Do João “sem terra” ao João “sem poste”: a propriedade privada transformada em privatização do espaço público

09/02/2020

Circula pelas redes sociais a fotografia digital de um pássaro, um João de barro, que construiu a casinha de barro em um poste, com uma lâmpada de frente para a entrada e uma câmera abaixo[i]. Essa imagem pode ser analisada sob diversos aspectos, dentre os quais o humorístico. Mas nos interessa o sentido político. Se ao invés de um o pássaro fosse um exemplar tupiniquim do homo sapiens sapiens, teríamos um exemplo de uso do espaço público. Teríamos alguém que talvez sabe ou ouviu falar que o espaço público é destinado ao uso comum dos membros da comunidade política brasileira, que a iluminação pública é necessária, dentre outras coisas, para assegurar a acessibilidade das casas, bem como que as câmeras de vigilância (cuja existência, ainda que criticável, é inegável) devem ser utilizadas para vigiar o espaço público, não para bisbilhotar a vida privada. Obviamente alguém pode alegar que tratamos de uma apropriação do espaço público, portanto de conduta indevida. Porém, este argumento primeiramente desconsidera que o espaço público não é propriedade do Estado, mesmo considerando que sua administrabilidade tenha sido a ele confiada pelo contrato social. Ainda, nesta direção, esse argumento só tem sentido se pensarmos como sujeitos ensimesmados, numa sociedade desigual como a brasileira. Se houvesse iluminação pública nas entradas de todas as casas, a alegação não teria sentido algum.

A construção de um espaço público, distinto do espaço privado (dimensão na qual tratamos das coisas privadas, bem como das condições biofisiológicas), é condição de possibilidade da ação comum, da política. Na modernidade a esfera pública foi invadida por discussões da esfera privada. O filósofo italiano Giorgio Agamben (1942...) pensa que isso se deve à coincidência entre o espaço da vida nua (homo sacer) e o espaço político. Dito de outro modo, quando a vida nua e as condições biofisiológicas da vida (vida em grego é designado por duas palavras: bios, a vida política, e zoé, a vida nas condições biofisiológicas) se tornam centrais no espaço público, esvaziam as discussões políticas, produzindo uma zona de indecibilidade, uma confusão entre o público ou privado[ii]. Para isso, Agamben se propôs a uma interlocução a paritr dos argumentos do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984) e da filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975). Arendt afirmou que a captura da vida biológica pelo Estado elimina as condições da política[iii]. Foucault se referiu aos corpos como meros recursos administráveis, chamando isso, e outros aspectos, de biopolítica[iv].

Nesse sentido, as pautas das discussões públicas são orientadas por temas sem relevância política: preferências pessoais, saúde individual, segurança, lazer, etc. Consequentemente, aquilo que diz respeito aos rumos da polis, é sobreposto pelo cotidiano das pequenas (grandes?) preocupações da vida privada. Assim, o esvaziamento do debate público (política) se constitui pela invasão das questões privadas de modo que tanto não sabemos mais o que discutir em cada esfera, quanto acabamos por expor nas redes sociais, nos meios de comunicação os assuntos da vida privada. Afinal as questões da vida privada vinculam-se ao consumo das opções de vida disponíveis pela lógica da plena produção e do pleno consumo e não requerem consenso, pois não pressupõem debate. São imperativos. “devem ser assumidos”. Nunca é despiciendo lembrar que o confronto de ideias é indispensável à política.

Dentre outros elementos constitutivos da modernidade está a propriedade privada como a conhecemos, uma das consequências das revoluções gloriosa (1688-1689) e francesa (1789-1799) foi, na Europa Ocidental, pelo menos numa parte dela, a transformação da propriedade feudal em propriedade privada capitalista[v]. Pelo menos desde então, a propriedade privada foi associada tanto à garantia da vida quanto à liberdade, dentre outros pelo filósofo inglês John Locke (1632-1704), principal referência moderna do liberalismo. Nessa perspectiva, para que possamos viver e ser livres é necessário que tenhamos propriedade privada e propriedade privada é algo de valor conquistado por direito[vi]. A vinculação ao direito lança luz sobre o fundamento da propriedade privada: o direito. Dito de outro modo, sem direito não há propriedade privada. Contudo, circunscrever a liberdade à propriedade privada é também reduzi-la “ao” e “para o” direito. Essa redução da liberdade a uma “liberdade jurídica”, fruto de uma miscigenação entre liberdade e propriedade que dificulta o discernimento entre uma e outra, é um movimento imprescindível para a aniquilação da política e à privatização dos espaços públicos. Do mesmo modo, a vinculação da garantia da vida à propriedade privada resulta em uma “vida jurídica” ou, melhor, a uma vida juridicamente tutelada, isto é, “merecedora” de tutela do direito. Isso, dentre outras consequências, abre a possibilidade de captura da vida pelo direito estatal, de redução da vida à condição de recurso administrável por um soberano[vii].

No século XX surgiu e ascendeu o neoliberalismo, uma nova “razão do mundo”[viii] que rompeu com a clássica lógica causal. Até o advento do liberalismo econômico dos fisiocratas franceses, a causalidade era pensada para que as ações fossem dirigidas ao enfrentamento das causas dos problemas. Com o economista francês François Quesnay (1694-1774), passou-se a pensar o governo a partir da metáfora do barco por meio da qual o governo foi associado à navegação[ix]: na condução do barco é necessário não se opor às ondas, bem como cuidar do barco, da carga e da tripulação para atingir o porto de destino. Isso implicou numa inversão do núcleo das ações: das causas para os efeitos. Isso porque não é possível impedir as ondas, mas é possível navegar apesar das ondas. Essa lógica causal foi completamente dispensada nas teorias neoliberais. Não pensamos mais a causalidade, mas a “ação eficiente”: como fazer mais com menos? Ademais, a concorrência foi erigida à condição de razão do mundo. Isso implica em uma mudança também na subjetividade. Produzimos e reproduzimos concepções perpassadas pela lógica da concorrência, tornamo-nos indivíduos ensimesmados, importamo-nos apenas com o que pensamos nos dizer respeito.

Esse individualismo, que talvez possamos chamar de “individualismo concorrencial”, produz a ideologia do “empresariado de si” que aniquila a percepção da dimensão pública da condição da vida humana. Os assuntos da polis nos dizem respeito, ainda que indiretamente. Assegurar condições mínimas de subsistência para os indivíduos não é dar “esmolas para vagabundos”, mas condição indispensável para a qualidade de vida de toda a população. Portanto, algo que diz respeito a todos nós, não apenas aos necessitados. Não há uma oposição entre estado e sociedade como apontamos na coluna passada[x]. Dito de outro modo, não há um espaço fora do mundo para o qual podemos banir os indesejáveis. É justo por saber disso que os nazistas optaram pela “solução final”: os campos de extermínio[xi]. A lógica operada naqueles espaços de exceção permanente[xii] está fundada na clássica oposição amigo-inimigo, com os “aperfeiçoamentos” da política moderna, isto é, com o verniz eufemístico da oposição cidadão-estrangeiro[xiii]. É imprescindível saber disso não para reabrirmos os campos de concentração, mas justo para que não o façamos, para que a história não se repita como farsa[xiv].

Com a introdução das chamadas “novas tecnologias”, em razão da Revolução 4.0, o neoliberalismo assumiu nova roupagem e difundiu um ideal antigo do filósofo francês Jean-Jacques Rousseau (1712-1778): a transparência[xv]. O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han (1959...) afirma que a transparência é a nova aposta iluminista em torno da qual produzimos um segundo iluminismo[xvi]. Assim, além de o “indivíduo concorrencial”, o homo economicus, se torna senhor e servo de si, substituindo a exploração alheia da classe trabalhadora pela exploração de si[xvii]. Ademais, a transparência e a competição entre esses indivíduos se tornam ideais a perseguir, desejos produzidos pelas “novas tecnologias” e posteriormente apropriados. Surge um novo segmento da atividade econômica que assume a psique como matéria prima bruta. Daí exsurgem tanto novos produtos farmacêuticos (medicações para doenças psíquicas de todas as ordens) e serviços destinados a disciplinar os indivíduos, quanto novos mecanismos de controle social. Contudo, o controle exercido não se dá mais por um vigia (projeto pan-ótico de Jeremy Bentham), mas pela exposição de cada um por si mesmo ao cumprir o projeto rousseauniano de transparência o que é possível quando todos assumem a posição de vigilantes de todos[xviii].

Dito isso, temos alguns elementos para compreender em que contexto ocorreu e continua a ocorrer o esvaziamento do espaço público. Enquanto ocupamo-nos a cada instante com alimentar redes sociais, preencher formulários, vigiar e copiar o estilo de vida dos digital influencers, em busca da prometida meritocracia, não nos resta tempo para a política. O espaço público só nos atrai como espaço de exposição, de pornografia e de transparência. Exibir fotos de nossas refeições, viagens e de tudo o que fazemos é assumido por nós como prioridade, como meta de vida. A propriedade só nos interessa do ponto de vista individual, isto é, como propriedade privada que supostamente assegura nossa liberdade, a liberdade jurídica, única que a maioria de nós conhece. Pensar o espaço público como propriedade comum e a política como possibilidade de participação nos rumos da polis é quase utópico[xix].

Nesse sentido, a metáfora do João de barro nos mostra duas possibilidades para o uso do espaço público. A aposta neoliberal seria no sentido de privatizar o espaço público para que a gestão desse espaço seja mais “eficiente”, e eficiência é também nesta perspectiva nos livrarmos dos indesejáveis, dos improdutivos, dos não consumidores. Ou ainda daqueles que insistem em cultivar uma forma de vida pública. Uma aposta distinta seria a reocupação do espaço público, mediante cuidado por todos, para que se torne um espaço de convívio e de discussão dos rumos da polis. Cada um desses caminhos admite vários contornos, projetos etc.

Em 1215 o rei inglês João sem terra (1166-1216) precisou fazer concessões aos barões ingleses, revoltados com a política fiscal de João, em um acordo para que mantivesse a coroa. Isto é, houve uma apropriação do espaço público, ainda que apenas pelo baronato, uma privatização do espaço privado (domínios da realeza inglesa). Em 2020 estamos mais próximos de assistir ao processo de privatização do espaço público construído até aqui (ainda que criticável), ao custo de muitas vidas e muito sangue derramado, pelos especuladores do mercado financeiro por meio de holdings, empresas de capital aberto, fundos de investimento e outras estratégias neoliberais de privatização dos lucros e socialização dos prejuízos[xx]. Assim, o João de barro, despossuído da própria casa, do poste, do uso da iluminação e da câmera públicas será transformado em João sem poste para se somar aos milhões de brasileiros obrigados a subsistir sem as condições mínimas!

 

Notas e Referências

[i] https://scontent-atl3-1.cdninstagram.com/v/t51.2885-15/sh0.08/e35/s640x640/79992441_464649811112343_8355294199707933152_n.jpg?_nc_ht=scontent-atl3-1.cdninstagram.com&_nc_cat=103&_nc_ohc=lHaAzlSZz3kAX9i8aYS&oh=fafb0018e7f97a6a05bcacdfea59eb7e&oe=5EA3C28F

[ii] AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007, p. 9-20.

[iii] ARENDT, Hannah. A condição humana. 10. ed. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense, 2007.

[iv] FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso dado no Collège de France (1975-1976). Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999; ______. Segurança, território, população. Curso dado no Collège de France (1977-1978). Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008; ______. Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

[v] Sobre: ANDRADE, Diogo de Calasans Melo. Historicidade da propriedade privada capitalista e os cercamentos. História: Debates e Tendências, v. 18, n. 3, pp. 408-419, 2018.

[vi] LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo civil. Coimbra: Edições 70, 2006.

[vii] Para uma maior compreensão das consequências disso: AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.

[viii] DARDOT, Pierre; LAVAL, Christhian. A nova razão do mundo. Ensaio Sobre a Sociedade Neoliberal. Trad. Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo. 2016.

[ix] FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. Curso dado no Collège de France (1977-1978). Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 127 e ss.

[x] https://emporiododireito.com.br/leitura/o-estado-contra-a-sociedade-ou-da-contradicao-entre-capital-e-trabalho

[xi] Sobre: ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999; ______. Origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

[xii] Sobre: AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. Trad. Selvino José Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008.

[xiii] Sobre: AGAMBEN, Giorgio. Meios sem fim. Notas sobre a política. Trad. Davi Pessoa. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

[xiv] “Em alguma passagem de suas obras, Hegel comenta que todos os grandes fatos e todos os grandes personagens da história mundial são encenados, por assim dizer, duas vezes. Ele se esqueceu de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa.” MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. Trad. Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 25.

[xv] Sobre: HAN, Byung-Chul. Sociedade da transparência. Trad. Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2017, p. 97-104.

[xvi] “O dataísmo surge com a ênfase em um segundo Iluminismo. No primeiro Iluminismo, acreditava-se que a estatística seria capaz de libertar o conhecimento do teor mitológico; por isso, a estatística foi festejada com euforia pelo primeiro Iluminismo. [...] A transparência é a palavra-chave para o segundo Iluminismo. Os dados são um medium transparente: são, como também se pode ler no artigo do New York Times [de David Brooks, em 2008], uma «lente transparente e confiável». O imperativo do segundo Iluminismo é: tudo deve se tornar dados e informação. Esse totalitarismo ou fetichismo dos dados marca o segundo Iluminismo. O dataísmo, que acredita que qualquer ideologia pode ser deixada para trás, é em si mesmo uma ideologia: conduz a um totalitarismo digital. Assim, é necessário um terceiro Iluminismo, que nos ilumine mostrando que o Iluminismo digital se converte em servidão.” HAN, Byung-Chul. Psicopolítica. O neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Trad. Maurício Liesen. Belo Horizonte: Âyiné: 2018, p. 79-80.

[xvii] “O neoliberalismo, como mutação do capitalismo, torna o trabalhador um empreendedor. Não é a revolução comunista, e sim o neoliberalismo que elimina a exploração alheia da classe trabalhadora. Hoje, cada um é um trabalhador que explora a si mesmo para a sua própria empresa. Cada um é senhor e servo em uma única pessoa. A luta de classes também se transforma em uma luta interior consigo mesmo.” HAN, Byung-Chul. Psicopolítica. O neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Trad. Maurício Liesen. Belo Horizonte: Âyiné: 2018, p. 14.

[xviii] Sobre: HAN, Byung-Chul. Psicopolítica; ______. Sociedade da transparência. Trad. Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2017.

[xix] “Hoje já não há política. Se ela já não admite nenhuma alternativa, acaba se aproximando de uma ditadura, da ditadura do capital. Os políticos, que hoje se degradaram em capangas do sistema, que no melhor dos casos são hábeis administradores da economia doméstica ou contadores, não são mais políticos no sentido aristotélico”. HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço, p. 120.

[xx] Sobre a complexa arquitetura do poder utilizada para controle em rede da economia global: DOWBOR, Ladislau. A era do capital improdutivo: por que oito famílias têm mais riqueza do que a metade da população do mundo?. São Paulo: Autonomia Literária, 2017.

 

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