O termo necropolítica foi cunhada pelo filósofo camaronês Achille Mbembe para se referir a uma distinção em relação ao que Michel Foucault chamava biopolítica. Em linhas gerais, a segunda consiste na inclusão, na modernidade, dos corpos biológicos de indivíduos nos cálculos de governo a fim de produzir populações, ou seja, uma política que toma os corpos individuais para produzir um corpo coletivo (população) que será aproveitado por um governo em sentido amplo (não necessariamente por um Estado) a fim de aumentar as próprias forças. Essa inclusão dos corpos dos indivíduos e do corpo da população nos cálculos do poder, para Foucault, foi fruto de uma inversão na lógica da soberania presente nos cálculos do poder entre os séculos XVII e XVII expressa na fórmula “fazer morrer e deixar viver” para uma mudança paradigmática no exercício do poder soberano expressa na máxima: “fazer viver e deixar morrer”. Obviamente, Foucault não descartou que um governo também pode fazer com que um corpo indesejável morra, mas pensou isso em um contexto europeu, no qual tenta-se salvar o máximo de corpos possíveis. Mbembe, por outro lado, pensa a política desde a perspectiva dos povos africanos exterminados e explorados pelo colonialismo europeu ao longo de séculos. Daí porque necropolítica é a política da morte. Por lá, a política extrativista não envolveu o salvamento do maior número de corpos, mas o extermínio dos dissidentes, dos diferentes, das singularidades de suas formas de vida. Pouco importava quantos se salvariam. E, em muitos países, continua a ser assim. O que não quer dizer que não seja possível a coexistência de biopolítica e de necropolítica. Pelo contrário, há uma seletividade em relação aos corpos sobre os quais cada uma incide, geralmente associada a raça, o que demonstra de forma inequívoca que o racismo é inerente a lógica de constituição do Estado moderno e a lógica do exercício do poder soberano à ele vinculada.
A história da colonização do Brasil não é muito diferente. Extermínio dos povos originários, imigração de europeus e extrativismo. Apesar disso, os mitos brasileiros continuam a circular: cordialidade, pacifismo e outras baboseiras que podem ser refutadas sem esforços ao se ler as notícias diárias de qualquer jornal (mas principalmente ao se ler os comentários nas manchetes, pregando o extermínio dos “bandidos”, “marginais” etc.). Por isso importa no Brasil pensar também a partir dos pressupostos da necropolítica[i], sobretudo após 1989, com a adesão ao Consenso de Washington[ii] e a chegada, em terras tupiniquins, do neoliberalismo. Já abordamos o neoliberalismo em diversos textos desta coluna[iii], por isso reiteraremos apenas dois aspectos: o modo de subjetivação do sujeito-empresa que vive para concorrer e a aparente dispensabilidade do trabalho. Por um lado, a lógica concorrencial entre os empresários de si é sustentada pelos discursos do vencedor, do mérito e das muitas oportunidades, sempre regado a exemplos excepcionalíssimos: o pedreiro que ficou bilionário, o filho de costureira que virou CEO de multinacional, o mecânico que virou juiz e assim por diante (não estamos criticando os esforços desses indivíduos, mas a apresentação das sofridas histórias de vida para vender a ilusão de que todos podem chegar lá, ilusão essa que sustenta o mito da “igualdade de concorrência”, propagado pelos neoliberais). Por outro lado, a versão neoliberal do capitalismo opera, sobretudo por meio de especulação no mercado financeiro. A financeirização (especulação em títulos de dívidas e ações de empresas de capital aberto) é distinta do financiamento (custeio de uma atividade, com empréstimo ou aquisição de lucros futuros). O processo de financeirização rompeu com a economia capitalista liberal, pois o trabalho passou a parecer dispensável ao crescimento econômico (e não se pode ignorar que Marx já havia alertado para o fato de o crescimento, assim como a diminuição, ser uma disfunção).
A aparente dispensabilidade do trabalho vem de par com outra situação aparente: a da contradição com as possibilidades do empreendedor de si obter sucesso na vida, pois o sujeito-empresa aparentemente precisa trabalhar para obter renda. Isso porque se constata o sucesso dos detentores de voluptuosas fortunas dispersas entre propriedades privadas, empresas, holdings, ações e títulos (sobretudo essas duas últimas). Portanto, a igualdade para concorrer em busca do sucesso está vinculada ao capital acumulado, não ao trabalho desempenhado: mais às heranças do que aos méritos ou, dito de outro modo, o maior mérito é de quem nasce em berço de ouro. Mas, se a concorrência deve se dar na aquisição de títulos e ações, mais rentáveis (ou menos, a depender do dia, da hora, das transações realizadas pelas empresas, do pagamento das dívidas cujo título foi adquirido, de escândalos de corrupção e outras variáveis, pois “os riscos são proporcionais às possibilidades”), não quer dizer que o trabalho seja dispensável. Pelo contrário, sem o trabalho dos pobres e dos precariados[iv] não haveria pagamento das dívidas e, consequentemente, o pagamento e o lucro dos credores (assim como o dos portadores de títulos das respectivas dívidas) seriam prejudicados. Como já ficou claro, o trabalho não é dispensável. Dispensável é, uma vez mais, a distribuição dos lucros em prol do aumento da mais valia dos espoliados trabalhadores.
Entretanto, se a dispensabilidade do trabalho é um embuste dos neoliberais, as crises infindáveis do capitalismo não são embustes. Crise[v] e guerra andam de par no capitalismo. Daí a referência de Joseph Schumpeter à “destruição criativa”[vi] e algumas publicações recentes de Maurizio Lazzarato[vii]. No contexto necropolítico que tem como catalisadores, primeiro o neoliberalismo, e agora a pandemia, chegamos à insustentável situação em que não apenas as condições de trabalho são cada vez mais precárias, mas também na qual os postos de trabalho são insuficientes. Mesmo que todos os brasileiros decidam vestir a camisa verde e amarela (e aceitar a carteira de trabalho precarizada), ainda assim nem todos terão trabalho. E aqui emerge um novo fator, um problema desconhecido no contexto de criação do Estado de bem-estar social europeu a partir de 1917: uma versão do capitalismo que pretende aumentar a riqueza reduzindo o trabalho. A fome, obviamente, não é nova, tampouco as precárias condições de subsistência.
A grande questão é que o que foi chamado de constitucionalismo social, movimento de invenção dos direitos sociais (direitos de prestação estatal) que se somaram aos direitos liberais (direitos de abstenção estatal contra os cidadãos), não previu a imprescindibilidade de um direito fundamental à renda. Tanto é assim que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, considerada uma das mais progressistas do mundo em matéria de direitos fundamentais, prevê como direitos sociais: educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados[viii]. Vários direitos incluídos no rol de direitos sociais, a maioria sem prestações estatais para assegurá-los, portanto, direitos liberais travestidos de sociais, ou meras promessas modernas. Com o fechamento do cerco neoliberal, as condições materiais para o exercício desses direitos dos quais todos somos titulares passam a ser problemas individuais: quem não pode exercer, não fez por merecer, não empreendeu suficientemente ou empreendeu suficientemente, mas não adequadamente.
Se todos titularizamos esses direitos, se o capitalismo floresceu aos pés do Estado moderno, e se o neoliberalismo se instalou e agora se expande às expensas do Estado[ix] que assumiu a responsabilidade por garantir o lastro dos títulos das dívidas e eventuais resgates econômicos de grandes empresas (daí o jargão estadunidense: too big to fail), é hora de esse mesmo pai dos ricos abrir o cofre e repartir os recursos com quem custeou tudo isso. Não estamos aqui propondo uma mera expansão do auxílio emergencial, nem em relação aos valores, nem aos destinatários. É muito mais do que isso. Se o trabalho começa a deixar de existir por conta do modelo econômico adotado pelo Estado (o Estado brasileiro aderiu expressamente ao capitalismo[x] e se conformou ao modelo neoliberal), há uma supressão de direito fundamental sem qualquer modificação no texto constitucional, isto é, uma supressão indireta (e esse mesmo raciocínio vale para todos os direitos sociais).
É hora do Estado protetor do capitalismo fornecer as benesses a todos. A necropolítica vigente precisa ser combatida com um direito fundamental à renda. Mas não qualquer renda. Não estamos falando em R$ 300,00, nem no vergonhoso salário mínimo que nunca cumpriu 1/3 da promessa constitucional de cobertura mínima de todas as necessidades básicas dos trabalhadores e de suas famílias com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social[xi]. Estamos falando em receber de volta o dinheiro do suor e do sangue para morar, comer, beber (álcool também, de preferência vinhos caros como aqueles que o Exército[xii] e os Tribunais compram com o nosso dinheiro), fumar (de preferência palheiro, para deixar dinheiro com os sofridos agricultores da indústria fumageira), ir para baile Funk[xiii], show de RAP, dançar macarena ou qualquer outro programa de lazer ao qual todos temos direito fundamental), comprar roupas de quaisquer marcas desejadas, produtos de higiene pessoal de qualidade e andar sentados em ônibus, trens e metrôs, para estudar em universidades de qualidade (não em Uni-Esquinas) e ter tratamento de saúde. Enfim, um direito à renda, não à esmola!
Não desconsideramos aqui o argumento agambeniano de que o fundamento do direito é a violência originária constitutiva da lei e nem de que a exceção é a regra (portanto, de que quanto mais direitos, mais exceção), mas, se o Estado brasileiro quer jogar o jogo cujas regras criou, deve cumprir todas ao invés de perpetuar a tradicional criação de regras que apenas os cidadãos precisam cumprir, com embustes de todos os lados para sacanear os cidadãos e receber vantagens financeiras que posteriormente são revertidas em benefícios fiscais para os grandes conglomerados econômicos (doações de terras para estabelecimento de fábricas, isenções tributárias e outras atrocidades custeadas por todos nós). Se as grandes empresas são sustentadas pelo Estado, nós também devemos ser! Por outro lado, se o Estado não quer “sustentar vagabundos” e nem “dar dinheiro para baile funk”, que pare de gastar nosso dinheiro com vinhos, uísques[xiv], lagostas[xv], caviar[xvi], camarões e outros alimentos para altos funcionários públicos (os quais talvez muitos brasileiros morreram e morrerão sem ingerir) e que trate de tributar os ricos. E olha que nem falamos na compra de cloroquina. Fica para o próximo texto da coluna...
Notas e Referências
[i] É crucial que retomemos o extenso e profundo trabalho realizado ao longo dos tempos por literatos, historiadores, sociólogos, filósofos, juristas e cientistas políticos brasileiros, que se desafiaram a compreenderem o ethos constitutivo dos povos reunidos nestas terras na constituição de categorias de análise que se encontrem profundamente vinculadas com nosso modo de ser. Ou seja, somente tomando a nós mesmos como objetos é que construiremos conceitos e instrumentos de análise e de ação suficientes. Este posicionamento não desconsidera o brilhantismo de Mbembe, que a partir da categoria de necropolítica interpreta as violências e a condição africana. Na mesma direção o conceito de biopolítica, que permite à Foucault interpretar de forma original a constituição do Estado moderno europeu exportado pelos violentos processos de colonização. Reconhecidas estas e muitas outras contribuições é preciso ter presente que as mesmas foram construídas sob medida para a análise de suas respectivas realidades. Quanto a nossa condição estamos desafiados a pensar por própria conta e risco, ou continuarmos na condição de consumidores de categorias conceituais que não abarcam as especificidades de nossa condição.
[ii] O Consenso de Washington, apesar do nome, foi uma pauta com medidas impostas à América Latina que mudou os rumos da economia em toda a região para a adoção do neoliberalismo.
[iii] Vide principalmente: https://emporiododireito.com.br/leitura/coronavirus-nos-obrigara-a-reinventar-o-comunismo-insinuacoes-neoliberais-brasileiras e https://emporiododireito.com.br/leitura/do-joao-sem-terra-ao-joao-sem-poste-a-propriedade-privada-transformada-em-privatizacao-do-espaco-publico
[iv] “Entre os ricos e os pobres, está todo o restante da população brasileira, os precariados, ou seja, os trabalhadores em condições mais ou menos precárias. É bem aí que reside o grande imbróglio do eleitor bolsonarista, que engloba desde (A) o simpático motorista de Uber, a vendedora delicada, o porteiro prestativo, o microempresário trabalhador e a manicure festeira – todos indignados com o sistema político frouxo ou com a moral tradicional abalada além de frustrados com a própria situação – até (B) o fanático, o agressor tomado pela fúria prestes a ‘se vingar’ e matar um esquerdista, uma pessoa negra, um LGBTQI+, uma feminista, em suma, os ‘culpados’ pela deterioração do mundo. A diferença entre A e B existe, mas a tendência é que ela diminua conforme o cenário se radicaliza.” PINHEIRO-MACHADO, Rosana. Amanhã vai ser maior: o que aconteceu com o Brasil e as possíveis rotas de fuga para a crise atual. São Paulo: Planeta do Brasil, 2019, p. 148.
[v] “‘Crise’ e ‘economia’ atualmente não são usadas como conceitos, mas como palavras de ordem, que servem para impor e para fazer com que se aceitem medidas e restrições que as pessoas não têm motivo algum para aceitar. ‘Crise’ hoje em dia significa simplesmente ‘você deve obedecer!’. Creio que seja evidente para todos que a chamada ‘crise’ já dura decênios e nada mais é senão o modo normal como funciona o capitalismo em nosso tempo. E se trata de um funcionamento que nada tem de racional” SALVÀ, Peppe. “Deus não morreu. Ele tornou-se Dinheiro”. Entrevista com Giorgio Agamben. Trad. Selvino José Assmann. Blog da Boitempo, São Paulo, 31 ago. 2012. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2012/08/31/deus-nao-morreu-ele-tornou-se-dinheiro-entrevista-com-giorgio-agamben/
[vi] Vide SCHUMPETER, Joseph Alois. Capitalismo, socialismo e democracia. Trad. Luiz Antonio Oliveira de Araújo. São Paulo: Editora UNESP, 2017.
[vii] Sobretudo ALLIEZ, Éric; LAZZARATO, Maurizio. Wars and capital. Trad. Ames Hodges. Cambridge: MIT Press, 2018; LAZZARATO, Maurizio. ¡Es el capitalismo, estúpido!. In: AGUILAR, Yásnaya Elena et al. Capitalismo y pandemia. FilosofíaLibre: sem local, 2020.
[viii] “Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.”
[ix] Note-se, por exemplo, que a Ford recebeu financiamento do estado brasileiro, via BNDES, com juros subvencionados às custas dos tributos pagos pelos brasileiros e agora fechou as fábricas no país, mas o Zé da esquina, brasileiro, não consegue financiamento do BNDES, ou não sabe como conseguir, para adquirir um forno novo para a padaria dele que mal consegue se manter aberta porque há duas quadras abriu um hipermercado de uma grande rede que comercializa pães e doces pela metade do preço porque adquire os ingredientes por 10% do valor pago pelo Zé. Sobre o financiamento da Ford, ainda não quitado: https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/01/12/com-r-335-milhoes-em-emprestimos-bndes-pede-explicacoes-a-ford-sobre-fechamento-de-fabricas.ghtml
[x] “Art. 170 da Constituição. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: […] II - propriedade privada; […] IV - livre concorrência.”
[xi] “Art. 7º da Constituição. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: […] IV - salário mínimo , fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim;”
[xii] https://veja.abril.com.br/brasil/no-exercito-bebida-alcoolica-vira-item-da-cesta-basica/
[xiii] REDAÇÃO. Guedes não descarta novo auxílio, mas não quer dar dinheiro para “baile funk”. Jornal Contábil, Rio de Janeiro, 21 jan. 2021. Disponível em: https://www.jornalcontabil.com.br/guedes-nao-descarta-novo-auxilio-mas-nao-quer-dar-dinheiro-para-baile-funk/
[xiv] https://www.campograndenews.com.br/brasil/cidades/em-ano-de-covid-gasto-milionario-do-exercito-nao-e-so-com-camarao
[xv] https://veja.abril.com.br/politica/stf-acerta-compra-de-menu-com-lagosta-e-vinho-por-r-481-mil/
[xvi] https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2018/06/13/em-meio-a-crise-exercito-faz-licitacao-para-comprar-2-toneladas-de-camarao-caviar-e-espumante.htm
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