Diuturnamente, durante suas atividades rotineiras, os operadores das polícias brasileiras, tanto ostensivas quanto judiciárias, deparam-se com situações envolvendo porte de armas brancas.
A conduta, em regra, é tipificada como ilícita, e o suspeito acaba por responder a um termo circunstanciado de infração penal por violar o tipo abstratamente previsto no art. 19, do Decreto-lei de n.º 3.688/41, chamado de Lei das Contravenções Penais – LCP.
Aduz o dispositivo que trazer consigo “arma” fora de casa ou de suas dependências, sem licença da autoridade, configura ilícito penal, cuja pena pode ser de prisão simples, de quinze dias a seis meses, ou multa.
Necessário, no entanto, analisar se, sob uma ótica constitucional, o tipo incriminador mencionado de fato abrange a conduta em comento.
Inicialmente, pontuamos que ao se interpretar uma norma, não podemos nos ater somente ao caput. Sua leitura, para verificar seu alcance, deve ser integrada aos parágrafos e incisos, e até mesmo à sua posição topográfica na lei que a criou. Trata-se da chamada interpretação sistemática da norma jurídica.
E, ao analisar o §2º, do art. 19, notamos o seguinte:
Decreto-lei de n.º 3.688/41
[...]
Art. 19. Trazer consigo arma fora de casa ou de dependência desta, sem licença da autoridade:
Pena – prisão simples, de quinze dias a seis meses, ou multa, de duzentos mil réis a três contos de réis, ou ambas cumulativamente.
[...]
§2º Incorre na pena de prisão simples, de quinze dias a três meses, ou multa, de duzentos mil réis a um conto de réis, quem, possuindo arma ou munição [...]
Como se percebe, o parágrafo segundo é claro ao afirmar “arma ou munição”. Ao nosso ver, isso deixa patente que o legislador originário quis atingir apenas as armas de fogo, posto não existirem munições propriamente ditas para armas brancas.
Ou seja, o art. 19, da LCP, foi concebido apenas para punir penalmente a conduta de quem portasse armas de fogo, fora de suas casas, sem licença das autoridades públicas.
Com o advento da lei de n.º 9.437/1997, máxime seu art. 10, revogou-se tacitamente esse art. 19, da LCP. Por sua vez, a lei de n.º 9.437/1997 foi expressa e integralmente revogada pelo chamado Estatuto do Desarmamento, lei de n.º 10.826/2003, a qual trata, atualmente, da posse e porte ilegal/irregular de armas de fogo e munições.
Portanto, para armas de fogo e munições, não é mais aplicável o aludido dispositivo da LCP.
Com efeito, a doutrina e a jurisprudência majoritárias entendem que, como o art. 19 não especifica qual é a natureza da “arma” a que se refere, usando uma verdadeira interpretação extensiva, apontam que armas brancas, tanto as próprias, como espadas, quanto as impróprias, como facas de cozinha, facões, e até mesmo um taco de baseball, entram no conceito de “arma”.
O Superior Tribunal de Justiça – STJ tem firme jurisprudência e decide de forma reiterada que a punição, aplicando-se tal norma em caso de porte de arma branca, é plenamente possível.
Vejamos trechos dos argumentos lançados no recurso ordinário em habeas corpus (RHC) de n.º 56.128/MG, julgado em 10 de março de 2020, tendo por Relator o Ministro Ribeiro Dantas, que bem representa o entendimento da dita corte:
[...] a jurisprudência do STJ é firme no sentido da possibilidade de tipificação da conduta de porte de arma branca como contravenção prevista no art. 19 do Decreto-lei n. 3.688/1941, não havendo que se falar em violação ao princípio da intervenção mínima ou da legalidade”.
Aceitemos, por ocasião deste estudo, que, de fato, o conceito de “arma”, previsto na aludida norma, abrange as armas brancas. Precisamos nos ater, então, à parte final do dispositivo, o qual prevê que a contravenção se perfaz somente quando alguém traz consigo, fora de casa ou de suas dependências, arma “sem licença da autoridade”:
Decreto-lei de n.º 3.688/41
[...]
Art. 19. Trazer consigo arma fora de casa ou de dependência desta, sem licença da autoridade:
Como já mencionado, para armas de fogo e munições, temos atualmente a lei de n.º 10.826/2003, a qual é regulamentada, hodiernamente (24.06.2020), dentre outros, pelo Decreto de n.º 9.487/2019 e pela Portaria de n.º 1.222/2019, essa do Ministério da Defesa.
Resta, para as demais “armas” que não as de fogo, o questionamento: há regulamentação estatal para seu porte, como exigido pelo art. 19 da LCP?
Antes de debatermos o núcleo do tema, é necessário entendermos alguns princípios basilares que regem o direito penal, especificamente os da legalidade, da reserva legal e da anterioridade.
O princípio da legalidade tem fundamento na Constituição Cidadã de 1988, em seu art. 5º, inc. II, que detém a seguinte redação:
Constituição Federal de 1988
[...]
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;
Em apertada síntese, podemos apontar que esse princípio é uma garantia constitucional que protege os indivíduos da ação do Estado, sendo regra a ampla liberdade, desde que o comportamento ou a atividade do indivíduo não sejam proibidos por lei. É a máxima: o particular, em regra, pode tudo que não lhe for vedado.
Já o princípio da reserva legal está alocado no mesmo art. 5º, mas no inc. XXXIX :
Constituição Federal de 1988
[...]
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;
Por esse princípio, somente lei, em sentido formal e estrito, pode criar delitos e cominar penas.
E junto à reserva legal está outro pilar do direito penal: o princípio da anterioridade, o qual aponta que nenhuma lei pode considerar criminosa conduta anterior à sua criação.
Esses princípios também estão previstos no art. 1º, do Código Penal Brasileiro, reforçando sua especial aplicação a esse ramo do direito:
Código Penal Brasileiro
Art. 1º - Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal.
Tratam-se de garantias do cidadão frente ao Estado, de que nenhuma conduta será considerada como criminosa sem que exista previamente a ela uma norma jurídica, uma lei em sentido estrito, criada por representantes eleitos pelo povo, prevendo-a como ilícita.
Sobre o tema, ensina Cleber Masson:
[...] Previsto no art. 5º, XXXIX, da CF e no art. 1º do CP, cuida-se de cláusula pétrea. Preceitua, basicamente, a exclusividade da lei para a criação de delitos (e contravenções penais) e cominação de penas, possuindo indiscutível dimensão democrática, pois representa a aceitação pelo povo, representado pelo Congresso Nacional, da opção legislativa no âmbito criminal. De fato, não há crime sem lei que o defina, nem pena sem cominação legal (nullum crimen nulla poena sine lege) [...].[1]
E continua o ilustre autor, ao tratar dos fundamentos desses dispositivos:
[...] Tal princípio possui um fundamento de natureza jurídica e outro de natureza política. O fundamento jurídico é a taxatividade, certeza ou determinação (não há espaço para a analogia in malam partem), pois implica, por parte do legislador, a determinação precisa, ainda que mínima, do conteúdo do tipo penal e da sanção penal a ser aplicada, bem como, da parte do juiz, na máxima vinculação ao mandamento legal, inclusive na apreciação de benefícios legais. O fundamento político é a proteção do ser humano em face do arbítrio do poder de punir do Estado. Enquadra-se, destarte, entre os direitos fundamentais de 1ª geração [...][2].
Mas, apesar da necessária taxatividade por parte do legislador, ou seja, certeza e determinação quando da criação de tipos penais, existem dispositivos incriminadores que, apesar de definirem em geral a conduta tida por ilícita, precisam ser complementadas por outras normas para que o intérprete compreenda e aplique o tipo abstrato ao mundo concreto. São as chamadas leis penais em branco.
Novamente nos valendo dos ensinamentos de Masson, o autor cita o jurista alemão Franz von Liszt para definir o que são elas:
[...] Lei penal em branco: Para Franz von Liszt, leis penais em branco são como “corpos errantes em busca de alma”. Existem fisicamente no universo jurídico, mas não podem ser aplicadas em razão de sua incompletude. A lei penal em branco é também denominada de cega ou aberta, e pode ser definida como a espécie de lei penal cuja definição da conduta criminosa reclama complementação, seja por outra lei, seja por ato da Administração Pública. O seu preceito secundário é completo, o que não se verifica no tocante ao primário, carente de implementação [...]. [3]
Guilherme de Souza Nucci, de seu turno, ao tratar do tema, traz um relevante questionamento: normas penais em branco ofendem o princípio da legalidade?
A resposta é negativa. Nas palavras do mestre, “[...] as normas em branco não ofendem a legalidade, porque se pode encontrar o complemento da lei penal em outra fonte legislativa extrapenal, previamente determinada e conhecida. [...]”.[4]
Postas as premissas, retornemos ao tema basilar do trabalho: o art. 19 da LCP aduz, como típica, a conduta de portar arma “sem licença da autoridade”, demonstrando, com isso, se tratar de uma norma penal em branco.
Partindo dessa constatação, para que ocorra a completa tipificação de uma conduta a essa norma, entendemos necessária uma regulamentação por parte do Estado sobre quem, de que forma, quando e onde alguém pode portar uma arma branca de tal ou qual espécie.
Sem o complemento normativo resta incompleto o tipo penal, o que impede sua aplicação no mundo concreto, sob pena restarem feridos todos os supracitados princípios: legalidade, reserva legal e anterioridade.
E para a contravenção penal em tela, ao que se sabe, não há qualquer norma do poder público federal regrando a forma como um sujeito deva portar uma faca ou um facão, ou mesmo um taco de baseball, ou, quiçá, uma barra de ferro.
Por oportuno, há um Decreto estadual de São Paulo que regulamenta o tema “armas brancas”. Trata-se do documento de nº 6.911/1935, o qual, em seu art. 5º, §1º, incisos “f” e seguintes, aduz que:
Artigo 5.º - As armas, para os efeitos deste Regulamento se classificam em:
§1.º - São proibidas as seguintes armas e accessórios:
[...] f) armas brancas destinadas usualmente à acção offensiva, como punhal; e também as bengalas ou guarda-chuvas ou quaesquer outros objectos contendo punhal, espada, estilete ou espingarda; g) certas bombas e petardos; h) facas cuja lâmina tenha mais de 10 centímetros de comprimento, e navalhas de qualquer dimensão, salvo quando as circunstâncias justifiquem o fabrico, comércio ou uso desses objetos como instrumento de trabalho ou utensílios.
Com efeito, ao nosso ver, o documento não fora recepcionado pela Constituição Federal de 1988, pois a competência para legislar sobre matéria penal é privativa da União, consoante disposto no art. 22, inc. I, da Constituição Federal de 1988, restando aos Estados apenas tratar de procedimentos em matéria processual, nos termos do art. 24, inc. XI, da Carta:
Constituição Federal de 1988
[...]
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;
Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
XI - procedimentos em matéria processual;
Além, permitir a cada estado da federação elaborar um complemento normativo para a lei penal incriminadora permitia uma indesejável discrepância no tratamento entre condutas idênticas, apenas por estar o sujeito ativo em local diferente do país, o que fere, inegavelmente, o princípio da igualdade, previsto no caput do art. 5º, da Constituição Federal de 1988:
Constituição Federal de 1988
[...]
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
Portanto, sem a complementação por um dispositivo federal, não há que se falar em infração penal por violação ao art. 19 da LCP. Até o Poder Público não elaborar normatização sobre como se dará o porte de armas brancas, não há maneira de o Estado punir qualquer pessoa que seja pego carregando uma arma branca.
Em outras palavras, a lacuna legislativa impede, de forma inegável e inevitável, a imputação, a quem é que seja, da contravenção penal de “porte de arma branca”, sob pena de serem violados de forma mortal, como citado, os princípios da legalidade, reserva legal e anterioridade.
Qualquer entendimento diferente a esse permitiria ao intérprete, no caso concreto, ao seu total arbítrio e sem parâmetros legais, decidir qual conduta será típica, e qual não, inexistindo, portanto, segurança jurídica mínima para o cidadão frente ao Estado.
A título de exemplo imaginemos, por um instante, a Semana Farroupilha, tradicional evento que ocorre anualmente no estado do Rio Grande do Sul, em que os participantes compareçam aos “acampamentos” “pilchados”, ou seja, vestidos à caráter, sendo a “pilcha” a indumentária tradicional da cultura gaúcha, utilizada por homens e mulheres.
Alguns dos tradicionais itens da “pilcha”, por parte dos homens, são a faca campeira, essa com os mais diversos adornos e fabricada com toda espécie de ferro e aço, cabo de muitos materiais distintos, inclusive osso de alguns animais, e o chicote, esse usado para cavalgadas. Em definição, ambos os objetos são armas brancas impróprias.
Estaria, no caso, o sujeito “pilchado” cometendo a contravenção penal em voga, ou a conduta estaria protegida constitucionalmente, face o direito à cultura, insculpido no art. 215, de nossa Constituição?
Constituição Federal de 1988
[...]
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
A resposta nos parece clara, límpida, ululante: como não há norma complementando o art. 19, da LCP, e frente ao art. 215 da Constituição, a conduta é atípica.
E é plausível prever que, acaso se entenda como possivelmente ilícita a conduta, a depender do caso concreto e de suas circunstancias (nessas incluídas a pessoa que porta a arma), em um evento em determinado local o Estado não intervirá, por conta de o agente fiscalizador crer presente, naquele caso, o direito à cultura; já em outro haverá intervenção estatal, face ao agente fiscalizador entender que o direito à cultura não abrange o porte de armas brancas naquela situação.
Note-se bem: frente a mesma situação de fato (alguém portando uma arma branca), haveria duas respostas diferentes do Estado, causando uma inegável e detestável insegurança jurídica.
Agora imaginemos a mesma situação em comento, ausência de complemento normativo, para a lei de drogas: não havendo manifesto do poder público sobre o que são substâncias entorpecentes, deveria o aplicador, por sua experiência, e a cada caso concreto, entender qual conduta é típica e qual não?
A resposta é óbvia: não, mas, apesar de serem situações análogas, há evidente permissão no caso de armas brancas, que seria inadmissível no caso de drogas.
O tema é deveras relevante, tanto que em consultas aos sites da Câmara dos Deputados e do Senado Federal encontramos projetos de lei criando tipos incriminadores novos e autônomos sobre o porte de armas brancas, demonstrando que o Congresso, responsável maior por elaborar normas no país, não vê cabimento em tipificar a conduta através do art. 19 da LCP.
E nesse contexto, para Nucci, a conjuntura é clara. O douto autor entende que o art. 19 da LCP não tem eficácia em nenhuma situação, pois a utilização de armas brancas não é regulamentada por lei, o que torna impossível que alguém consiga uma licença da autoridade e que, portanto, cumpra o requisito para não ser punido:
[...] Não há lei regulamentando o porte de arma branca de que tipo for. Logo, é impossível conseguir licença da autoridade para carregar consigo uma espada. Segundo o disposto no art. 5º, II, da Constituição Federal, ninguém é obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Há outro ponto importante. Cuida-se de tipo penal incriminador, razão pela qual não pode ficar ao critério do operador do direito aplicá-lo ou não, ao seu talante. Primamos pela legalidade (não há crime – ou contravenção – sem prévia definição legal) e não encontramos lei alguma que disponha sobre o tema. […] Parece-nos, pois, que não se pode privar um cidadão de trazer consigo, onde bem entenda, em outra ilustração, uma faca de caça (mais vulnerante que um punhal) ou um simples martelo, pretendendo puni-lo por contravenção penal e dando margem a uma infinita e discutível argumentação de que tal medida seria instrumento de contenção da violência. Pior: a aplicação da contravenção penal de porte de arma branca ficaria dependente da análise da vontade do agente: se carrega a faca de caça para caçar, não há infração penal; se a porta para o fim de, eventualmente, agredir alguém, cuida-se de contravenção. O tipo penal do art. 19 da Lei das Contravenções Penais sempre teve como meta primordial impedir o porte ilegal de arma de fogo. Quando, para este tipo de arma, deixou de existir, devemos ter extrema cautela ao defender sua vigência para outros instrumentos, não regulados por lei para qualquer fim (desde a fabricação até o porte). Não se trata, igualmente, de norma penal em branco, pois não há relação de armas válida para preencher o tipo. Ainda que se argumente que já houve proibição de porte de punhal, por exemplo, pode-se, claramente, notar que uma foice (material de trabalho de muito agricultor) pode ser mais vulneral que referido punhal e, decididamente, não é arma destinada à ofensividade. Não podemos concordar com a falta de taxatividade deste tipo, deixando ao alvedrio do agente policial, ao deparar-se com um cidadão caminhando pela rua com uma foice atrelada à cinta, prendê-lo ou não, conforme sua interpretação. Estaria esse sujeito indo ao trabalho, com o instrumento que utiliza para exercê-lo, ou pretenderia agredir terceiros? Essa pergunta não pode ser respondida ao sabor das vontades e segundo a experiência pessoal de cada um” [...][5].
Esclarecemos que não se está aqui a defender, sobremaneira, a conduta de pessoas mal-intencionadas que carregam consigo, em vias públicas, ou mesmo em eventos públicos, instrumentos como facas, facões, punhais etc., e com isso possam colocar em risco terceiros.
No entanto, esse pretenso risco é em abstrato, não em concreto, e caso o agente use tais objetos para ameaçar ou ferir alguém, ou danificar algo, há expressa previsão legal para sua conduta, como os crimes da ameaça, de lesão e de dano.
Vale dizer, não há vazio normativo para as condutas concretamente ofensivas, e promover a criminalização do mero ato de portar a arma branca é, no íntimo, antecipar as chamadas barreiras punitivas, fenômeno conhecido e estudado em criminologia, tratando-se de um dos pilares da teoria do direito penal do inimigo, de Günther Jakobs, que busca punir delitos de perigo abstrato e promover a incriminação de atos preparatórios.
Nesse sentido, Rogério Greco, citando Manuel Cancio Meliá, esclarece o tema:
[...] Segundo Jakobs, o Direito penal do inimigo se caracteriza por três elementos: em primeiro lugar, se constata um amplo adiantamento da punibilidade, quer dizer, que neste âmbito, a perspectiva do ordenamento jurídico-penal é prospectiva (ponto de referência: o fato futuro), em lugar de – como é habitual – retrospectiva (ponto de referência: o fato cometido). Em segundo lugar, as penas previstas são desproporcionadamente altas: especialmente, a antecipação da barreira de punição não é tida em conta para reduzir em correspondência a pena ameaçada. Em terceiro lugar, determinadas garantias processuais são relativizadas ou, inclusive, suprimidas [...].[6]
Cremos que entender delitiva a conduta de portar arma branca sem que haja, sequer, o complemento normativo ao disposto no art. 19, da LCP, é uma real e evidente expressão do direito penal do inimigo, mas ainda mais perigosa que a proposta de Jakobs, posto que a decisão sobre o que configura infração não advém da vontade política do Estado, mas sim do viés individual de cada aplicador da lei ao caso concreto, elevando, ainda mais, o risco de abusos e arbitrariedades, incompatível com um Estado de Direito.
E acaso se brande pelo viés do interesse público, temos que, até a complementação normativa federal do art. 19 da LCP, ou eventual criação de um tipo penal específico, o tema pode ser regido por normas administrativas, como vedação de entrada ou permanência em eventos com armas brancas, mas sem viés de punição penal, conforme tudo que foi exaustivamente exposto.
Atento à relevância do tema, inclusive sobre o citado Decreto paulista, nossa Suprema Corte, quando da análise do agravo no Recurso Extraordinário de n.º 901.623/SP, através do Ministro Relator Edson Fachin, entendeu se tratar de matéria de elevado interesse social e jurídico, e ao caso deu repercussão geral.
A decisão ainda pende de julgamento, e será um importante marco regulatório de direitos fundamentais. Aguardemos.
De toda sorte, e em conclusão, posicionamo-nos no sentido de que o termo “arma”, usado no art. 19, da LCP, tratava, na origem, apenas das armas de fogo, e o tipo foi superado, sendo a lei de n.º 10.826/2003 que atualmente rege o assunto, não havendo mais aplicação àquela norma, tratando-se de letra morta.
Para os que, de outra banda, entendem o termo “arma” é aplicável às armas brancas em geral, resta inegável ser um dispositivo penal que, ao menos por ora, é inaplicável em nosso ordenamento jurídico, posto não haver complemento normativo regrando o assunto.
E por essa ótica ousamos discordar da atual posição da Corte Cidadã, de que é aplicável o art. 19 da LCP em casos de porte de armas brancas na atual conjuntura normativa, posto que, como demonstrado, há uma evidente afronta aos princípios da legalidade, da reserva legal e da anterioridade, e como disse Celso Antônio Bandeira de Mello,
[...] Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustêm e alui-se toda a estrutura nelas esforçada.[7]
Por fim, e por tudo que fora exposto, temos que na atividade prática das polícias brasileiras resta incabível submeter alguém, capturado portando arma branca, a um procedimento investigativo pela prática da contravenção penal prevista no art. 19 da LCP, por total atipicidade de sua conduta.
Notas e Referências
[1] MASSON, Cleber. Código Penal Comentado. 2º Ed. São Paulo: Método. Págs. 26-27
[2] MASSON, Cleber. Código Penal Comentado. 2º Ed. São Paulo: Método. Pág. 27
[3] MASSON, Cleber. Código Penal Comentado. 2º Ed. São Paulo: Método. Pág. 35
[4] NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 17ª ed. Rio de Janeiro: Forense. 2017. Pág. 43
[5] Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 10º Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, vol. 1. Págs. 119-120
[6] Greco, Rogerio. Direito Penal do Inimigo. Jusbrasil, 2012. Disponível em: https://rogeriogreco.jusbrasil.com.br/artigos/121819866/direito-penal-do-inimigo. Acesso em 22.06.2020, às 11h00min.
[7] Mello, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 12ª edição. São Paulo: Malheiros, 2000. Pág. 748
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