Pororocas sociais: a corrupção (des) institucionalizada

19/12/2016

Por Affonso Ghizzo Neto – 19/12/2016

É a partir de valores já existentes que as sociedades recriam suas próprias histórias, impondo novas regras, condutas, padrões éticos e posturas morais. A ética, entendida como acontecimento relacional, está sujeita a uma mutação constante haja vista a necessária readequação aos fenômenos sociais, dentre os quais, a corrupção. Dito de outra forma, seu caráter instável e renovável possibilita a evolução, assim como o retrocesso histórico, não raras vezes conjuntamente como ondas contrárias que se chocam, o que podemos nominar como “pororocas sociais”. Somos o que vivemos, o que presenciamos cotidianamente, edificando nossa ética a partir de nossas condutas e dos exemplos que nos rodeiam socialmente.

A história do indivíduo só pode ser compreendida integralmente dentro do contexto social da experiência coletiva e histórica. Para Pinharanda Gomes, cultura é a “herança tradicional e multiforme, constantemente atualizada, mediante a opção por sucedâneos e por novas ou até aí ignoradas fórmulas de vida.”[1] Os valores morais e éticos, assim como a cultura, só podem ser realizados através da própria existência, ou seja, a partir das experiências atuais e históricas da humanidade.

Nesse sentido, sendo o fenômeno da corrupção essencialmente social (cultural, institucional, econômico etc.), há que se constar como os valores e anti-valores sociais foram, ao longo do tempo, formatados, ou seja, como as “pororocas sociais”, determinaram a criação e a estrutura de nossas sociedades, desde a índole e a identidade individuais, até a força ou debilidade de nossas instituições.. Zancanaro, ao ressaltar a relevância da influência dos valores e anti-valores da cultura política lusitana na formação da ética política brasileira, confirma:

A corrupção político-adminsitrativa desponta como um fenômeno detectado na cultura política de Portugal por expoentes do pensamento e da cultura lusitana do quilate de um Alexandre Herculano, Antero de Quental, Marcelo Caetano, Manoel Gonçalves Cerejeira, Lúcio de Azevedo, Diogo de Couto, Padre Antônio Vieira, Coelho da Rocha, só para citar alguns. Os longos séculos de dominação privatista e centralizadora permitiram o surgimento de um conjunto de tendências sócio-políticas dadas a difundir padrões anti-sociais de comportamento. A corrupção político-adminsitrativa pertence a esse quadro de anti-valores culturais. Transplantada para o Brasil-Colônia a partir do descobrimento, incorporou-se às estruturas mentais de largas camadas da sociedade brasileira nascente.[2]

Embora os costumes, hábitos e práticas sociais já se apresentem edificadas, num menor ou maior grau de evolução, a evolução de nossas instituições públicas e privadas não implicam necessariamente uma continuidade linear obrigatória, intransponível ou imodificável. Feliz ou infelizmente, como não somos escravos de nossa história, as novas gerações podem reverter os valores de condutas sociais preexistentes, fortalecendo ou debilitando nossas instituições e, consequentemente, consolidando ou destruindo suas credibilidades.

Neste contexto, a corrupção[3], no seu sentido mais amplo, pode ser definida como a decomposição, o apodrecimento do estado padrão normal ou esperado, o processo ou efeito de corromper e alterar as características originais de uma coisa ou um procedimento. É a devassidão, degradação, depravação, prostituição e perversão de hábitos e costumes. Enfim, o suborno, a vantagem indevida, o engodo arquitetado, a peita, o processo ou efeito de corromper e alterar as características originais de uma coisa ou um procedimento. Sob as mais variadas formas e realces múltiplos, o fenômeno da corrupção campeia as diversas áreas da atividade humana, tanto na esfera pública, como na privada, notadamente em entornos com instituições débeis onde círculos viciosos fortalecem uma lógica clientelista de difícil rompimento.

Nestes entornos, a corrupção pode ser identificada com a disposição voluntária em certos grupos sociais e indivíduos de desrespeitar ou manipular o ordenamento legal vigente, estando associada inegavelmente, em regra, ao poder político e às atividades públicas. A referência não é absurda, pois o ideal de corrupção é muito mais elaborado, complexo e articulado do que se apresenta superficialmente. Além de atingir diretamente políticos e servidores públicos, a corrupção contamina grande parte da sociedade e dos indivíduos que a compõem com a tendência de sua destruição total.

Como se sabe, a ética possui caráter relacional e não uma característica normativa, estando associada à cultura humana e à vivência prática do dia-a-dia, tendo influência decisiva na estruturação de nossas instituições. E é a partir da fermentação de hábitos e costumes individuais e coletivos, considerados num espaço aberto, que a representação dos atos humanos edifica o fortalecimento ou a debilidade de nossas instituições através da reprodução positiva ou negativa de práticas sociais.

Nesse terreno complexo e arenoso, pode parecer impossível a determinação de um padrão de moralidade pública universal, aplicável indistintamente a todas as sociedades e sujeitos de suas história. Ocorre que o fenômeno da corrupção se manifesta no cotidiano humano nas mais variadas formas e estilos, marcando presença em todos os povos e nações, sendo equivocado o entendimento de que se faria sentir somente nos países rotulados como subdesenvolvidos ou, ainda, somente naqueles que implementaram uma organização de dominação patrimonial.

A definição dos comportamentos políticos e administrativos, como lícitos ou ilícitos, regulares ou corruptos, pode ser indicada pela consideração do cumprimento oficial das finalidades públicas a que se destinam originalmente. Será considerada deficiente, irregular ou corrupta aquela ação política ou administrativa que não corresponder às expectativas ordinárias, afastando-se dos objetivos específicos para os quais foi executada. Assim, toda ação pública que não se adequar à ordem racional legitimamente estabelecida, será considerada como atividade irregular. Quando, por exemplo, manipular-se o exercício do poder político e das funções públicas, para obtenção de outras finalidades alheias aos fins originais públicos, havendo dissociação da finalidade pública, restará caracterizado o ato de corrupção ou de improbidade.

Não basta, portanto, a simples observância do ordenamento jurídico, sendo necessária a prevalência dos interesses públicos e dos valores morais respectivos através da consolidação de instituições fortes. O fenômeno da corrupção se estabelece através da apropriação pessoal do poder cedido ou delegado.

Portanto, qualquer artimanha ou faceta que agrida a ordem constituída, reconhecida e socialmente determinada, visando à obtenção de lucros, benefícios ou outros privilégios oriundos da utilização indevida do poder concedido dentro da esfera pública, enquadra-se como ato de improbidade ou corrupção. A ética retorcida pela corrupção se caracteriza por uma gama enorme de instrumentos materiais e morais utilizados por políticos, servidores públicos ou particulares para, com amparo legal ou não, obter benefícios pessoais alheios à regularidade e ao bom funcionamento de instituições fortes, confiáveis e prestigiadas.

A corrupção banalizada no tecido social parece ser um fator preponderante do funcionamento parcial das instituições. É atributo da impunidade, fruto de uma lógica individualista onde tudo é possível, bastando ter os contatos  “certos” e os caminhos “adequados”. Logo, em sociedades com instituições débeis como a brasileira, onde a coletividade já possui uma expectativa negativa de suas instituições e de seus próprios cidadãos, se torna muito difícil o controle dos diversos interesses particulares, havendo uma tendência natural a um ganho imediato através da consolidação de práticas corruptas e, consequentemente, da aceitação da impunidade como um resultado normal e esperado.


Notas e Referências:

[1] GOMES, Pinharanda. Fenomenologia da cultura portuguesa. Lisboa: Ultramar. 1970, p. 23.

[2] ZANCANARO, Antonio Frederico. A corrupção político-administrativa no brasil. São Paulo: Editora Acadêmica, 1994, p. 40.

[3] A expressão corrupção deriva do latim, corruptione, proveniente do verbo latino rumpere, que significa, romper, fender, separar, quebrar, degradar, corromper.

FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3ª edição revisada. São Paulo: Globo, 2001.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. A Corrupção Como Fenômeno Social e Político. in Revista de Direito Administrativo, n. 185, p. 1, Rio de Janeiro: Renovar, 1994.

GHIZZO. Affonso Neto. Corrupção, estado democrático de direito e educação. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012.

GOMES, Pinharanda. Fenomenologia da cultura portuguesa. Lisboa: Ultramar. 1970.

REVEL, Jean-François. Corrupção, ameaça à democracia. Jornal O Estado de São Paulo, 17/08/1986.

ZANCANARO, Antonio Frederico. A corrupção político-administrativa no brasil. São Paulo: Editora Acadêmica, 1994.


affonso-ghizzo-neto. . Affonso Ghizzo Neto é Promotor de Justiça. Doutorando pela USAL. Mestre pela UFSC. Idealizador do Projeto “O que você tem a ver com a corrupção?”. aghizzo@gmail.com / aghizzo@usal.es. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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