Por que a violência é tão fascinante, com Laranja Mecânica

28/05/2015

Por Alexandre Morais da Rosa - 28/05/2015

A violência é fascinante e nossas vidas tão banais, cantarolava um adolescente, a partir de sua angústia (que nunca mente, diz Lacan: “A angústia surge do momento em que o sujeito está suspenso entre um tempo em que ele não sabe mais onde está, em direção a um tempo onde ele será alguma coisa na qual jamais se poderá reencontrar.”). Daí a ligação entre adolescentes e tédio ser tão bem trabalhada pela Criminologia Cultural.  Por ela podemos, quem sabe, entender que a descarga de adrenalina, a sensação de gozo, efêmero, belo, fugaz, cínico, promove um lugar. Reitera uma subjetividade que, se tivermos sorte, passa.

Jeff Ferrell, Salo de Carvalho e Álvaro Oxley da Rocha (aqui), dentre outros, apontam a necessidade de entendermos o desvio em primeiro plano, quem sabe, termos a capacidade de pensarmos do lugar do adolescente, tão esquecido por nós que já o ocupamos e, quem sabe darmos uma chance para entender o encontro com o Real do sexo, do confronto de gerações e a ausência de referências para com o mundo. Além disso, também, em sociedades em que o limite, entendido pela inscrição da Lei Paterna, encontra-se frouxo, pode-se exigir responsabilidade, mas não se pode impor culpa. Responsável o sujeito sempre é. Mas a culpa depende de ter recebido a Lei Paterna.

Com Mauro Mendes Dias podemos dizer que “A adolescência é um período em que o ódio adquire uma positividade contundente, porque a revolta do adolescente é exatamente o fato de que as identificações parentais não são suficientes para os desafios em relação a uma posição sexual. A mãe nunca é suficientemente mulher e o pai nunca é suficientemente homem, no sentido dos desafios que a sexualidade promove. Então, uma das saídas é essa contestação, esse jogar fora tudo que vem do mundo adulto, como maneira de fazer constar a própria questão deles, de exceder os embaraços, mas que não deixa de ser também um apelo, uma demanda, como aposta para que alguma coisa nova se crie a partir desse voto de contestação.[i]

O livro Laranja Mecânica me foi mais impactante do que o filme. O personagem Alexandre, tratado como Alex, os Policiais chamados de “Rozas”, a lembrança dos meus druguis adolescentes, quando brigávamos, furtávamos, matávamos... passarinhos, enfim, horroshow diário, em duas frequências. A vida cínica perante os pais e a vida hard com os amigos, na lógica do grupo, da rebeldia e da violência non sense. Anarquia Oi, Papai Noel velho batuta trejeitos miseráveis; eu quero matar aquele porco capitalista que presentei os ricos e cospe nos pobres. Gritávamos com os Garotos Podres. Enfim, muita coisa de minha adolescência "semi-punk" foi recordada, embora uma mudança de cidade por força da família tenha me deixado sem o lugar de líder da gangue. Sem mais contar com druguis acabei ocupando o lugar do inteligente. Sorte ou azar? Nunca se sabe. Estou hoje aqui e algo pode marcar. Não resisto, aliás, pela insistência nos meus ouvidos dos significantes Alex e Rosa, como alguns, aliás, chamam-me. A sátira pelo (des)encontro marca a leitura do texto.

Em tempos em que a identificação é cada vez mais complexa, na perda de referentes, a lógica “nasdat” que Antony Burgess [ii] aproveitou do russo a tradução de “teen” – que não é para a pior sede (só entende quem tem mais de 35 ou pode procurar no google) – para deslizar no “você tem fome de quê?; você tem sede de quê? (Titãs – e título do sugestivo livro sobre bulimia e anorexia de Teresa Nazar aqui). Aliás, pensei em seguir o caminho da anorexia, sublinhada por Mauro Mendes Dias como uma das formas de ódio, já que não admite ser tratada como uma boca e um estômago” [iii], mas fiquei com fome. “A gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte”. O duplo sentido dos significantes de Burgess autorizam lembrar de Jorge Luis Borges, do qual Antony se declarava “xará”, dada a raiz única no “burg” (burgos), conforme afirma Fábio Fernandes no prefácio da versão da Editora Aleph (p. XI e XII). Alex, nosso narrador, na versão originária usava o Like, uma expressão, diz Fábio Fernandes, “tipo assim”, gíria de boa parte dos adolescentes e outros nem tanto. Lembrei-me de Madonna Like a prayer, como uma oração, talvez como possa ser lido o livro.

Os significantes deslizam entre “Drug” que é amigo em russo, até “sin”, pecado em inglês, para nos deixar a sensação de que a tradução é sempre complicada, arriscada e, no caso da articulação com Direito e Psicanálise, muito angustiante. Na articulação vale a pena ler o texto de Cyro Marcos da Silva (aqui) sobre a insistência aparentemente elegante de citação reiterada dos mantras lacanianos “a mulher não existe”, “ a relação sexual não existe”, “não existe Outro de Outro”, lugar que já ocupei, confirmo, e que precisa ser encadeado. Menos blábláblá e mantras lacanianos, comparecendo mais enunciação. Já estive ali e o trabalho de Cyro Marcos da Silva, dentre outros membros do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR, foi importante. Sou grato.

Pois bem, no caso adolescente as músicas podem nos dar algumas pistas, sem querer psicanalisar o Narrador. Alex diz que a música de Mozart e Bach promovem êxtase (p. 35). Poderia exibir-me com Adorno [iv] e falar do fetichismo da música e tal, mas mesmo assim, e valendo-me dele, cabe invocar o poder da música como metáfora do ritmo de uma geração. Prepara, que é hora, do show das poderosas, quem descem, afrontam as fogosas, e aí vai, com ou sem Anitta (aqui). A banda Biquíni Cavadão canta: “Sabe esses dias em que horas dizem nada/ E você nem troca o pijama, preferia estar na cama/ Um dia, a monotonia tomou conta de mim/ É o tédio, cortando os meus programas, esperando o meu fim/ Sentado no meu quarto/ O tempo voa / Lá fora a vida passa/ E eu aqui a toa/ Eu já tentei de tudo/ Mas não tenho remédio/ Pra livrar-me deste tédio.

Adrenalina, emoção, pequenos ilícitos, riso e devoção pelo inesperado passam a ser a pedra de toque de uma geração perdida nos referenciais que não fazem mais questão (Jean-Pierre Lebun), em que os ódios não encontram muitos objetos para reagir à diferença e, por via de consequência, tornam-se ódio contra o que der, vier ou quiser. Os ricos podem fazer rafting, canoagem, montanhismo, escalada, viajam, deslizando com sedução da morte com mais, por assim dizer, glamour, enquanto a diversão dos sem condições materiais é mais da ordem do Real, em que a morte comparece mais efetiva, com pequenos delitos, pichações, vadiagem, enfrentamento de autoridades constituídas. Pobre não possui nem Futebol, dado que somente quem é muito ingênuo acredita que os jogos são para valer.

Daí que Laranja Mecânica promove uma metáfora que pode se adaptar a diversos regimes simbólicos, dentre os quais o que consigo mirar, do manejo da lei com adolescentes. Neste sentido, o Estatuto da Criança e do Adolescente chama de adolescente em conflito com a Lei. Perguntava-me quem não seria? Agregue-se a isso, que no auge da moda (Lipovetsky), alguns comandos policiais violentos (Alô Paraná, que não deixa de ter um Governador marcado pelo significante Rixa, Código Penal – art. 137), denominados de “Roza” no livro de Burgess, pelo narrador Alex, cada vez mais se exibem na internet, em vídeos, demonstrações de violência, na pretensão de ver e ser visto, não fosse o recalque que aí comparece. O gozo escópico em seu limiar obsceno.

Augusto Jobim do Amaral afirma que depois da conversão de Alex em Moço do Bem, entoando os hinos de amor – We are the word... Imagine there's no heaven -, afirma que o “ato de maldade definitivo” estatal: a desumanização de Alex, tornado um grosseiro mecânico condicionado incapaz de qualquer resistência. Para o Alex, plenamente civilizado após a miraculosa conversão, a rigor, não haverá mais linguagem possível, apenas protocolos a serem respeitados, a mais sublime ordem de um horror desvitalizado. Burgess genialmente joga com isto: desloca a aparência dos atos gratuitos de violência juvenil para manipular e deixar cristalino a face louca da normalidade violenta estatal, dando visibilidade à loucura médico-jurídico-científica e sua nobre missão civilizatória.” (aqui)

Depois de ter permanecido sete anos no lugar de Juiz da Infância e Juventude, no campo do ato infracional, não posso deixar de reconhecer, parafraseando Alex, nosso narrador, que o “auge da moda” da “ultra-violência” aparece nos fenômenos e laços que fundam as gangues que, por meio de batismos de sangue, promovem o “um por todos e todos por um”, banhados de cinismos de duas vidas (no grupo e em casa), bem assim a luta pelo exercício do poder, com delações a torta e direta, depois. Sair para ver o que acontece, driblar os miliquinhas, jamais ter a aparência de ter feito o ato, sem matar a vítima que é deixada para poder ser contemplada como troféu do ódio.

Parênteses. O fenômeno “cutt”, auto-mutilação, daria um bom caminho também. Das pessoas que se cortam para ver o sangue e poder se certificar de estão vivos, tendo como famosas Angelina Jolie e Demi Lovato e muitos outros, embora a maioria mulheres, que se cortam pelo prazer do ato e da dor que daí se promove.

A manipulação do medo, das formas de resistência ao adolescente que nos afronta exige tomada de decisão, especialmente para plateia. O coro sempre canta a morte. Embora o medo seja um sentimento que ajudou a espécie humana a sobreviver até hoje, seu manejo no contexto atual exige que acabemos com a responsabilidade individual. Já assisti pequenos Alex dopados em muitos locais de cumprimento de medidas sócio-educativas, em que Ludovicos e Barcamartes se faziam presentes. Ludovico neles; em todos; redução idade penal, entoa o coro... Por certo há um erro em dizer que não são responsáveis penalmente, porque somos sempre responsáveis pelos atos, mas a operosidade do cinismo reina absoluta na seara dos adolescentes docilizados, monitorados e alienados. A Laranja Mecânica acontece aqui e ali, em todos os lugares em que a castração química das subjetividades ganhou o respaldo dos psiquiatras de adolescentes internados cujo desvio, na sua maioria, próprio da adolescência, vira um bicho de sete cabeças. Não seria o discurso universal do déficit de atenção o sintoma disso?

O tempo da fala se vai e quero pontuar duas coisas: a) no final um filho que poderia, quem sabe, fazer ocupar um lugar diferente. Mas talvez a demanda ainda seja impossível; b) Alex dizia que queria salvar você de si mesmo (p. 41). Freud apontava que nas neuroses de guerra o que se teme é, afinal, um inimigo interno.

Tédio e ódio. Dupla explosiva. “Como seria bom para nós – diz Jean Pierre Lebrun -, se o ódio não nos habitasse, se não estivesse em nós, se ele não nos tivesse construído. O que acontece em nós, se ele não nos tivesse construído. O que acontece é que ele nos concerne, sim, eventualmente, na medida em que podemos ser objeto ou vítima dele; que deveríamos reconhecer que ele existe, sim, e, infelizmente, que nós não podemos impedí-lo de existir. E, se ele estivesse em outro lugar, no outro, próximo ou muito longe, pouco importaria, mas não dentro das nossas próprias muralhas, não na nossa própria cidade, não alojado em nosso próprio corpo.[v]

A “radóstia” (alegria) de skazatar (dizer) algumas palavras sobre o livro me deixou feliz em poder “krastar” (roubar) um pouco do tempo de vocês. Já é hora de “ukadetar” (ir embora), ainda que a “veshka” (a coisa) continue nos movendo, por sorte ou azar. Depende do “poneamento” (entendimento) e do “smotar” (olhar) de cada “Vek” (sujeito). Não entendeu? Viu somente o filme? “umni” (esperto). Inocente, não sabe nada.

P.S. estranhou o texto? Ficou incomodado. Se sim, sou grato. Até porque foi curioso até o final. O dito é cifrado como a realidade e pressupõe uma certa curiosidade literária, especialmente quanto ao “idioleto” criado por Antony Burgess em face das gangues, tribos, naquilo que Mafessoli chama de tribalização (aqui). Talvez o “estranho” tão próximo de nós como ensinava Freud. O ambiente marcado pelo fantástico pode nos fazer, quem sabe, entender o papo reto, o maneiro, Morô? Ou De-Moro?

Referências

[i] DIAS, MAURO MENDES. Os Ódios: clínica e política do psicanalista. São Paulo: Iluminuras, 2012, p. 53.

[ii] BURGESS, Anthony. Laranja Mecânica. Trad. Fábio Fernandes. São Paulo: Aleph, 2004.

[iii] DIAS, MAURO MENDES. Os Ódios: clínica e política do psicanalista. São Paulo: Iluminuras, 2012, p. 51.

[iv] ADORNO, Theodor W. O fetichismo na música e a regressão da audição. 2.ed. In: BENJAMIN, W.; HABERMAS, J.; HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. W. Textos escolhidosSão Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 165-191.

[v] LEBRUN, Jean-Pierre. O futuro do ódio. Trad. João Fernando Chapadeiro Corrêa. Porto Alegre; CMC, 2008, p. 13-14: “Entretanto, o ódio está lá, em nossa vida cotidiana, em nossas cóleras, em nossa violência, em nossa agressividade, claro, mas também em nossos enganos, em nossos erros, assim como em nossos acertos, na forma como às vezes olhamos, no tom da nossa voz, em nosso desejo de dominar, em nossa voracidade, na maneira como nos dirigimos ao outro ou pela qual evitamos responder-lhe, no ‘como se’ não o tivéssemos visto, no suspense em que o mantemos ou na resposta imediata, no ridículo para onde o jogamos, na lama em que chegamos a arrastá-lo, em nossas pretensas gentilezas ou em nossas falsas amabilidades... ou, mesmo, em nossos silêncios; enfim, examinando-o um pouco mais de perto, é preciso aceitar uma constatação: o ódio me habita, está na minha vida, desde o início, sem dúvida, e antes mesmo do que eu possa me lembrar. Então, pergunta-se: quem é ele ou, ainda, de onde ele vem?


Alexandre Morais da Rosa é Professor de Processo Penal da UFSC e do Curso de Direito da UNIVALI-SC (mestrado e doutorado). Doutor em Direito (UFPR). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. Juiz de Direito (TJSC). Email: alexandremoraisdarosa@gmail.com  Facebook aqui                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                      


Imagem ilustrativa do post retirada do filme "Laranja Mecânica (Clockwork Orange), de 1971. Direção de Stanley Kubrick // Sem alterações

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