistema nacional e os sistemas estaduais, de modo a não desconstituir os modelos adotados no plano nacional e nos entes federados, em suas linhas mestras. Nesse quadro o equilíbrio federativo ocorre com a unidade que se realiza na diversidade congregada e harmônica.
Este o modelo e os princípios informadores do modelo federativo adotado no Brasil e sob o influxo do qual se há de debater a compatibilidade constitucional das normas questionadas. O estabelecimento de hierarquia na cobrança judicial dos créditos da dívida pública da União aos Estados e esses aos Municípios desafina o pacto federativo e as normas constitucionais que resguardam o federalismo brasileiro por subentender que a União teria prevalência e importância maior que os demais entes federados.
29. Anoto que pode haver critério diferenciador para definição da ordem de pagamento de créditos, o que é legítimo. Adota-se até mesmo relativamente aos particulares, havendo pagamento diferenciado constitucionalmente fixado, por exemplo, em casos de precatórios com preferência e com a denominada superpreferência. Entretanto, dois pontos precisam ser enfatizados para que se reconheça a validade do critério distintivo: o primeiro, a igualdade modelada constitucionalmente entre as pessoas somente pode ter contornos definidores no sistema constitucional, não em norma infraconstitucional. Quer dizer: estabelecendo a Constituição da República a federação como forma de Estado, estatuindo a autonomia dos entes federados como núcleo da forma estatal (art. 18), somente pelo desenho constitucional se poderia estatuir preferências entre os entes para efeito de pagamento dos créditos tributários. Segundo, o que legitima critério de diferenciação – prevalecente o princípio da igualdade dos entes federados e da autonomia de cada qual – é a finalidade constitucional adequada demonstrada. No caso, nem a diferenciação põe-se em norma constitucional nem se comprova finalidade constitucional legítima buscada com a distinção estabelecida nas normas questionadas.
[...]
Na atual ordem constitucional vigente, rompeu-se com esse entendimento pela adoção do federalismo de cooperação e de equilíbrio pela Constituição da República de 1988, pelo que não se pode ter como válida a distinção, por lei, de distinção e hierarquia entre os entes federados, fora de previsão constitucional e sem especificação de finalidade federativa válida.
Em razão da procedência da ADPF, deliberou-se pelo cancelamento do verbete da Súmula 563, editada em 1977, sob a égide da Constituição de 1969. Eis a sua redação: “O concurso de preferência a que se refere o parágrafo único do art. 187 do Código Tributário Nacional é compatível com o disposto no art. 9º, I, da Constituição Federal”.
Na atual conjuntura histórica vivenciada na Federação brasileira é oportuna e relevante a decisão da Corte Constitucional, reafirmando a existência no Brasil de um Federalismo de equilíbrio, isonômico e cooperativo entre os seus membros.
Notas e Referências
[i] Extraído do Plenário Virtual, minuta de voto, em 09/10/2020, quando inicialmente foi pautada a ADPF 357.
Imagem Ilustrativa do Post: 9102796_s // Foto de: Cal Injury Lawyer // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/calinjurylawyer/22056330386
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/2.0/legalcode