Por mais interculturalidade nos direitos de crianças e adolescentes: as resoluções 253 e 254 do CONANDA

05/11/2024

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Fernando Albuquerque, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

 

Introdução e contextualização

A aprovação e publicação das Resoluções ns. 253 e 254[1], em outubro de 2024, pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), representa um avanço no reconhecimento da interculturalidade nos direitos de crianças e adolescentes no Brasil, e de seus impactos sociais e institucionais.

Com as duas novas resoluções há a ampliação do bloco de normativas interculturais do CONANDA voltadas às crianças e adolescentes indígenas, quilombolas e tradicionais, com a seguinte configuração:

  • Resolução nº 91/2003: direcionada às crianças e adolescentes indígenas e a validação da aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990), considerando as especificidades socioculturais dos povos indígenas;
  • Resolução nº 181/2016: estabelece os parâmetros do atendimento culturalmente adequado de crianças e adolescentes de povos e comunidades tradicionais, com especial atenção aos sete requisitos contidos no artigo 3º, parágrafo único, alíneas “a” até “g”;
  • Resolução nº 214/2018: define os parâmetros de participação de crianças, adolescentes e outras representações de povos e comunidades tradicionais nos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente;
  • Resolução nº 253/2024: estabelece as diretrizes para a aplicação do direito à consulta e ao consentimento livre, prévio, informado e de boa fé por parte do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA) para atendimento de crianças e adolescentes indígenas, quilombolas e tradicionais;
  • Resolução nº 254/2024: define os parâmetros de reconhecimento das práticas de cuidado e proteção desenvolvidas por povos indígenas, comunidades quilombolas e povos e comunidades tradicionais com crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, e as formas de coordenação com as medidas institucionais desenvolvidas pelo SGDCA.

Considero que esse bloco de normativas possui um instrumento central que é a Resolução nº 181/2016 do CONANDA, e cujo conteúdo delineou o alicerce do atendimento intercultural de crianças e adolescentes[2], cujas resoluções posteriores buscam ampliar aspectos já contidos na referida resolução ou relacionar outras normativas ao seu conteúdo.

Em todo caso, o cenário de estruturação e aprovação das duas últimas resoluções do CONANDA deve ser localizado temporalmente no ano de 2022, quando houve a instituição do Grupo de Trabalho (GT) de Enfrentamento à Violência contra Crianças e Adolescentes de Povos Originárias e Comunidades Tradicionais, por meio da Resolução n 228 do referido órgão de controle social, e cujo relatório final apontava, entre outras recomendações, a proposição de ações voltadas à:

“(17) [...]

g. Elaborar diretrizes e estratégias para o trabalhado integrado - políticas públicas, serviços, ações e atores envolvidos, do governo e das organizações da sociedade civil - no território com foco na prevenção e enfrentamento a violência contra crianças e adolescentes de povos e comunidades tradicionais, bem como suas famílias;”[3] (Itálicos nossos)

Ademais, no âmbito dos desafios e estratégias propostos no documento por eixo do SGDCA, constam, nos eixos de Promoção e Defesa e Controle, a recomendação:

Promover a participação de lideranças, organizações, comunidades, famílias, crianças e adolescentes de Povos e Comunidades Tradicionais nos espaços de planejamento, nos processos de tomada de decisões e na fiscalização dos serviços.”[4] (Itálicos nossos)

Em 2024, participantes do referido GT e outras pessoas convidadas na condição de especialistas e/ou de representantes de povos e comunidades tradicionais[5], se reuniram para elaborar duas minutas de resoluções para cumprimento às recomendações definidas pelo GT, de modo a avançar na melhoria do atendimento intercultural de crianças e adolescentes de povos e comunidades tradicionais, tendo por horizonte ético-jurídico o escopo no artigo 1º da Resolução nº 181/2016, do CONANDA, isto é, de potencialização da articulação entre os direitos das crianças e os de povos e comunidades tradicionais.

As minutas foram encaminhadas ao CONANDA que as recepcionou no âmbito da Comissão de Políticas Públicas (CPP)[6], onde o tramite de continuidade de elaboração e revisão das minutas de resoluções foi pactuado em parceria com o grupo de especialistas para que pudesse conter três momentos de participação social e governamental:

  • Duas reuniões com organizações de povos indígenas, comunidades quilombolas e de povos e comunidades tradicionais, a primeira de caráter informativo (julho/2024) para apresentar conteúdo das minutas de resoluções, e a segunda de caráter validativo (setembro/2024) para apresentar a versão final das resoluções e definir os últimos ajustes;
  • O encaminhamento das minutas das resoluções aos órgãos do governo federal e ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para que pudessem avaliar seu conteúdo, especialmente nos aspectos que tivessem relação com as competências de cada órgão e onde fossem nominalmente demandados nos documentos (julho/2024);
  • Realização de consulta pública dos documentos por intermédio da plataforma Participa Brasil, por período de 30 dias, para que qualquer pessoa pudesse contribuir com os conteúdos das minutas de resoluções (agosto e setembro/2024).

Dessa forma, o processo de estruturação das resoluções foi conduzido para que oportunizasse uma ampla participação dos diferentes segmentos sociais interessados, em especial os de povos e comunidades tradicionais, de modo a que o seu conteúdo tivesse a qualidade e a legitimidade necessárias para ser colocado em vigência.

 

Consulta e participação: considerações sobre o conteúdo da Resolução nº 253/2024

A Resolução nº 253/2024 trabalha um dos principais direitos de povos e comunidades tradicionais, que é o direito à consulta e ao consentimento livre, prévio, informado e de boa-fé, e a forma como o SGDCA pode colocar em prática sua ampliação. No cerne, busca materializar o preceito intercultural de que só existe efetiva proteção de crianças e adolescentes se houver a adequada participação de seus grupos étnicos na definição das medidas do que se entende por e de como se aplica à própria proteção.

Dado o histórico de medidas adotadas pelo Estado e pela sociedade para intervir em crianças e adolescentes em uma perspectiva que desqualificava ou invisibilizava os interesses e os conhecimentos dos povos e comunidades tradicionais, reflexo do racismo e da colonialidade que imperavam e ainda imperam no país[7], a efetivação do procedimento da consulta antes da atuação socioestatal torna-se uma bússola de orientação ao SGDCA para que construa com os grupos étnicos os caminhos a serem trilhados no atendimento.  

Por isso, a resolução foi pensada para ser a mais didática possível em relação à:

  • Tradução de um direito coletivo (consulta e consentimento) para o mundo do SGDCA, incluindo um rol de elementos conceituais (Art. 2º);
  • Definição de que esse direito deve ser parte do processo de organização dos serviços do SGDCA para a estruturação do atendimento a ser prestado às crianças e adolescentes de grupos étnicos (Arts. 5º ao 9º);
  • E, no atendimento de cada situação de ameaça ou violação de direitos, ou no campo da promoção de direitos, assegurar o exercírcio da participação de representações étnicas para a definição das medidas institucionais a serem adotadas, respeitando a presença de representantes mulheres quando forem violências com recorte de gênero (Art. 10º).

Portanto, friso um elemento crucial da proposta político-jurídica dessa resolução: o procedimento de consulta deve ocorrer como mecanismo estruturante a atuação socioestatal junto à povo ou comunidade tradicional presente no território de atuação, inclusive considerando as regras presentes em Protocolos de Consulta, instrumentos jurídicos criados pelos povos e comunidades tradicionais para dizer como querem ser consultados pelo Estado; a garantia da participação é o outro direito presente na resolução e relacionado ao cotidiano da interação entre os serviços do SGDCA e os grupos étnicos, cuja inobservância pode resultar em racismo e violência institucional nos casos de colocação em família substituta ou em acolhimento institucional ou familiar sem acordo prévio com representantes do grupo étnico de pertença da criança (Art. 10º, §5º).

 

Cuidado e proteção: considerações sobre o conteúdo da Resolução nº 254/2024

A Resolução nº 254/2024 responde à lacuna de implementação decorrente da publicação do Decreto n

º 9.603/2018, que regulamenta a Lei nº 13.431/2017, conhecida por Lei da Escuta Protegida, e que no seu artigo 17, parágrafo único, estabelece que “[p]oderão ser adotadas práticas dos povos e das comunidades tradicionais em complementação às medidas de atendimento institucional”[8].

Trata-se de um avanço normativo do reconhecimento das formas próprias de cuidado e proteção de povos comunidades tradicionais em relação às crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência. Porém, uma garantia que deixou mais dúvidas do que respostas, pois sobre ela era necessário definir o que se entende por tais práticas e de que forma poderiam ser coordenadas com as medidas institucionais, além de terem influência nos procedimentos do depoimento especial e da escuta especializada.

O núcleo intercultural da Resolução nº 254/2024 é o de que o cuidado étnico é parte fundamental da escuta protegida de crianças e adolescentes de povos e comunidades tradicionais vítimas ou testemunhas de violência, e isso coloca em evidencia a importância de conhecer e reconhecer o caráter protetivo da organização social de povos e comunidades tradicionais, no sentido de “abrir os olhos” do SGDCA para a outra rede de proteção existente dentro de cada povo ou comunidade tradicional.

Nesse sentido, o conteúdo da referida da Resolução busca pautar:

  • A conceituação das práticas de atendimento desenvolvidas por indígenas, comunidades quilombolas e povos e comunidades tradicionais junto às crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência (Art. 3º) e seu reconhecimento em igualdade de condições com as medidas institucionais (Art. 4º);
  • A estruturação de diferentes mecanismos que possibilitem a coordenação entre as medidas étnicas e as medidas institucionais de cuidado e proteção de crianças e adolescentes, com destaque para a elaboração de fluxos interculturais de atendimento (Art. 4º, §1º e §2º), a inclusão de conteúdos afetos ao assunto nas formações continuadas do SGDCA (Art. 6º) e a participação de representantes étnicos no comitê de implementação da escuta protegida (Art. 7º), definidos pela Resolução nº 235/2023 do CONANDA;
  • As orientações de adequação cultural do ambiente, da linguagem e dos procedimentos do depoimento especial e da escuta especializada a partir da participação e diálogo com representantes do povo ou comunidade tradicional de pertença da criança ou adolescente (Art. 5ª), além da valorização do papel e da atuação profissional de intérpretes étnicos, aperfeiçoando a forma de inserção nos serviços do SGDCA (Art. 10ª).

Cabe destacar que o conteúdo contido no artigo 5ª da Resolução nº 254/2024 deve ser lido e implementado de modo articulado com as disposições contidas na Resolução nº 299/2019[9] do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), assim como das diretrizes contidas no Manual do Depoimento Especial de Crianças e Adolescentes Pertencentes a Povos e Comunidades Tradicionais[10], de 2021, também elaborado pelo CNJ.

 

Reflexões finais

As resoluções ns. 253 e 254 do CONANDA representam um avanço da interculturalidade nos direitos de crianças e adolescentes, oportunizando o aprofundamento da internalização de preceitos contidos nos direitos coletivos de povos e comunidades tradicionais como parte das ferramentas de uso e aplicação pelo SGDCA.

Porém, mais difícil do que produzir as resoluções, é fazê-las ganharem vida junto ao SGDCA e serem adequadamente compreendidas e utilizadas por povos e comunidades tradicionais. Assim, o desafio atual é fazer com que o bloco de normativas interculturais do CONANDA seja difundido junto às instâncias socioestatais e aos grupos étnicos por todos os meios possíveis e em todas as regiões do país.

Nisso, a formação continuada promovida pela Escola Nacional de Formação Continuada do SGDCA, em especial às Escolas de Conselho, e o próprio CONANDA, necessitam fomentar a inserção de seus conteúdos nas iniciativas de formação continuada. Além disso, seria muito interessante o apoio à elaboração de um manual de implantação das quatro resoluções do CONANDA relativas à diversidade étnico-racial, nos mesmos moldes do que o CNJ tem feito para as Resoluções ns. 287/2019 e 524/2023[11].

Por último, é necessário assegurar a elaboração de materiais informativos em linguagem culturalmente acessível sobre o conteúdo do referido bloco normativo do CONANDA, incluindo a tradução para línguas próprias, de modo a ampliar a capacidade de entendimento e apropriação crítica por parte de povos e comunidades tradicionais, em especial às suas crianças, adolescentes e jovens.  

A esperança por dias melhores às crianças e adolescentes de povos e comunidades tradicionais passa, certamente, pela capacidade do SGDCA em construir formas mais adequadas de garantir a concretização de seus direitos, o que envolve o reconhecimento e a valorização dos povos e comunidades tradicionais como agentes fundamentais para a materialização desses direitos e a atuação intercultural das políticas públicas.

 

Notas e referências:

[1] Todas as resoluções do CONANDA informadas no presente artigo estão disponíveis para acesso em: https://www.gov.br/participamaisbrasil/https-wwwgovbr-participamaisbrasil-blob-baixar-7359

[2] Para mais informações de análise do conteúdo dessa resolução, consultar: OLIVEIRA, Assis da Costa. Crianças e adolescentes de povos e comunidades tradicionais: direitos e atendimento em perspectiva intercultural. São Paulo: Dialética, 2022. Disponível em: https://loja.editoradialetica.com/humanidades/criancas-e-adolescentes-de-povos-e-comunidades-tradicionais-direitos-e-atendimento-em-perspectiva-intercultural

[3] Cf. BRASIL. Relatório Final do Grupo de Trabalho de Enfrentamento à Violência contra Crianças e Adolescentes de Povos Originários e Comunidades Tradicionais. Brasília: Conanda, 2022, p. 12.

[4] Cf. Idem, p. 17.

[5] O grupo de especialistas, como ficou conhecido, é formado por: Ana Radig Denne Morais; Assis da Costa Oliveira; Benedito Rodrigues dos Santos; Bruno Kanela; Elisa Costa; Ivo Macuxi, Jardilene Gualberto Pereira Folha, Johny Giffoni, Jucirlei Barbosa Rodrigues, Letícia Moraes, Liana Amin Lima da Silva, Maria Páscoa Sarmento de Sousa, Paulo Thadeu, Renato César Ribeiro Bonfim e Silvana Nascimento.

[6] Agradecimento especial pelo empenho e envolvimento ativo na condução das minutas de resoluções no CONANDA às conselheiras Ana Angélica Campelo de Albuquerque e Melo, Débora de Carvalho Vigevani e Marina de Pol Poniwas, esta última a presidenta do CONANDA na gestão 2023/2024.  

[7] Faço análise desse histórico de tratamento das crianças, adolescentes e jovens de grupos racializados na América Latina e das consequências para suas vidas e acesso à direitos e políticas públicas, em: OLIVEIRA, Assis da Costa. Colonialidade e adultocentrismo: entrecruzamentos raciais na colonial modernidade. São Paulo: Dialética, 2023. Disponível em: https://loja.editoradialetica.com/humanidades/colonialidade-e-adultocentrismo-entrecruzamentos-raciais-na-colonial-modernidade Também, consultar: OLIVEIRA, Assis da Costa. Colonialidade do poder adultocêntrico e/nos direitos de crianças e jovens, Culturas Jurídicas, 8(20), pp. 950-979, mai./ago. 2021; OLIVEIRA, Assis da Costa. Colonialidade, infâncias e juventudes, Revista InSURgência, 9(2), p. 89-114, jul./dez. 2023. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/insurgencia/article/view/50253/38248

[8] Cf. BRASIL. Decreto nº 9.603, de 10 de dezembro de 2018. Brasília: casa Civil, 2018. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/decreto/d9603.htm

[9] Cf. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução nº 299, de 05 de novembro de 2019. Brasília: CNJ, 2019. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/original000346201912045de6f7e29dcd6.pdf

[10] Cf. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Manual de depoimento especial de crianças e adolescentes pertencentes a povos e comunidades tradicionais. Brasília: CNJ, 2021. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/12/v.-4-manual-de-depoimento-sumario-executivo-3.pdf

[11] Apenas o manual da Resolução nº 287/2019 está publicado, e da Resolução nº 524/2023 ainda está em fase final de revisão para publicação. Para acessar ao manual publicado, conferir: CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Manual Resolução nº 287/2019: Orientações a Tribunais e Magistrados para cumprimento da Resolução 287/2019 do Conselho Nacional de Justiça. Brasília: CNJ, 2019. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/09/Manual-Resolu%C3%A7%C3%A3o-287-2019-CNJ.pdf

 

Imagem Ilustrativa do Post: Capture 2017-04-06T13_56_54 // Foto de: blob rana // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/143045315@N03/33030523904

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura